Descontados os efeitos da sazonalidade e da taxa de inflação, a arrecadação federal parece dar sinais de recuperação. Confirma os indícios setoriais que apontam para o crescimento de 1% do PIB em 2017. Tudo sugere que deixamos para trás a tremenda recessão (2014-2016), resultado de um voluntarismo oportunista que, somado a uma ambição política desmedida, deixou como herança uma redução de 9% da renda per capita dos brasileiros, 13 milhões de desempregados e a destruição do equilíbrio fiscal.
Entre 2013 (antes do “vale tudo” eleitoral) e 2016 (que já estava dado quando Temer assumiu), o superávit primário de 1,7% do PIB já havia se transformado em um déficit primário de 2,5%; o déficit nominal do Tesouro já havia triplicado de 3% para 9% do PIB e a dívida pública já havia explodido, de 52% para 70% do PIB. O curioso é que a oposição pretende convencer a sociedade de que isso se deve a Temer!
Nos tumultuados 18 meses de seu governo, ele se manteve determinado. Com a colaboração do Congresso, aprovou o que parecia impossível: uma restrição constitucional à expansão do gasto público. Foi, apenas, o primeiro passo para o restabelecimento do equilíbrio fiscal. Mesmo depois da trágica delação superpremiada da JBS, cada dia mais nebulosa, aprovou-se um importante aggiornamento da legislação trabalhista que dará um pouco mais de flexibilidade ao mercado.
É óbvio que para funcionar bem ela requer um aumento da paridade de poder entre o “trabalho” e o “capital”. Isso exigirá organizações sindicais independentes (do Estado e do poder econômico) e competitivas. A Operação Lava Jato (a única unanimidade na nossa sociedade lamentavelmente tão dividida) revelou que a unicidade geográfica e o Imposto Sindical criaram sindicatos acomodados e que alguns dirigentes traíram seus associados em benefício próprio.
A organização da sociedade em um regime que combina objetivos não plenamente conciliáveis – 1. Liberdade de iniciativa. 2. Relativa igualdade. 3. Eficiência produtiva que permita a cada um dos seus membros gozá-la – exige que os trabalhadores se organizem politicamente para enfrentar o poder político do “capital”. Lembremos que a produção eficiente do PIB, a soma de todos os bens e serviços produzidos pela combinação do “trabalho vivo” com o capital (trabalho passado cristalizado em bens de produção que multiplicam a produtividade do trabalho vivo) acumulado nas mãos de alguns cidadãos mais criativos, diligentes ou afortunados, é um problema técnico.
Sua solução exige: 1. A utilização prática do conhecimento científico acumulado pela sociedade. 2. Uma quantidade fantástica de informações para compatibilizar o que deve ser produzido para atender aos desejos da coletividade. Como o homem tem lidado com esse problema? Desde tempos imemoriais, reconheceu: 1. As vantagens crescentes da divisão do trabalho. 2. Que as “feiras” (os “mercados”) estabeleciam relações de troca (os preços) entre bens e serviços aceitáveis pelas duas partes. 3. Que eles tendiam a igualar a quantidade disponível de cada bem ou serviço com os desejados pela sociedade.
Os economistas refinaram o funcionamento dos “mercados” competitivos e “descobriram” que são tão mais eficientes quanto mais seguro for um “direito de propriedade”, que transcende a tudo o que se poderia considerar como “natural”. O “mercado” é uma espécie de instituição gerada espontaneamente nas relações sociais. Não tem nada a ver – ideologicamente – com o “capitalismo”.
A verdade é que todas as sugestões do “socialismo democrático” foram piores do que o “capitalismo”. Ignoraram que não há como emergir de um cérebro peregrino uma solução que torne imediatamente factível uma sociedade que compatibilize liberdade, igualdade e eficiência produtiva.
Se um dia chegarmos a essa sociedade “civilizada”, há de ser pela continuidade do processo histórico seletivo, quase biológico, que desde o século XVIII vem aumentando a paridade de poder entre o “trabalho” e o “capital” por meio do uso sistemático da política, simbolizada numa “urna” livre e honesta, combinada com a organização de “mercados” competitivos bem regulados por um Estado enxuto constitucionalmente limitado. É por isso que vale a pena apoiar as reformas propostas pelo governo.
(Delfim Netto. Formado pela USP, é professor de Economia, foi ministro e deputado federal)