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OPINIÃO

Segurança pública, inteligência e transdisciplinaridade

Introdução

Ao analisarmos a História recente, verificamos que, após a 2ª Guerra Mundial, surgiu um novo cenário no mundo devido à sua bipolarização em duas esferas de influência: a norteamericana e a soviética. Com a volta da paz, houve grande expansão do comércio, sendo viabilizados acordos internacionais como o do GATT- Acordo Geral de Tarifa de Comércio (1947) e a OMC - Organização Mundial do Comércio (1995), além do avanço da tecnologia, com grande evolução especialmente na área de telecomunicações, o que permitiu um processo de integração global devido à aceleração de trocas de informações instantâneas que promoveram a agilização dos negócios, a expansão mundial do comércio e a intensificação do fluxo de capitais entre países.

         Os grandes grupos empresariais ampliaram suas operações, estabelecendo filiais em quase todos os continentes. A partir daí, houve redefinições no processo produtivo que seguiram o receituário neoliberal do “Estado Mínimo”, ou seja: sensível redução de recursos governamentais nas áreas sociais, gerando problemas cruciais principalmente o aumento da pobreza e, mesmo, da miséria.

Paralelamente, ocorreram o fim da antiga União Soviética e do chamado Bloco Socialista, a abertura do mercado chinês e a criação dos blocos econômicos regionais, acontecimentos esses que marcaram a década de 1990 e aceleraram um fenômeno denominado de “globalização”.

Como conseqüência, surgiu um novo cenário de relações internacionais, em que a bipolaridade ideológica capitalismo-comunismo foi substituída por conflitos regionais e internos por meio de guerras civis, guerrilhas, movimentos separatistas, tendo por objetivo a luta política e por espaços territoriais, afirmação da identidade nacional, resguardando a origem étnica, a língua e as religiões, estas últimas constituindo-se um espaço específico de conflito pois buscam a reafirmação de suas doutrinas para manter adeptos e conquistar novos membros.

No pós-Guerra Fria (1945-1991), observou-se um grande sentimento de falta de existência de autoridade e segurança e esse contexto propiciou o surgimento de novos atores e novos conflitos, o que dificultou reconhecer a diferença entre a violência política e a criminal.

Ao envolver outros atores, e não somente o Estado e o Exército, passam a ser articuladas novas alianças ou redes sócio-econômico-políticas dentro de um novo contexto que Mark Duffield (1994) chamou de “economia política de guerra interna”, que tem como referência a exploração e exportação de recursos naturais, narcóticos e tráfico de armas, atividades consideradas ilegais e que formam uma economia paralela, incentivando o conflito e sua continuação.

         Segundo dados do Drug Enforcement Administration (DEA/USA, 2002), algumas organizações terroristas financiam suas operações através do tráfico de drogas ilegais. Portanto, para combater o terrorismo, deve-se também combater o narcotráfico.

As fases contemporâneas do conflito

No panorama contemporâneo do conflito, o terrorismo e o crime organizado são as suas faces mais visíveis.

Tanto o terrorismo quanto o crime organizado apresentam características específicas. Ambos utilizam argumentações, de natureza social, que tentam justificar suas atividades ilegais, baseadas genericamente em que o Estado ou os governos são culpados pelo quase total abandono do povo de determinada região ou país, o que gera descontentamento e necessidade de intervenção para alteração da situação.

No entanto, na verdade o terrorismo visa unicamente a busca pelo poder, por motivos econômicos, geopolíticos, religiosos e guerra de conquista étnica de território.

Já o crime organizado objetiva vultosos lucros através de atividades ilegais criminosas, como drogas, seqüestros, pirataria, tráfico de armas e de mulheres e lavagem de dinheiro, utilizando-se inicialmente de pessoas em situação de pobreza e de risco social, mas o crime organizado atual envolve tanto os criminosos sofisticados (como os que se apresentam na sociedade como proprietários de empresas com surpreendente performance mas que, na verdade, constituem-se apenas “empresas de fachada” para a efetiva lavagem do dinheiro de origem ilícita) quanto a mesma modalidade de criminosos clássicos, mas agora com real ordenação, cálculo de riscos, investimentos, treinamento e seleção de pessoal especializado para a atividade a ser desenvolvida, alto grau de expansão e mimetização, contando com crescente mobilidade e constante adaptação às circunstâncias.

Um dos efeitos da globalização diz respeito à modernização, organização e internacionalização do crime que, de forma imediata ou decorrente, ameaça o Estado Democrático de Direito ao explorar suas deficiências, corromper sua estrutura, preencher lacunas sociais existentes e usurpar suas funções, transformando-se em verdadeiro, palpável, presente e atuante poder paralelo não legítimo. O que Danilo Cunha (2011) caracterizou como uma efetiva manifestação sócio-antropológica da criminalidade.

       A sociedade em risco gera, assim, a sociedade da insegurança e da sensação de impunidade onde o crime organizado em suas diversas modalidades, ao promover a circulação de pessoas, capitais e mesmo empresas em escala global com o intuito de favorecer a garantia dos lucros provenientes de outras práticas ilícitas, com o alcance de vítimas em todos os continentes e extratos sociais, coloca todos a bordo de perigo real e globalizado, pelo que é intuitiva a necessidade de uma atuação conjunta de combate, vigilância e prevenção

O enfrentamento dessa multifacetada forma de criminalidade

Em seu relatório 2014/15, denominado O Estado dos Direitos Humanos no Mundo, a Anistia Internacional considerou que 2014 foi um ano catastrófico para milhões de pessoas, mundialmente, atingidas pela violência e que a resposta global a conflitos e abusos por Estados e grupos armados tem sido vergonhosa e ineficaz.

Quanto ao Brasil, asseverou que a crise na segurança pública é muito grave, destacando, principalmente, o aumento dos homicídios cometidos por policiais, que tiveram um crescimento muito impressionante ao longo de 2014, sobretudo no Rio de Janeiro e São Paulo, assim como podemos vê-la também na enorme impunidade que grassa com relação a violações de direitos humanos cometidas por agentes do Estado, além da dificuldade de se investigar homicídios no Brasil, já que em torno de 85% deles permanecem impunes, sem que as autoridades consigam apontar quem foram as pessoas responsáveis por estes crimes.

Assim sendo, diante dos desafios enfrentados pelo mundo atual e, via de conseqüência, pelo Brasil, a busca do poder de antecipação tornou-se algo fundamental em todos os campos, principalmente em relação a esse fenômeno que assola os países globalmente, o crime organizado e seus vários matizes de atividades.

No Brasil, apesar dos avanços não se fazerem sentir imediatamente, a segurança pública tem pautado com prioridade a preocupação das autoridades dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, tanto que a Constituição Federal de 1988 esculpiu em seu texto o Art. 144, que dispõe que a segurança pública é "dever do estado, direito e responsabilidade de todos” e a preservação desse direito indisponível deve ser exercido nas esferas federal, estadual e municipal.

O Plano Nacional de Segurança Pública - PNSP tem consignado, entre seus principais objetivos, o de “enfrentamento às organizações criminosas, com ênfase nos delitos transnacionais, narcotráfico e tráfico de armas, em especial atenção à área de fronteira”.

O insucesso das políticas tradicionais no controle da criminalidade e da violência tem aberto espaço para reformas e propostas inovadoras, no sentido de promover uma mudança completa de paradigma na segurança pública.

Esse desafio, complexo e dinâmico por natureza, exige dos órgãos de segurança pública a união de esforços e vontades para o enfrentamento da criminalidade violenta, além de um diferenciado arranjo de gestão, com atuação coordenada, integrada, articulada e compartilhamento de estruturas, sistemas, tecnologia, logística e o componente essencial da atividade de Inteligência permeando essa teia virtuosa de medidas, visando o poder de antecipação.

É, realmente, decisiva a importância da atividade de inteligência de segurança pública na prevenção criminal. Os dados, informações e conhecimentos produzidos pela Inteligência de Segurança Pública-ISP têm papel significativo na prevenção criminal, por servir de subsídio, de caráter estratégico, ao tomador de decisão, na elaboração de políticas públicas vinculadas à análise de cenários e prospecção, assim como pela sua capacidade de reduzir o emprego de recursos humanos, materiais (viaturas, armamentos, equipamentos etc), financeiros e tecnológicos e também a otimização do emprego de força pela polícia nos encontros com o público e em suas atividades essenciais de prevenir, repreender e investigar crimes, sua materialidade e autoria.

         O ex-Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos pregava que “Segurança Pública se faz de três formas: inteligência, integração e corregedoria”. No entanto, a prática diária nos consolida a certeza de que a segurança pública é mais que isso, é o anteparo das outras políticas públicas, que nela se apóiam para cumprirem seus papéis.        Concordamos com o delegado federal Victor Poubel, no sentido de que a segurança pública possui cinco pilares de sustentação: a) gestão policial estratégica; b) inteligência policial eficaz; c) corregedoria de polícia atuante; d) sistema penitenciário seguro; e) apoio participativo da população. A eficácia do todo, depende de cada um desses pilares, o que impactará no êxito de qualquer política de segurança pública a ser implementada.

Segurança pública e transdisciplinaridade

No ambiente acadêmico, quando se estuda a segurança pública, dá-se-lhe o escopo multidisciplinar, que é uma ferramenta de ensino que reúne diversas áreas do conhecimento, dentro de um assunto específico, onde tudo está usualmente interligado.

Ao analisarmos o fenômeno da criminalidade organizada, verificamos que está inserida no contexto da globalização, gerando as recentes alterações político-criminais no que tange ao tratamento das novas modalidades delitivas no Brasil. Apresenta-se um panorama de alta complexidade do crime e das dificuldades de caracterização a ela inerentes, especialmente em relação à definição de organização criminosa para fins de conferir uma mínima segurança jurídica, ao sistema penal.

Ante essa complexificação do crime, a abordagem eficaz se volta para a transdisciplinaridade, já que ela significa mais do que disciplinas variadas que colaboram entre si em um projeto com um conhecimento comum a elas, mas sim, também, que há um modo de pensar organizador que pode atravessar as disciplinas e que pode dar uma espécie de unidade necessária e suficiente, oportunizada pela inteligência integrada.

No Brasil, a segurança pública já é um dos problemas mais impactantes para a sociedade, como em outros países em que essa área está intrinsecamente vinculada a assuntos fundamentais do Estado contemporâneo, como os setores da saúde, da educação e do trabalho, formando com eles uma combinação imprescindível para o resgate da cidadania, o desenvolvimento humano pleno e a garantia da ordem pública e do Estado de Direito.

No âmbito acadêmico, já vem sendo abordado sob o enfoque de multidisciplinaridade científica. Mesmo antes das modernas ciências sociais, as ciências políticas já se focavam na criminalidade através das “teorias da natureza humana”, como verificamos nos antigos clássicos dos juristas italiano Cesare Bonesana, marquês de Beccaria, e inglês Jeremy Bentham. Atualmente, a psicologia considera o crime uma manifestação do chamado “comportamento desviante”, a antropologia da violência na sua dimensão cultural, sendo também intensamente estudado sociologicamente como decorrente das relações sociais. Já se pode constatar até mesmo uma ‘economia do crime’, que correlaciona condições e variáveis econômicas com índices, taxas e quocientes de criminalidade, numa corrente da ciência da escassez.

Tem-se procurado, ainda, determinar deduções válidas e consistentes sobre as medidas de ocorrências de crimes, identificando correlações e vínculos (“análise relacional ou de vínculos”) que apontam significado entre suas entidades constitutivas, por intermédio de outras ciências, caso da estatística, da ciência da informação e da geografia. Como resultado, ocorrem resumos inteligíveis de grandes quantidades de dados, propiciando significado a um aparente “caos”, pela possibilidade que têm os recursos tecnológicos de organizar e processar grandes volumes de variáveis quantitativas e qualitativas em espaços de tempo cada vez menores. A combinação desse espectro de recursos interdisciplinares tornou-se fundamental para que os operadores da segurança pública e do direito, com o concurso das técnicas das ciências jurídicas, possam fazer com que as atividades de controle, da parte do Estado, reflitam a realidade e as necessidades dos tempos atuais na área de segurança pública.

Essa combinação transdisciplinar na abordagem do crime e da violência constitui hoje uma seara acadêmica própria – a da área de “justiça criminal”. Por exemplo, nos Estados Unidos da América têm sido referência mundial os centros de excelência de justiça criminal existentes em New York (Universidade da Cidade de New York), de College Park (Universidade do Estado de Maryland) e de Massachusetts, em que a Harvard Kennedy School, dentro de sua missão de preparar futuros líderes de sociedades democráticas, conduz também um programa de pós-graduação em Justiça Criminal que patrocina vários tipos de eventos, incluindo “Sessões Executivas”, discussões entre painéis de experts (policiais inclusive), autoridades internacionais, docentes da área e membros da própria Universidade de Harvard. Em tais instituições estão materializados prestigiosos departamentos acadêmicos de justiça criminal em que são realizados cursos e estudos de extensão, graduação, especialização e pós-graduação nessa relativamente nova disciplina.

A Austrália, Canadá, Inglaterra e Nova Zelândia seguem essa tendência.

Isso também começa a acontecer no Brasil, pelo estudo embrionário da chamada Inteligência de Segurança Pública (ISP), que vem crescendo e sendo melhor desenvolvido a partir de organizações, métodos e produtos que geram conhecimento para prever, prevenir e reprimir expressões da violência, do crime e da desordem. Expande-se, assim, o alcance da tradicional área de “segurança pública” para enfoque de maior abrangência, a “defesa social”, de cunho interdisciplinar e transversalidade que deve ser expressa também em políticas, planos, programas e ações inter-setoriais governamentais de gestão.

Já é de conhecimento público que a investigação policial tradicional e empírica sofre com as limitações normais do intelecto humano e não é mais suficiente para fazer frente aos delitos complexos, ao novo crime urbano (que se fortalece diante das deficiências do Estado e da Justiça), com características de organização e atuação diversificada.

Por mais preparado que seja, o cérebro do policial não tem a capacidade de estabelecer raciocínio lógico diante de milhares de informações e estabelecer o relacionamento dos acontecimentos observáveis do fenômeno, o crime estruturado.

Atualmente, a inteligência policial, em uma instituição que seja realmente organizada, dispõe do setor de análise criminal, que consiste num processo de produção de conhecimento que dá suporte às atividades operacionais de investigação e policiamento ostensivo. Compreende o ato de separar as diversas partes do fenômeno da criminalidade, examinando cada uma delas com o fito de conhecer sua natureza, proporções, funções e relações, buscando subsidiar uma pronta resposta às ocorrências criminais havidas num determinado tempo e lugar.

Esse setor vital faz parte de uma arquitetura integrada com todos os sistemas de armazenamento de dados dos órgãos policiais, além de se valer da Inteligência Tecnológica como recurso valioso e capaz do desenvolvimento de um novo mecanismo de processamento e identificação dos delitos e suas relações no tempo, sendo ferramenta com indiscutível poder de produzir efeito real contra a criminalidade atual, através da gestão das operações técnicas com emprego de recursos tecnológicos (interceptação, escuta e gravação telefônica ou ambiental; inteligência de sinais, de imagens e de redes, dentre outras), cumprindo função de capital importância, pois auxilia significativamente o processo investigativo e aumenta o número de prisões e esclarecimento de casos.

A tecnologia, utilizada dentro dos parâmetros da lei, proporciona recursos sofisticados para a obtenção de dados, indícios e provas na investigação criminal. A captação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, seu registro e análise constituem hoje diligência rotineira de órgãos de inteligência policial estruturados, principalmente quando se pretende desarticular quadrilhas especializadas na área do tráfico de armas e entorpecentes, contrafação, roubo de cargas, grupos de extermínio etc.

Nesse sentido, podemos citar as investigações de casos complexos que envolvem grande quantidade de dados em múltiplos formatos, originários de fontes diversas, procurando-se “a chave da investigação” em algum lugar nestes dados. No entanto, esta se mantém geralmente encoberta pela intensa e aparente dispersão das informações. Apenas para citar um exemplo, utilizando-se a tecnologia de análise de vínculos, por meio do Investigative Analysis Software i2, tais dados e informações podem ser “explodidos” de maneira gráfica, demonstrando as ligações entre as informações e as fontes, facilitando sua compreensão e permitindo assim a transformação de volumes de dados díspares (pelo acesso às bases de dados disponíveis, exibindo todos os vínculos existentes relativamente a um determinado assunto sob investigação, que pode ser um criminoso, uma organização criminosa etc) em informações conclusivas. Essa é simplesmente uma das diversificadas medidas que podem ser adotadas para o aperfeiçoamento dos serviços prestados à sociedade pelos agentes públicos responsáveis pela segurança e a defesa social.

          Não há mais lugar para improvisações no campo da segurança pública. Muito além de um adequado plano de cargos e salários para esses dedicados profissionais, o Estado brasileiro e os entes federados precisam decisivamente investir em tecnologia, treinamento e aperfeiçoamento de seus policiais, assim como na gestão estratégica dos seus recursos humanos, financeiros e materiais para que cumpra efetivamente seu papel constitucional de prover a segurança a que os cidadãos têm direito e de que tanto necessitam para poderem trabalhar em paz e levar o nosso Brasil ao patamar de desenvolvimento sustentado e de bem-estar social a que todos aspiramos.

HUGO CÉSAR FRAGA PRETO é professor, oficial da reserva do Exército Brasileiro, analista sênior de Inteligência Estratégica de Estado, Administrador, Gestor Superior em Logística, responsável pela área de pós-graduação de Inteligência de Segurança Pública da Escola Superior da Polícia Civil de Goiás, consultor e autor do livro “Segurança Pública Inteligente – Doutrina e Técnicas da Atividade”.

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