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OPINIÃO

Crença e prática religiosa condicionam privilégios - I

“O Estado é o intermediário entre o homem e a liberdade humana, ‘assim como Cristo é o mediador a quem o homem atribui toda a sua divindade e todo o seu constrangimento reli­gioso’” (MARX).

No outono de 1843, Zur Judenfrage dá títu­lo a um ensaio de Karl Marx escrito como uma das primeiras tentativas do autor que, mesmo tendo origem judaica, foi criticado sobre a pos­sibilidade de sua obra carregar argumentação do antissemitismo, talvez, uma tentativa de desqualificar seu discurso ao lidar com ca­tegorias que seriam chamadas mais tarde de materialismo histórico – concepção materia­lista da história. Em A Questão Judaica, Marx, filósofo, sociólogo, jornalista e revolucionário socialista, nascido na Prússia, mais tarde apá­trida que passou grande parte da vida em Lon­dres-Reino Unido discute sobre a peleja de Ju­deus e alemães a procurar emancipação civil e política, numa época em que ninguém era politicamente emancipado, e todos, em espe­cial sendo alemães, deveriam trabalhar pela emancipação política da humanidade. Tal­vez os judeus almejassem a igualdade com os “súditos cristãos”, pois consideravam o Estado cristão como legítimo, assim como o regime de total escravidão.

“Por que deve o alemão interessar pela li­bertação do judeu, se em contrapartida o ju­deu não interessa pela libertação do alemão? O Estado cristão conhece apenas os privilégios e direitos, assim, os judeus desejam as vanta­gens das quais os cristãos são permitidos” (p. 13-14). A reivindicação do Estado cristão pe­dia, então, que se abandonasse o preconceito religioso. Mas e o judeu, seria ele capaz de re­nunciar ao seu “próprio” preconceito, já que se encontrava em oposição “religiosa” à religião dominante? De acordo com Bauer (in Marx, 2004) “temos de emancipar-nos a nós próprios antes de podermos emancipar os outros”. Para tanto um dos caminhos seria abolir a religião “assim que o judeu e o cristão reconhecessem apenas nas suas religiões opostas ‘diferentes estágios no desenvolvimento do espírito hu­mano’”, problema da relação entre religião e Estado, da contradição entre preconceito reli­gioso e emancipação política na qual o judeu era, naquele presente, judeu. E permanecia como tal, embora fosse um cidadão e vives­se numa condição humana universal. Sua ca­racterística judaica e restrita acabava sempre por triunfar diante das obrigações humanas e políticas: “Só em sentido sofisticado, segundo a aparência, poderá o judeu, na vida política, permanecer judeu” (BAUER, p. 57).

A França, em conexão com a questão ju­daica, mostrava-se “o espetáculo de uma vida que é livre, mas que anula a sua liberdade por lei, declarando-a assim como pura aparência, e que, por outro lado, nega pelos atos a sua lei li­vre” (MARX). A igualdade de todos os cidadãos surge em réplica vigorosa na vida, dominada e fragmentada por privilégios religiosos. A falta de liberdade da vida influencia a lei, obrigan­do-a a sancionar a divisão dos cidadãos, que em si são livres, em opressores e oprimidos, além disso, seria necessário abolir todos os pri­vilégios religiosos, incluindo o monopólio de uma igreja privilegiada, de acordo com Bauer: “Retire-se da religião o poder de excomungar e ela deixará de existir” (Die Judenfrage, p. 66). O autor afirma desejar “os judeus renunciem ao judaísmo e que o homem em geral abandone toda a religião, a fim de se emancipar como ci­dadão”, num Estado que pressupõe a religião que ainda não é um Estado verdadeiro ou real. Nos Estados Unidos o Estado é estranho a to­dos os cultos. Segundo Beaumont, “a Consti­tuição não impõe as crenças e a prática religio­sa como condição de privilégios” (in Marx, p. 18). A existência da religião não se opõe de ne­nhum modo à perfeição do Estado, nem surge como a base, mas manifestação da insuficiên­cia secular, onde a história dissolveu-se na su­perstição ao longo de muito tempo; nós agora reduzimos a superstição à história.

A emancipação política do judeu, do cristão – do homem religioso em geral – é a emancipa­ção do Estado em relação ao judaísmo, ao cris­tianismo e à religião como um todo, de acordo com Bauer, a depender da seguinte condição: “Seria ainda necessário abolir todos os privilé­gios religiosos, incluindo o monopólio de uma igreja privilegiada.” O Estado é o intermediário entre o homem e a liberdade humana, “assim como Cristo é o mediador a quem o homem atribui toda a sua divindade e todo o seu cons­trangimento ‘religioso’” (p. 20). O Estado elimi­na, à sua maneira, as distinções estabelecidas por nascimento, posição social, educação e profissão, ao decretar que o nascimento, a po­sição social, a educação e a profissão são distin­ções “não políticas”. Somente assim, por cima dos elementos particulares, é que o Estado se constitui como universalidade (p. 21). O ho­mem leva, não só no pensamento ou na cons­ciência, mas na “realidade”, na vida, uma du­pla essência – celestial e “terrestre”. O homem na sociedade civil é um ser profano, onde apa­rece a si mesmo e aos outros como indivíduo real, surge como fenômeno ilusório, em oposi­ção, no Estado, onde é olhado como ser genéri­co. O que difere o homem religioso do cidadão é a diferença entre este e o comerciante, o jor­naleiro e o cidadão, o proprietário de terras, en­tre “o indivíduo” vivo e o cidadão. A emancipa­ção política representa um enorme progresso. Porém, não constitui a forma final de emanci­pação humana (p. 23). A emancipação política não revoga, nem sequer procura abolir, a reli­giosidade “real” do homem. A desintegração do homem em judeu e cidadão, protestante e cidadão, homem religioso e cidadão, a própria “emancipação política”, o modo “político” de se emancipar da religião.

O drama político termina necessaria­mente com a restauração da religião, da pro­priedade privada, de todos os elementos da sociedade civil, tal como a guerra termina com a paz. O Estado cristão aprimorado não é o chamado Estado cristão, é antes o Esta­do ateu, o Estado democrático, que relega a religião para o meio do outros elementos da sociedade civil. Estado que ainda é “teleoló­gico” e declara oficialmente o credo cristão, que ainda não se atreve a declarar-se como “Estado”, não conseguiu expressar em for­ma “secular”, “humana”, na sua “realidade” com Estado, a base humana de que o cristia­nismo constitui a expressão extática. O inti­tulado Estado cristão é o Estado incorreto, ao qual a religião cristã serve de “apêndice” e de “santificação” da própria deficiência, imper­feito, que declara a religião como sua “base”, tem uma atitude política perante a religião, e uma atitude religiosa perante a política. Es­tado que aceita a “Bíblia” como sua “Carta” e o cristianismo como regra soberana, a pon­derar-se pelas palavras e linguagem consa­gradas do “Livro Santo”. Só conseguirá este Estado esquivar-se à agonia interior transfor­mando-se em lacaio da Igreja Católica.

E o pulso, ainda pulsa!

(Antônio Lopes, escritor, filósofo, professor universitário, mestre em Serviço Social e dou­torando em Ciências da Religião/PUC-Goiás, mestrando em Direitos Humanos/UFG)

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