A visão de mundo contida nos relatos dos viajantes que passaram por Goiás ao longo do século XIX ilustra bem o quanto o ambiente social estava sujeito às circunstâncias e às improvisações. Os imensos vazios demográficos, em um território hostil e agreste, cuja população inicialmente se caracterizou pelo nomadismo, ao gosto da exploração aurífera, parece haver contribuído significativamente para os arranjos afetivos concubinários.
A formação, organização e estrutura das famílias não obedeceu ao modelo patriarcal tradicional de autores como Gilberto Freyre. Talvez, em parte, face às características da população, notadamente masculina e formada por negros. Questões associadas à etnia não impediram a formação de uniões afetivas, legando descendentes miscigenados, mas barreiras de natureza social dificultavam a legitimação dessas relações amorosas. Também se deve mencionar o alto custo do casamento, então monopólio da Igreja, sobre os primórdios da família goiana.
O comportamento lascivo de homens e mulheres, descrito nos relatos dos viajantes europeus, parece ser mais fruto das circunstâncias, ou seja, de uma sociedade em que o poder eclesiástico e a administração pública se viam sem condições de estimular enlaces legítimos. Não se trata, claro, de uma naturalização do comportamento sexual, mas a ineficiência das instituições parece ser resultado da própria limitação inerente a um território imenso, com população esparsa e nômade, consumindo tempo para que esta se fixasse em urbes e formasse os primeiros clãs.
A atuação da Igreja, neste sentido, ao facilitar a conversão das uniões estáveis em casamentos em meados do século XIX, parece inclusive haver permitido o desenvolvimento dos primeiros agrupamentos familiares, para os quais o casamento se tornou importante instrumento de poder político, enquanto moeda de troca, tanto via endogâmica quanto por arranjos estratégicos entre outros núcleos familiares. Trata-se de fascinante ponto da história cultural das famílias goianas.
A relativa liberalidade sexual, que permitia aos homens e às mulheres se amancebarem ao gosto da conveniência ou do próprio afeto, passa a ser enfraquecida pela atuação direta da Igreja e, posteriormente, dos clãs familiares em favor de uma moralidade mais rígida quanto à lascívia. De certa maneira, tais práticas contribuíram enquanto discurso de doutrinação, aparentemente capaz de conter – ou ao menos dissimular – os impulsos sexuais de parte da população – pelo menos, da que se relacionava diretamente com grupos hegemônicos.
Tudo indica que, historicamente, houve relativa tolerância em Goiás às práticas sexuais e afetivas até a primeira metade do século XIX. Tal comportamento parece haver sido aceito e amplamente difundido, algo que passa por mudanças com a maior atuação da Igreja em defesa do casamento católico e a posterior adoção de leis civis, cuja observância determinava entre ascendentes e descendentes direitos sucessórios, entre outros. Mas, em um primeiro momento, parece ser o matrimônio religioso uma prática minoritária, daí ser construído o discurso distintivo de sua consumação, que valeu como importante ferramenta política aos primeiros anos da República.
A instituição das primeiras leis sobre o casamento civil, se por um lado tendia a enfraquecer a atuação da Igreja, por outro acabou por reforçar o casamento enquanto instituto legitimador de diferenças sociais. A relação próxima entre as famílias de elite e as autoridades eclesiásticas, notadamente perceptível na instituição de festeiros em novenas regionais, comuns em fins do século XIX, ressalta o vínculo político entre os clãs hegemônicos e a Igreja.
A legislação cível para o casamento foi adotada aos poucos pelo bispado goiano, que continuou celebrando preferencialmente os casamentos, tornando-os eventos sociais distintivos e, por isso mesmo, desejados por parte da população – em particular por camadas que viam no matrimônio meio de ascensão social. Todavia, não há indicativos de que as elites familiares tenham deixado de conviver com as práticas concubinárias – ou mesmo de exercê-las, por meio do instituto das amantes ou do acesso às prostitutas.
O que se pode afirmar com alguma segurança é que o casamento se constituiu ao curso das transformações do século XIX em valiosa moeda de poder político e manutenção da hegemonia de poucos clãs, organizados posteriormente por meio do regime de coronéis. Sua instrumentalidade, valiosa para tais grupos, não resultou necessariamente na criação de normas do Direito de Família – editadas em plano nacional – mas seu aproveitamento se deu enquanto instrumento de controle social e preservação da força política circunscrita a pequenos grupos sociais.
(Victor Hugo Lopes, jornalista)