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OPINIÃO

O nascimento de Goiás

Por Maria Helena Romacheli

O relato feito pelo português emboaba José Peixoto da Silva Braga que acompanhou a bandeira do Anhanguera Jr. em 1722, em busca de ouro e para povoar Goiás, é pouco conhecido pelos goianos. O jornal abre o espaço para que todos leitores possam conhecer a  história de sua terra, por meio da publicação de trecho dos documentos aqui apresentados.

Relato do José Peixoto da Silva Braga (íntegra do documento retirado do livro Memórias Goianas do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás)

“ Saí da cidade de S. Paulo a 03-07-1722, em companhia do Capitão Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera de alcunha que era o cabo da tropa, com 39 cavalos, 02 religiosos bentos, Fr. Cosme de Santo André e cento e cinqüenta e duas armas entre as quais iam também 20 índios, que o Sr. Rodrigo César que então era Presidente da Província de S. Paulo, deu ao cabo Bartolomeu para condução das cargas e necessários. Dos brancos, quase todos, eram filhos de Portugal, um da Bahia e cinco ou seis paulistas com os seus índios e negros e todos as suas custa.

  2.Passado o Rio Theaté fomos pousar neste dia junto ao mato do Jundiay, quatro léguas distantes  da cidade de S. Paulo. Na marcha seguinte entramos no matto e gastamos nelle quatro dias.

Saímos do matto e passamos o Rio Mogy, que é de canoas, muito peixe  tem e dá mostra de ouro mas com pouca conta. Aqui falhamos um dia e no seguinte marchamos sempre ao norte e demos também com um rio também de canoa e que pusemos o nome de ....e nele pousamos esta noite. É o caminho todo campo com muitos capões, bons pastos e bastante aguada.

  No dia seguinte passamos por um rio em um vão com água pelo peito e fomos pousar no meio do mato, distante três ou quatro léguas

  É todo bom o caminho, bons pastos e muita caçam e têm alguns córregos com bastante peixe.Deste ponto, fomos dormir distante de quatro léguas junto ao córrego  que junta com os demais no Rio Grande.

  Daqui passamos no outro dia a fazer pousos nas margens de um riacho que passamos na manhã seguinte encostados a uns paus e presos com uns cipós para vencermos a muita violência e grande força d’água com que corria.

  Neste pouso falhamos um dia, sendo a causa a requerer toda tropa ao Anhanguera lhe fizesse a resenha que lhe tinha prometido antes fazer em Mogy e a que tinha já faltado. Escusou-se este com a promessa de que em chegado o Capitão João Leite da Silva Ortiz, seu genro, que nos tinha ficado atrás e era o outro descobridor, o faria, e, caso que este não chegasse a tempo competente, o faria ele o cabo no Rio Grande.

  4. Com esta esperança marchou toda tropa sete ou oito dias sempre nos campos e Mattos Grossos e pousando sempre ao lado dos córregos e rios: não faltam em todos elles caça e peixes. Deste último ponto fomos ao Rio Grande, passando em canoas feitas de paus de semauma, depois de dormirmos e falharmos nelle dois dias, esperando que nos fizesse a resenha prometida, mas faltou-nos como sempre o Anhanguera . Partiu deste Sítio, toda tropa ainda junta, mas desconfiada foi dormir distancia de 4 léguas junto a um Córrego que deságua no Rio Grande. Aqui nos começou faltar mantimentos, e assim nos foi preciso marchar cinco dias, passando com o que dava a espingarda, pássaros, macacos, palmito e algum mel.

  5. No fim destes cinco dias chegamos ao Rio das Velhas, que entra no Rio Grande e é caudaloso, tem bastante peixe, mas sem mostra de ouro. Falhamos nele dois dias, caçamos e pescamos por ter aqui bons matos e parra provimento da viajem. Aqui nos deixou o Anhanguera adiantando-se com parte da tropa, ficando a mais,expedindo-se para o seguir.Neste tempo e ausente já o cabo, chegou João Leite com a sua gente, por cuja causa falhamos mais este dia.

  No dia seguinte seguimos com João Leite, o Anhanguera e depois de quatro dias de marcha o achamos, rancho feito entre o matto: passamos no caminho por alguns córregos que nos permitiam a vadeá-los por ser tempo de secca.

  6.Avistada a tropa com o cabo, lhe pediu João Leite que lhe fizesse a resenha prometida tantas vezes, não só em S. Paulo, mas no sertão porque havia desconfiado e temia se malograsse por esta causa a aspereza que  ambos tinham oferecido não  só o General Rodrigo Cesar, mas ao mesmo soberano. Respondeu que a resenha era escusada porque os emboabas, assim chamam aos reinóis, não era gente que merecesse. Com esta resposta, desconfiados não só os emboabas mas ainda os poucos paulistas que nos acompanhavam, determinaram voltar logo para S. Paulo; mas acudindo a isto, João Leite os obrigou com rogo e com promessas e muito mais com seu natural agrado a que o não o desamparassem.

  7.Reduzida a tropa se pôs em marcha depois de quinze dias de Falha, que se gastaram nessa desordem, como também a fazer algum provimento de que permitia os Mattos, como este não era muito e nem todos tinha o que se caçasse, obrigou alguns a matarem e comerem um Cavallo que tinha quebrado a perna e eu fui um que aproveitei delle.

  Aqui quisemos falhar mais alguns dias por entrarem já as águas e temermos não só os rios e córregos, mas a falta de Mattos e com Ella o necessário e preciso para o sustento. Resolveu o cabo a marchar em ódio dos emboabas de quem era o voto. Seguiu o cabo e fomos dormir neste dia junto a um córrego que tinha alguns peixes e melhores pastos e bastante matto. Aqui desconfiamos de tudo, persuadidos que o cabo queria nos acabar no meio daqueles matos e alguns houve que se queria ficar, lançando roça e plantando algum pouco de prato de milho que tinham ainda para o seu sustento; mas o Capitão João Leite os tornou de novo a animar e deduziu a que passassem adiante.

  8.Passados alguns dias de marcha e nelles alguns rios, córregos e assás trabalho e perigo por serem as águas muitas e maior a fome nos fomos arranchar perto do Rio Meia Ponte que é um Rio Caudaloso, tem bastante peixe bons pastos  e muito matto. Passando esse rio em umas pequenas canoas, que fizemos de casca de árvore, fomos dormir na outra banda do rio que nos hospedou toda a noite com uma frondosa trovoada que durou até a manhã seguinte com tanta água que não nos deu a fazer ranchos e por isto me vali de uma tolda que tinha comigo. Do Rio Meia Ponte, distante dois dias de viajem, se deixou ficar Frei Antônio com ânimo de lançar roça com dez negros, um sobrinho e um mulato com outro branco paulista que consigo tinha. Sentiu toda tropa naquela noite a falta do dito religioso, deu-se parte ao Anhanguera, mandou-o este a persuadir a que voltasse e marchasse adiante. Mas teve por resposta, que vista a falsidade que Sua Mecê tinha usado com todos, faltando a tudo que lhes tinha promettido em S. Paulo, lhe não era possível o pode-lo acompanhar; que ele determinava plantar algum milho, com que pudesse se recolher a povoado.

  9. Desenganado o Anhanguera marchou com a mais tropa e julgando que ia sempre ao norte, havia mudado de rumo para nordeste, quarta de norte, publicamos primeiro a todos que íamos errado porque os goyases que procurava já nos ficava atrás,,. Passaram as cento e tantas léguas que andamos a este rumo, sem mais sustento que o que dava o matto e esse pouco. Nesse dia lhe fugiram ao cabo oito índios seus passaram cento e tantas léguas. Destes índios foram apanhados depois de alguns dias, apenas três que trouxe preso João Leite que se expediu a buscá-los com dois negros e quatro brancos, trouxe também nesta volta consigo, Frei Antônio, que nos ficará distante, perto de oitenta léguas; mas que ainda veio Frei Antônio nem por isto desamparou sua roça porque deixou nela o sobrinho com quase  todos os negros. Nesta ocasião demos em umas grandes chapadas, falta de todo o necessário, sem Mattos nem mantimentos, só assim com bastante córrego em que havia algum peixe, dourados, traíras e upiabas que foram todo nosso remédio, achamos também algum palmito que chama das jaguaroba que comíamos assados e ainda é amargoso, sustenta mais que os mais. Aqui nos começou as gentes a nos desfalecer de todos, morreram quarenta e tantas pessoas entre brancos e negros, ao desamparo e o eu ficar com vida o devo ao meu Cavallo, que para me montar nelle, pela minha fraqueza em que me achava era preciso eu me lançar de braços levantados sobre o primeiro cupim que encontrava.

  10. Vendo-se o cabo nessa miséria e temendo a falta de mortandade das gentes e muito mais considerando o erro que tinha dado ao rumo que então seguia, se valeu do Céu e foi a primeira vez que o vi lembrar-se de Deus, fazendo várias novenas a Santo Antônio para que nos deparasse algum gentio que conquistados nos valessem dos mantimentos que lhes achássemos para remédio da fome que padecíamos. Passando quinze dias com moléstia e trabalhos, demos em uma picada nos mesmos campos, seguimo-la nove dias achando nelas alguns ranchos feito de pau e ramos com alguns grãos de milho já nascidos: no fim destes nove dias chegamos a uma serra cuja vertente deságua para o norte e lançando adiante quatro índios a farejar o gentio, e seguimos três dias de viajem, éramos só dezesseis com o cabo porque a mais tropa e bagagem deixamos atrás com os doentes. Na noite do terceiro dia avistamos a rancharia dos gentios e seus fogos: emboscamo-nos nos Mattos para lhe darmos na madrugada, mas sendo sentidos dos cachorros que tinham muitos e bons, quando nós avançamos nos receberam com seus arcos e flexas.

  11. Não demos nem um tiro por ordem do cabo, do que resultou a fugir-nos quase todo o gentio o investir num deles ao sobrinho do cabo com tal ânimo e lançando-lhe a mão à rédea do Cavallo lhe tomou a espingarda da mão e da cinta traçado e dando-lhe com Ella um famoso golpe em um dos ombros e outro no braço esquerdo, fugiu levando-lhe as armas. Desembaraçado do tapuia o paulista correu sobre elle sem mais effeito que recuperar a espingarda que lhe largou o tapuia.Naquela mesma ocasião outro tapuia feriu levemente no peito, com sua flecha a um Francisco de Carvalho Loredo, e acudindo ao outro lhe deu na cabeça com um porrete que caiu logo; caído lhe deu outra porretada outro tapuia que apareceu deixando-o já por morto. É para admirar que em todo este conflito não fizesse mais acção o cabo que o andar sempre longe gritando e requerendo-nos que só atirássemos ao vento para não acertar o gentio.

  12 Retiraram-se para o matto os tapuias mas nunca nos perderem de vista e tanto que querendo darmos sepultura ao Carvalho persuadidos que estava morto. Retirado o dito Francisco de Carvalho o achamos com a boca, nariz e feridas, cheio de bichos mas vendo que lhe palpitava o coração e outros sinais de vida o recolhemos na rancharia curando-lhe as feridas com urina e fumo e sangrando-o com a ponta de uma faca por não termos melhor lanceta; aproveitou tanto a cura que o Carvalho pela noite tornou a si, abriu os olhos mas não pode falar senão no dia seguinte, o regime que teve não passou de um pouco de anu e algumas batatas que achamos.

13. Em todo este tempo não nos deixou o gentio, perseguindo-nos, cativamos sete índios exceptuando um torto ao qual se deu liberdade. Recolhido ao seu rancho o Anhanguera mandou logo buscar os doentes e bagagens. Neste tempo se tinha humanizado mais o gentio buscando-nos e servindo-nos sem arcos e flechas e admirados das nossas muitas armas. Oferecendo-nos paós, trazendo em um destes dezesseis índias ainda moças, muito claras e bem feitas em sinal de Amizade.

Repugnou o cabo a aceitá-las, contradizendo todos os mais companheiros e eu fui o que mais persuadi aceitá-las dizendo-lhe que na consideração de sermos tão poucos, e estes fracos e mortos de fome, e muito o gentio não o escandalizássemos e que postas em guardas as ditas índias e os que mais se achavam já presos, podíamos catequizar os mais gentios não só pelas pazes mas para nos ensinar o caminho dos goyases, ao saber que chegariam os doentes e mais gentes o gentio foi embora.

14.Chama-se este gentio Quirixá, vive aldeado, usa de arco,   flecha e porrete, é muito claro e bem feito, anda todo nu, assim homens como mulheres. Tinham dezenove ranchos, todos redondos, bastante alto e coberto de palmitos, com uns buracos junto ao chão em lugar de portas, em cada um destes viviam vinte ou trinta casais juntos, as camas eram uns cestos de buriti que lhes serviam de colchão e cobertas, eram pouco mais de seiscentas almas. Estava situada toda esta aldeia junto com um córrego com bastante peixes e bons, encontramos um rio caldaloso em que havia muitos peixes, cayjús, palmito e muita e grande caça que nos serviu de muito. Nesta aldeia achamos duzentas mãos de milho, vinte e cinco batataes, muitas araras e piriquitos que nos serviram de sustento e de regalo; tinham também bastante cópia de cabaços e panela e muitos cães que mataram quando fugiram.

15. Aqui nos detivemos três meses sem nelles nos dar o cabo milho nenhum reservando-o todos para si e para sua comitiva, desculpando esta sua tirania como dizer-nos lhe era preciso para as bandeiras que havia de lançar...Eu tive a fortuna de me darem dezessete espigas e mais algum que devo ao trabalho de ao perigo com que o recolhi das roças que tinham deixado de refugo o gentio, assim os fizeram todos os mais até os religiosos.....

16.Na demora que fizemos nesta aldeia, vendo toda tropa que o cabo sobre faltar a resenha tantas vezes prometidas, tinha a culpa de perdermos o gentio se amotinou e tanto que se resolveram dois bastardos e um mulato, digo, mameluco com alguns paulistas a querer tirar-lhe a vida e levantar o seu irmão Simão Bueno por cabo por ser de melhor e mais dócil condicção. Eu que soube a sua resolução, não obstante o não o merecer o Anhanguera, fiz todo o possível para o dissuadir de semelhante intento insinuando-lhe o tanto que deviam a João Leite. Dissuadido os bastardos e seus sequases, seguimos viajem, costeando o córrego da rancharia até darmos em um rio que fomos costeando também pela parte do norte e buscar novos gentios que nos pudesse ensinar o caminho dos goyases. Nesta marcha gastamos setenta e seis dias, andando dois delles sem achar água que quando achamos um rio foi tal a alegria em nós que cobramos nova alma e tanto que nem os cavallos havia quem os tirassem da água. Aqui falhamos doze a quinze dias esperando por João Leite que nos tinha ficado atrás em busca dos índios fugidos e não chegava.

17. Neste sítio, ouvindo dizer o cabo que já estávamos perto do Rio Maranhão me resolvi a deixá-lo e rodar rio abaixo buscando uma terra já povoada para não perecer de fome e de sede no meio daqueles Mattos. Seguiram-me seis camaradas que foram: José Alves, Francisco de Carvalho, seu irmão Manoel de Oliveira, paulistas e João da Matta filho da Bahia, ainda rapaz. José Alves com um negro e uma negra, seu irmão com um só negro eu com três e um mulato que foram todas as peças que nos escaparam da viagem do Anhanguera. Repugnou-se o cabo que saíssem os dois irmãos comigo....Fiz uma procuração a Frei Antônio para  que vendesse o negro que ia ficando e remetesse à minha mulher Leonarda Peixoto em Braga- Portugal mas o João Leite deu-me outro no lugar que aceitei para aumentar o número de remadores nas duas canoas que fizemos, dei meu cavalo ao Frei Luiz para que rezasse por mim ...’

... e assim José Peixoto se separa da bandeira do Anhanguera mas segue o seu relato com a sua pequena equipe, rio abaixo até chegarem, muito sofridos, ao Pará, onde foram socorridos.

A Bandeira do Anhanguera fica então ali às margens do Rio Maranhão, sem o relator.

Um novo relato é feito bem mais tarde, bem mais geral, poético e resumido, que se atribui ao português da Ilha da Madeira, o Urbano do Couto e Menezes.

‘No ano de 1722, sendo eu de 22 anos, assentei praça de soldado para ir a esta conquista de Goyás. Em um tempo em que andei explorando esta vastíssima campanha, vi ouro em muitas partes só em três me parece de boa pinta. A primeira é uma das pontas deste Matto Grosso Goiano, no lugar que se chama Palmeira. Foi visto em 1723 e descoberto por João Leite da Silva Ortiz, genro do Anhanguera. Eu não me achei presente pois tinha ido com meus soldados a outra diligência mais fragorosa e arriscada mas quando me recolhi no mesmo dia e hora, chegou o dito João Leite com grande estrondo de tiros e foi recebido do sogro com muito mais e com alegria do ouro que tinham descoberto. No dia seguinte, se fez junta com todos conselheiros para quem havia de ir à cidade de S. Paulo levar amostra de ouro ao governador que era o General Rodrigo César de Menezes e todos concordaram que fosse eu, o aventureiro.

Quando pronto, com as cartas feitas e tudo arrumado e o ouro que devia ir, já pesado, que era 28 oitavas, de um dia para outro tomaram nova resolução dizendo que não era aquilo o Goyás que procuravam.

Em outra parte onde se viu ouro que me parece se não as maiores grandezas que haverá na comarca e fora dela e nas contra vertentes do nome e muitos outros que não estavam no Araés. Nasce nas águas de um campo limpo e por ele corre para o sul e se mete no Rio Grande e juntos vão à Colônia de Buenos Aires.

Tem o seu nascimento uma pedra muito alta, de várias cores seu feitio é de uma galera sem mastros.

Ao norte desta, rumo direito está outra pedra no centro dos mattos do Araés- que me parece será ainda vista e povoada de muita gentes e será rica, uma perfeita obra da natureza que se poderá ter como uma das maravilhas do mundo; é a tal pedra redonda tão alta como dizem da Torre de Babel; tem da parte do sul uma escada bem feita, obra da natureza por onde se sobe e tem em cima um assento em que bem poderiam estar 20 soldados formados à vontade, da parte do norte uma pessoa por mais animada que esteja pode olhar para baixo que não a tema. Porque não avista o fundo. Tem para a parte norte uma serra bem grande que corre de leste a oeste e promete ser fiadora de muitas riquezas chamei-a Serra Escalvada..

Neste lugar só eu estive com meus soldados e Antônio Ferrás sobrinho do cabo; este me pediu fizesse um sermão ao seu tio para que arribasse e eu neste dia não estava com vontade de Pregar, porque estava com a barriga bem cheia de fome; mas tanto me pediu e rogou que fiz o sermão, que foi o último que ia me custando a vida; sendo que meus sermões deram vida a muita gente porque vendo meus companheiros cada dia morrendo três ou quatro de fome depois de terem comido todos os cachorros e alguns cavallos, principiei a pregar e fiz 33 sermões sem mudar de tema, animando a todos que não esmorecessem que para diante havia rios de muitos peixes, campos e muitos veados, Mattos e muita caça, mel e guariroba....Com isto cessaram as mortes e mal de muitos não fora o pregador

Entre esta torre e a serra está uma distancia de 15 a 20 léguas, olhando-se mais ao longe se vê uma planície de Mato que toma toda essa distancia e pelo meio se vê sinal de correrem dois riachos...tudo faz barra no Rio Araés onde estão 14 pilões e uma tapera antiga que foi  do cunhado do Anhanguera, Manoel Pereira Calhamares, que quando viajava ao gentio aí fazia  escala por ter roça e aí ajuntava o gentio  para levar para S. Paulo.

Neste lugar da tapera onde se acham os 14 pilões é o legítimo Rio Araés onde fazem barra os ribeirões que se vêem a torre de Babel. Neste mesmo rio disse o Anhanguera a seu irmão Simão Bueno que era onde seu cunhado Calhamaro tinha achado em uma parede de pedra alta os desenhos do martírio de Cristo; e outros homens que estavam com ele que todos ouviram. É este o Rio Pilões mas seu nome próprio é Araés, eu só nisso posso falar e depois de DEUS me favorecer tanto. Servi de Piloto e peguei no leme; e logo andou a nau a caminho e foi DEUS servido levar-nos a este rio e eu ser vivo para dele dar notícias Corre para o norte e faz barra  com outro que vem da Serra Escalvada, onde eu pus uma Cruz grande por ordem do Cabo para posse da Comarca e pertence a esta pela repartição e depois eu fiz com as providências, por ordem de Martinho de Mendonça em 1736, que abrimos um caminho das gerais para estas minas......

O divertido e estudioso historiador, Eduardo Bueno que participa do programa de TV, ‘Guia Politicamente Incorreto’ num certo dia disse que os bandeirantes não deixavam relatos escritos sobre suas aventuras da viajem. Então Goiás saiu à frente, pois já temos, do Anhanguera Jr, dois relatos e um rico mapa onde minuciosamente nos contam sobre essa bandeira. Quiçá no futuro, serão achados mais documentos pelos pesquisadores.

Antes de finalizar o assunto, devo, porém, explicar aos leitores alguns detalhes:

1.O Bartolomeu Jr. foi quem povoou Goiás, mas esteve na Bandeira de seu pai 40 anos antes com apenas 12 anos. Da bandeira de seu pai, pouco se sabe, mas é nele que falam os livros de história, lá do 3º ou 4º ano do fundamental, que citavam o Anhanguera pai, como aquele que pôs fogo na aguardente, lembram-se?

2.O que é uma bandeira de exploradores? Era uma comitiva organizada por particulares, às suas próprias custas, que entravam para o interior do Brasil em busca de riquezas. Geralmente com 200 a mil participantes.

3.  O que são emboabas? Era o nome dado aos portugueses e alguns do nordeste, que queriam direito de explorar as minas de ouro achadas por paulistas, tanto quanto os paulistas. Foi uma guerra feroz (1707-1709)  onde os emboabas venceram e os vencidos deveriam aceitá-los na sua comitiva, por ordem real, por isso a implicância que José Peixoto tinha com o Anhanguera Jr.  e vice versa durante a viajem, como veremos no relato

4. A bandeira do Anhanguera pai saiu em 1682 em busca de índios para serem usados nas fazendas de cana e coisas mais. Chegou na região dos índios Goyá e vendo que traziam folhetas de ouro no pescoço quis saber onde era a mina. Sem resultado porque não queriam dizer; ameaçou então que iria fazer com os rios o que estava fazendo com a cuia d’água, só que na cuia tinha álcool que logicamente pegou fogo. Os índios com medo dos rios também pegarem fogo, contou onde eram as minas, os bandeirantes arrancaram muito ouro, mas já estavam com cargas lotadas. Dizem que levavam tantos índios cativos que dava para povoar uma vila, ficaram de voltar em outra oportunidade.

 O velho Anhanguera já alquebrado não voltou mais, e daí, todo paulista queria achar estas minas, mas ninguém achava, até que o filho já com 52 anos aceitou fazer a jornada. Uma expedição dessas ficava muito cara. O Anhanguera Jr. seria o único que teria condições para achá-la, pois, se existisse um mapa, o velho Anhanguera, já falecido na época, certamente teria dado ao filho e a ninguém mais. A instrução era ir a norte até chegar ao planalto divisor de água e virar para oeste onde tinha o Mato Grosso Goiano que era uma floresta extremamente densa que segundo o escritor John Emanoel Pohl, apresentado um século depois, “não tinha com entrar nela a não ser com machado”.

5. Planalto Divisor de Águas é a região onde nascem os rios, nascem ali e vão para o sul ou nascem ali e vão para o norte, ou para leste ou oeste, é mais ou menos a região onde nasceu Brasília – Pirenópolis (Meia Ponte) – Jaraguá (Córrego do Jaraguá) – Cidade de Goiás – (Vila Boa), observe no mapa. É como se o Brasil tivesse uma grande barriga no centro. Toda água no umbigo corre para todos os lados. A região do umbigo seria então, o divisor de águas.

Endossando os relatos anteriores, têm-se também o mapa concluído em 1751 por José Francesco Colombine que foi enviado pelo rei para demarcar o caminho do Anhanguera. O que está no mapa é o que ele conheceu. O destaque pontilhado é o caminho do bandeirante, que ficou conhecido como caminho real.

Quando Colombine terminou a sua exaustiva demarcação, 20 anos depois, muitos arraiais já haviam nascido, pois a região dos Goyá, assim que ficou conhecida como fonte riquíssima, ficou super povoada. Mesmo tendo muito ouro, não havia para todos que chegavam e aí saíam pelos sertões à sua volta com possibilidade de mais minas e iam fundando novos arraiais.

Na bandeira do Anhanguera Jr, 40 anos depois contavam, segundo alguns autores mais de 200 pessoas, 5 ou 6 paulistas e os demais portugueses e seus escravos e escravas.

Analisando o relato de José Peixoto, citado anteriormente, diz que a comitiva desviou um pouco para nordeste, eles sabiam estabelecer coordenadas de latitude e longitude dos lugares que passavam, mas com aparelhos rudimentares, observando a olho nu o Cruzeiro do Sul e nem sempre acertavam exatamente onde estavam, sendo assim e foram parar no Rio Maranhão. Neste local, José Peixoto contrariado e mais 9 outros separam, descem o Rio Maranhão e chegam, depois de muito sofrimento, ao Pará, sempre contando por escrito sua aventura.

 Ora, se eram mais de duzentos, morreram alguns, 10 desceram o rio, vamos arredondar para duzentas pessoas ali decidindo o que fazer. Leitores vamos botar a cabeça para funcionar, olhem o mapa: Se desviaram para nordeste e estavam num rio que corria para norte, o que não poderia acontecer, perceberam que estavam errados realmente.

Voltemos então ao nosso raciocínio, estão num rio e eles sabem que desceram muito para o norte, o que é lógico fazer?

  • Construir algumas canoas e voltar sempre para o lado oeste. Os rios eram os melhores caminhos do que por terra, e as águas estavam altas, pois já era início de 1723. Certo? Lá vão eles, construindo canoas e voltando para as nascentes do Rio Maranhão e aí encontra com um dos formadores do Rio Maranhão, um rio tão caudaloso quanto.
  • E aí leitores seguirão o rio da direita que vai para oeste ou seguirão para a esquerda? Muito bem, seguirão a bifurcação para oeste que é o Rio das Almas. Continuam então indo para a nascente dele,  aí o Rio das Almas vira para leste, o que devem fazer?
  • É isso aí, saltam para terra e vêem a Serra de Jaraguá, uma serra não muito alta, mede 1100 m no seu ponto mais alto, mas com características singulares: 1. Sobe abruptamente 500 m, (Saint Hilaire, escritor de Viagem às nascentes do Rio São Francisco e pela Província de Goyas, de 137 se refere a essa intensidade na subida de “Sobe a pico”)   2. Do lado norte e leste da serra é só cerrado e do lado sul e oeste é o temido Mato Grosso Goiano que é uma Floresta extremamente densa que existia, com aproximadamente 10 mil quilômetro quadrados abrangendo mais ou menos a região entre Goiânia, Inhumas, Itaguarú, Ceres, Jaraguá . 3. Do local que o rio virou para leste, e onde os bandeirantes desceram para terra, a vista da serra se torna dois picos exatamente iguais ao Pico do Jaraguá em  São Paulo, daí o nome Córrego do Jaraguá dado ao arraial que aí se formou,

O Anhanguera deve ter se sentido em casa pois reconheceu o local, aí que está ao pé da Serra, a grande Pedra com os registro dos Martírios de Cristo, vejam a foto e veja comentário do relato de Urbano do Couto e de Pedro Taques. Por muito tempo os paulistas ficaram em dúvidas; o que seria Martírios de Cristo? Seria uma serra todinha de ouro? Não, são desenhos feitos entalhados na pedra e que até hoje não se definiu feito por quem e quando? Estão ainda lá para alguém descobrir sua datação. Veja a foto dos desenhos. Para pessoas com alto grau de religiosidade aquilo lembrava sim, os Martírios de Cristo. Certo é que uma seta mostrando a direção do caminho daí para os Goyá e a palavra PAI escrita no seu rodapé, foram feitas pelos bandeirantes.

Em’ Nobiliarquia Paulistana’, genealogia e registros da época cujo autor era Pedro Taques, sobrinho do genro do Anhanguera Jr., o João Leite da Silva Ortiz, ao relatar sobre a família do Anhanguera Pai, diz que: ‘...Bartolomeu Bueno da Silva casou com Isabel Cardoso e teve:.............. etc., Francisca Cardoso é uma das filhas que casou com Manoel Peres Calhamaro e que este já tinha deixado uma tapera onde arregimentou muitos índios e os reunia ali junto a uma grande parede de pedra com os desenhos dos Martírios de Cristo.’

No segundo relato atribuído ao companheiro do Anhanguera Jr, o Urbano do Couto e Menezes, está escrito: ‘ Chegamos nesse lugar da tapera ...Nesse mesmo dia, disse o Anhanguera Jr. ao seu irmão Simão Bueno que era onde seu cunhado Calhamaro tinha achado numa parede de pedra, os Martírios de Cristo e outros homens que estavam com ele, que todos ouviram.’

Que tapera era essa? No IPHAN, sob o numero Ni 113 tem o registro de um Sítio Arqueológico, junto à estrada real que passa por Jaraguá, onde consta uma grande parede de pedra, mais ou menos 5m x 4m onde estão registrados tais desenhos.

Junto, um muro de pedras de 30mx15m, cercando uma capela com 100m2. Infelizmente, atualmente só as bases evidenciadas, porque em 1930, num desejo de se fazer uma hidrelétrica no lugar, retiraram suas paredes de pedras e fizeram uma barragem que nunca segurou água. 

Tal sítio foi estudado pela Arqueóloga Margareth de Lourdes Souza que mesmo sem saber a história antiga do lugar fez um trabalho minucioso (mal sabe ela o quanto importante foi seu estudo), conforme fotos. Era a Capela de São José do Córrego do Jaraguá, cujos registros constam nos livros de óbitos, casamentos e batistérios que ainda existem e que funcionou até 1748, daí, quando foi autorizada a funcionar a imensa Capela de Nossa Senhora da Penha do outro lado da serra, no atual Jaraguá. O muro a sua volta deve ser para manter os índios aprisionados e para se defenderem (num futuro próximo passou a ser o engelho do português Batista José da Rocha rico cidadão de Jaraguá). Consta que os índios que o sogro do Calhamaro aprisionou, dava para povoar uma vila O Arraial mudou de lado da Serra para um local mais ralo e saudável, pois antes estava na beira do Mato Grosso Goiano e às margens do Mato Grosso e do Rio Pari, que como o Rio Nilo, deixa encharcada suas margens, sendo propício ao habitat de mosquitos, cobras etc. Excelente local para roças.

Interessante observar o mapa de 1751 nota-se que em toda a extensão, a única menção a alguma floresta é ali em Jaraguá, desenharam umas arvorezinhas e o pontilhado do caminho passando dentro dela. Porque será? Essa era a floresta diferenciada que segundo John Emanoel Pohl “o Mato Grosso Goiano era uma floresta tão densa que só com machado para entrar nela” e esse Mato estendia-se do sul da serra, passando por Goiânia, Itaguarú etc.

Muito bem, e aí o que aconteceu com os bandeirantes? Ficaram perdidos 3 anos e 2 meses? Que nada, a região era rica em ouro, então se arrancharam ali, plantando roças, garimpando e construindo um caminho dentro do mato, com seus poucos machados. Segundo o General Raymundo José da Cunha Mattos, que um século depois, escreve em seu livro, Chorografhia Histórica da Província de Goyas, esse caminho tinha 40 léguas. Cá comigo achei meio exagerado, talvez considerasse a légua de 4 km o que era comum e talvez se referisse a estrada até Vila Boa (Cidade de Goiás). Veja no mapa.

Fato é que foi muito difícil fazer esse trajeto com machado. Fica aqui a pergunta, a seta desenhada na pedra teria sido feita antes ou foi feita pela bandeira do Anhanguera Jr? Penso que foi antes, mas fica para os próximos pesquisadores.

Descobriram a região dos Goiá, Daí pra frente o goiano já conhece.

Especificamente em Jaraguá, alguns voltam para o local da Tapera que acabou sendo bastante povoado continuando com o nome Córrego do Jaraguá que era também o nome do córrego que desce das entranhas de serra, muito rico de ouro no seu leito e que vai até o arraial, no local chamado ‘tapera de Calhamaro’ depois Córrego do Jaraguá.

. O Arraial mudou para o outro lado da Serra, estava apertado entre a serra e o mato denso, cheio de animais, mas ficou prejudicado por ter saído do caminho mais curto para Vila Boa que fez com que o arraial ficasse meio abandonado. Disse o General Raimundo da Cunha Mattos, 100 anos depois: “‘ ficou 6 léguas mais longe mas foi bom porque evita a passagem de nefastos viajantes”.

Fiz questão de fazer essa matéria que foi resultado de 40 anos debruçada em documentos e mapas, já estou no quarto livro, o último a ser terminado fazendo a descendência dos vários portugueses e paulistas que aqui ficaram. Com essa pandemia, a gente pode estar vivo hoje e amanhã não, sou uma pessoa de risco, não poderia deixar perder o resultado de meu estudo que ainda não estava no papel.

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