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OPINIÃO

Sobre caricaturas e tríplice hélice

Há alguns dias, em um grupo de WhatsApp de um ambiente de inovação, me deparei com algo inusitado: a constatação da visão caricata da universidade pública brasileira. A visão caricata remonta a imagem de uma universidade distante da vida e da sociedade, alheia e descomprometida, em seu trabalho, com as perspectivas de mudanças sociais necessárias para o desenvolvimento e a construção de uma sociedade mais justa, viável e estável, em todos os seus parâmetros.

O estranhamento se deu, de início, não pela existência dessa imagem caricata, visto que os ataques que as universidades vêm sofrendo denotam exatamente essa imagem. O estranhamento se deu pelo ambiente em que esta visão foi deflagrada: um ambiente de inovação, cujo modelo de desenvolvimento é a chamada tríplice hélice, a triangulação entre o poder público, o mercado e as universidades. Ora, pareceu-me uma desconstrução da crença na tríplice hélice em terras tupiniquins. Não há de se pensar em ambiente de inovação baseado na tríplice hélice se os modelos caricatos da universidade distante, do mercado explorador e do poder público ineficiente estiverem presentes. Crer que a universidade pública faz apologia à pobreza, que o mercado quer apenas explorar clientes e trabalhadores ou que o poder público padece do mal burocrático e corrupto que o faz ineficiente é não acreditar na possibilidade de um sistema de inovação baseado na tríplice hélice.

Já temos um problema conceitual ao considerar uma quarta hélice, a sociedade. Entendo que as três hélices já são sociedade: a sociedade é universidade, é mercado e é poder público. Ao pontuar uma distinção da sociedade com as três hélices, estamos reiterando a perspectiva caricata de que a universidade não faz parte da sociedade, do mesmo modo que o mercado não o é, além de atacar o conceito de democracia, fazendo a distinção de sociedade e poder público. O poder público é povo, é esse o conceito de democracia: o poder exercido pelo povo, pela sociedade. Não havemos de criar uma distinção nefasta para a compreensão de uma sociedade que organiza o modo de se perpetuar e desenvolver pela educação, que se organiza para produzir, distribuir e consumir bens, o mercado, e que se organiza para gerir a si mesma, o poder público.

Enquanto prevalecer a imagem caricata de universidades desagregadas da sociedade, de um mercado cujo objetivo é explorar a todos e um poder público que mais atrapalha que ajuda a sociedade, todos eles distintos do que denominamos sociedade, jamais poderemos avançar ou construir alianças, quando mais um ecossistema voltado para a inovação.

É preciso enxergar que a pesquisa, nas universidades públicas brasileiras, são responsáveis pela maior parte das invenções e inovações do país. Para citar dois exemplos, a UFG acaba de criar um método de detecção de vários tipos de câncer analisando cera de ouvido e acaba de inventar uma fonte emissora de luz mais eficiente e barata que o LED e o OLED. As duas pesquisas podem revolucionar suas áreas, no mundo. Mas cabe ao mercado buscar essas inovações e levá-las ao mundo, torná-las operacionais enquanto produto, consolidando a ideia de inovação. E cabe ao poder público oportunizar, por meio de leis e programas, o avanço contínuo da sociedade que ele representa, eliminando barreiras e, eventualmente, aportando recursos para as áreas estratégicas da sociedade.

Outro exemplo que posso apresentar diz respeito a mim mesmo: sou professor da UFG, pesquisador de mídias interativas, incluindo cidades inteligentes. De uma pesquisa iniciada no Media Lab / UFG surgiu o projeto da cidade inteligente para Aparecida de Goiânia, em implantação desde 2017, vencedora de prêmios nacionais e internacionais, e que conta com a articulação da tríplice hélice como motor de desenvolvimento e sustentabilidade.

De fato, não me causa apenas estranhamento enxergar visões caricatas da universidade pública brasileira em ambientes inovativos: causa-me a premente reflexão de como podemos superar preconceitos baseados em experiências individuais e nos assumir como instrumentos coletivos da construção de uma cultura baseada em acesso e compartilhamento, inovação e desenvolvimento.
Cleomar RochaProfessor Associado - UFG

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