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OPINIÃO

Bernardo Elis das aguadas de todos os sertões desse Goiás

Bernardo Élis Fleury de Campos Curado. Um grande nome para uma inteligência superior. Um homem especial nas letras desses sertões do Oeste!

O imortal da Academia Brasileira de Letras!

Bernardo Élis dos romances históricos, dos poemas modernistas, das crônicas eruditas, dos contos regionais. Bernardo, que rima com Goiás!

Pioneiro de Goiânia e de nosso modernismo literário, primeiro e único Goiano na Academia Brasileira de Letras, bem merecia Bernardo Élis esse reconhecimento. Seria um ponto turístico a mais em Goiânia, das pessoas a tirarem fotografias com o nosso grande autor regional, a mostrar ao Brasil, as riquezas goianas...

Na poética e romanesca Corumbá de Goiás, com seu casario histórico tão lindo, suas ruas estreitas, sua igreja no alto, branquinha, seus largos floridos e sua riqueza folclórica foi o berço de Bernardo Élis, em 15 de novembro de 1915. No mesmo ano, a bela cidade também foi berço de J. J. Veiga, outro monstro sagrado de nossas letras.

No seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras há 40 anos, em 1975, Bernardo Élis assim cantou sua velha cidade: “Ah, minha velha Goiás! Das mais elevadas terras do Planalto Central, da Serra dos Pireneus, nasce um rio que corta Goiás em direção ao sul. É o Corumbá, chamado resmungador e escachoante. A quatro léguas das nascentes forma um belo salto. Essa cachoeira foi descoberta pelos Bandeirantes tão logo chegaram a Goiás. E, danados como eram, rasgaram a serrania, desviaram o curso das águas, estancaram a catadupa. No profundo do poço cavado pelas águas deste mil e mil anos acharam tanto ouro, mas tanto ouro, que para catá-lo ergueu-se uma povoação que tomou o nome de arraial de Nossa Senhora da Penha de França de Corumbá. Desaparecido o ouro, o arraial nem cresceu, nem minguou – encruou, pequenino e solitário na imensidão da encosta a prumo”.

Bernardo Élis, filho de outro grande poeta de nosso Simbolismo, Érico José Curado (1880-1961), inspirado vate de nossas terras e de Marieta Fleury Curado (1895-1990), dona de casa. Iniciou o estudo das primeiras letras com o pai, em casa, que era impaciente ao ensiná-lo e, em 1923, foi residir na casa do avô materno, na capital do Estado, então Cidade de Goiás, onde se matriculou no Grupo Escolar, tema discutido em sua novela Apenas um violão.

Mais tarde, retornou para Corumbá continuando os estudos com o pai, de quem viria o estímulo para as letras e para o jornalismo, assim como para o magistério; embora o pai fosse comerciante na pequena cidade. Era comerciante, mas não gostava do comércio e perdia várias vendas, imerso no mundo dos sonhos, na elaboração de seus versos...

Aos doze anos, Bernardo Élis escreveu o primeiro conto, inspirado em "Assombramento", de Afonso Arinos, na época um festejado regionalista, autor do belo livro Pelo sertão. Leu, também, e se inspirou na obra Tropas e boiadas, do magistral Hugo de Carvalho Ramos, assim como do talentoso Pedro Gomes de Oliveira que, nos anos de 1920, havia escrito um livro de contos intitulado Na cidade e na roça, mais tarde, já em Goiânia, em 1942, escreveu seu magistral O pito aceso.

Em 1928, Bernardo Élis viajou com a família para a Cidade de Goiás, onde fez o curso ginasial no Liceu, tradicional colégio vilaboense, construído em 1846, segundo estabelecimento de ensino secundário do País. Ampliou suas leituras, principalmente de Machado de Assis, Eça de Queirós e dos autores modernistas; vindo daí sua inspiração para as letras e para o jornalismo também. Era assíduo leitor do jornal literário feminino intitulado O lar, produzido por mulheres notáveis como Oscarlina Pinto, Genezy de Castro, Maria Paula Fleury de Godoy, Graciema Machado, Illydia Maria Perillo Caiado e Maria Ferreira de Azevedo Perillo.

Era o tempo da política fervilhante que antecedeu a Revolução de 1930 e a completa diferenciação pela qual passaria o Estado de Goiás com a queda da oligarquia Caiadista. Aos 13 anos, Bernardo Élis vivenciou este histórico momento na antiga capital goiana. Viu caírem do poder aqueles antigos e austeros chefes oligárquicos e ascenderem outros jovens idealistas, com seus erros e acertos, inspirados pela liderança de Pedro Ludovico Teixeira.

Reacendeu-se a ideia da mudança da capital do Estado, isolada por um determinismo geográfico. Lutas políticas e sociais, movidas por interesses tantos sacudiram a velha cidade do Anhanguera. Bernardo Élis nessa época era um jovem de 18 anos, estudante pobre em busca de uma oportunidade na vida.

Assim iniciou na vida pública em 1936, aos 19 anos, como escrivão da Delegacia de Polícia em Anápolis, foi nomeado escrivão do cartório do crime de Corumbá.  Assim voltou ele para a sua doce terra, mas por pouco tempo.

Também participou, desde 1934, dos acontecimentos literários do Brasil central, junto a outros jovens idealistas, escrevendo poesias e enviando colaborações de cunho modernista para os jornais de Goiânia, a nova cidade que nascia nas campinas. Em 1939, transferiu-se para Goiânia, onde foi nomeado secretário da Prefeitura Municipal, com exercício das funções de prefeito por duas vezes. Era uma mudança total e inesperada em sua vida de jovem estudante de 24 anos de idade.

Dentro dele estava pulsante a Literatura e o gosto pela escrita! E, antes de tudo, o seu tema era Goiás e sua gente, fonte de sua inspiração. Mas, ele precisava estudar; ter segurança, um diploma e uma carreira. Após a interrupção dos estudos por dois anos, em 1940 concluiu o curso clássico no Liceu de Goiânia. Em 1945, formou-se na Faculdade de Direito, sendo orador de sua turma. Estava consumado o homem na plenitude de todo o seu saber.

Em Goiânia, cidade nova e de oportunidades tantas, fundou ele juntamente com o trindadense Gerson de Castro Costa (1917-1992) e Zecchi Abrahão a Revista Oeste e nela publicou o conto "Nhola dos Anjos e a cheia de Corumbá", depois inserido em livro. Essa revista era a súmula de toda inteligência moça de Goiás, inspirada na renovação com a mudança da capital.

No ano de 1944, seu livro de contos Ermos e gerais foi publicado pela Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, de Goiânia, obtendo sucesso e elogios de toda a crítica nacional. Nesse ano, as 29 anos de idade, casou-se com a poetisa Violeta Metran (1927-1996), moça inspirada e sonhadora, da bela “cidade dos pomares”, Morrinhos.

No ano de 1945, há mais de 70 anos, participou do 1º Congresso de Escritores de São Paulo, quando conheceu vários escritores nacionais, entre os quais Aurélio Buarque de Holanda, Mário de Andrade e Monteiro Lobato. Voltando para Goiânia, fundou a Associação Brasileira de Escritores, da qual foi eleito presidente. Ingressou no magistério como professor da Escola Técnica Federal de Goiás, hoje IFG e do ensino público estadual e municipal.

Como professor, para garantir o sustento da família, trabalha muito, em vários lugares. Afogava dentro de si, pela falta de tempo, um turbilhão de ideias, de livros, de pensamentos, aprisionados pelo excesso de obrigações de trabalho, correção de provas, preparação de aulas, os encargos de professor, marido, pai de família; a lembrar o personagem “Campos Lara”, do belo romance O feijão e o sonho, de Orígenes Lessa, angustiado pela vontade de escrever e a luta insana pela vida.

Bem poucos, no Brasil, puderam viver de Literatura e podem ser contados nos dedos, como Jorge Amado, José Mauro de Vasconcelos e talvez Érico Veríssimo e olhe lá. Os outros escreveram nas sobras de tempo, na aflição em garantir o pão da carne, no entrechoque com o pão do espírito!

Em 1955, Bernardo Élis publicou o livro de poemas Primeira chuva. Nos anos seguintes, com muita luta, dedicou-se ao magistério e à vida literária. Foi co-fundador, vice-diretor e professor do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade Federal de Goiás, daí passando a professor de Literatura na Universidade Católica de Goiás e em vários cursos preparatórios ao vestibular das universidades. Era a luta pelo pão e pela dignidade, de quem se dedica à Educação em nosso País.

Entre os anos de 1970 a 1978, desempenhou as funções de Assessor Cultural junto ao Escritório de Representação do Estado de Goiás, no Rio de Janeiro, e reassumiu o cargo de professor na Universidade Federal de Goiás. Participou de congressos e conferências em todo o País, representando Goiás.

Desempenhou ainda a função de Diretor Adjunto do Instituto Nacional do Livro, em Brasília, de 1978 a março de 1985. Em 1986, foi nomeado para o Conselho Federal de Cultura, ao qual pertenceu até a extinção do órgão, em 1989. Em todos os campos onde atuou, o filho de Corumbá de Goiás deu provas de seu imenso talento.

Pelo conjunto de sua obra, expressiva e bela, recebeu inúmeros prêmios literários: Prêmio José Lins do Rego (1965) e Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (1966), pelo livro de contos Veranico de janeiro; Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras, pelo seu Caminhos e descaminhos; Prêmio Sesquicentenário da Independência, pelo estudo Marechal Xavier Curado, criador do Exército Nacional (1972). Em 1987, recebeu o Prêmio da Fundação Cultural de Brasília, pelo conjunto de obras, e a medalha do Instituto de Artes e Cultura de Brasília, mesmo ano de sua morte.

No Governo Henrique Santillo, toda a sua obra foi enfeixada numa bela coleção, em capa dura, de belo trabalho artístico, intitulada “Alma de Goiás”, com apresentação de Kleber Adorno, comentários de Tristão de Athayde e desenhos de Amaury Menezes, pela tradicional Editora José Olympio. Essa coleção fez enorme sucesso e foi distribuída a todo o Estado de Goiás, às escolas, universidades e instituições culturais.

As principais obras de Bernardo Élis foram Primeira chuva, poesia (1955); Ermos e gerais, contos (1944); A terra e as carabinas (1951); O tronco, romance (1956); Caminhos e descaminhos, contos (1965); Veranico de janeiro, contos (1966); Caminhos dos gerais, contos (1975); André Louco, contos (1978); Seleta de Bernardo Élis. Org. de Gilberto Mendonça Teles; estudo e notas de Evanildo Bechara (1974); Caminhos dos gerais (1975); Os enigmas de Bartolomeu Antônio Cordovil (1980); Apenas um violão (1984); Goiás em sol maior (1985); Jeca-Jica-Jica Jeca (1986); Chegou o governador (1987); Obra reunida de B. É. (1987).

A sua consagração máxima como escritor veio há 40 anos. Em 1975 foi eleito, vencendo JK, o quarto ocupante da Cadeira 1, da Academia Brasileira de Letras, eleito em 23 de outubro de 1975, na sucessão de Ivan Lins e recebido pelo Acadêmico Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, em 10 de dezembro de 1975. Até hoje é o único goiano eleito para a Casa de Machado de Assis.

Em seu livro de poemas Primeira chuva, publicado há 62 anos, evoca a paisagem goiana, com sua verve poética única, em que, na forma livre, lírica, mas crítica; demonstra o interesse por novas possibilidades de visão da mesma paisagem, diferente dos poetas românticos anteriores.

Destaca ele o ambiente bucólico da Cidade de Goiás, com seu casario mergulhado entre pedras e árvores retorcidas e as cajazeiras do Largo, com seus frutos cheirosos, lembram a passada era, o cheiro úmido dos frutos podres na rua, as árvores misturadas nos quintais e no Cerrado próximo, já que os morros fecham a cidade.

Parece haver fantasma de Bandeiras

passeando pelas ruas estreitas e sombrias,

- as casas baixas se escorando umas nas

outras pela encosta arriba

(Rua da Abadia,

Casa da Pólvora,

Bica  el rei...)

Já vai tão longe o tempo

em que a busca do ouro

era a grande ambição!

(Palácio dos Arcos,

dos Távoras, Rua da Fundição...)

copas de grandes cajazeiras

sujando a brancura das calçadas

com o preto frescor das sombras úmidas.

(Águas férreas,

Morro das Lages,

Largo da Força, onde aparecer assombração...)

Parece que vi dois vultos

vestidos de couro,

calçados de botas,

barbudos, grandões,

no escuro do beco

jogando as espadas!

Bernardo Élis é o grande ícone da literatura feita em Goiás. Polígrafo, destacou-se com maestria na diferentes modalidades literárias que abraçou, tanto como romancista, contista, cronista, poeta e crítico literário. Sua estreia foi na modalidade conto e um de seus conhecidos livros de contos é Varanico de janeiro, publicado pela Livraria José Olympio e Editora, do Rio de Janeiro, no qual, em muitos de seus contos, o mundo e o universo do sertão, do Cerrado com sua gente, seus hábitos, modismos e culturas, estão inseridos.

Nessa obra aparecem muitas citações, comentários, belas páginas descritivas sobre o Cerrado, tais quais em que aparecem trechos da narrativa da desobriga do padre, quando, na visão do afilhado, o Cerrado se mostra na beleza silente do chapadão, as araras nos buritizais e a sombra do pequizeiro: “E o padre fechou seu breviário e começou a cantarolar uma e suas belas canções: o Tantum Ergo. A voz macia corria pelo chapadão, perdia-se ale. Do olho de um buriti umas araras desferiam gritos estrídulos e guturais, como se estivessem zombando do padre. Por baixo do pequizeiro, o afilhado se exasperava. Seria aquela a derradeira desobriga a que iria”.

E continua a descrever o cenário com o cheiro do capim gordura, o canto dos passarinhos, o ideário de largueza e vastidão do Planalto Central, as serras, chapadas, a delicadeza dos capões de mato e o “nunca se acabar do horizonte”, como se pensava infinito o mundo cerradeiro, hoje não: “Do capim vinha um cheiro muito discreto, um cheiro que se tornava imperceptível se a gente aguçava o olfato com a intenção de o sentir. Cheiro de capim-gordura? Cheiro de macela? Cheiro de almé-cega? Pelas árvores folhudas e lustrosas cantavam os bentevieiras, o siriri, a chica-viúva e muitos outros passarinhos de colorido tão bonito, de formato tão estranho, ágeis e elegantes.  Monsenhor não sentia o corpo, não sentia a vista, num gozo absoluto da mais perfeita euforia. Pela sua frente, estendia-se aquela largueza sem fim que são os horizontes amplos do Planalto Central, eito de chão que pega da base dos Pirineus até os confins da Bahia, abrangendo as águas vertentes do Tocantins para cá, do São Francisco para acolá e do Paraná mais assim pressa bandinha de lá. No caixa-prego, contornos acinzentados de serras, as chapadas se sucedendo em planos e planos. Até a serra dos Veadeiros, naquele nunca-se-acabar de horizonte, era uma pincelada azul-cinza, apaga-não-apaga de tão recuada. Por perto, as curvas femininas dos morrotes, a delicadeza de pintura dos capões indicadores das manchas de terras férteis naquele oceano de campina verde. - Ei, mundão sem porteira!”

Na sequência, destaca sobre o veranico de janeiro, quente e causticante, que arrancava faíscas das lajes, fazia a natureza cerradeira toda sentir, coo se fosse semelhante ao mês de agosto: “O sol era um sol terrível, de umas três horas da tarde, que arrancava faíscas nas lajes, acendia-se em chispas nas folhas verdes, tremia nos longes num retremor de vapor exalando. Veranico de janeiro. Veranico brabo que estava esturricando os milharais embonecados e os arrozais principiando a inchar os grãos. Tão forte que a poeira levantada pelo carro e suas dez juntas de bois imitava poeira do mês de agosto”.

No seu conhecido conto “A enxada”, destaca a labuta do homem da roça, suas misérias e dores, seus temores em relação ao tempo para a planta e possível colheita; o receio da chuva não vir, a dependência da natureza, o arroz plantado na encosta, a vontade de Deus: “Num salto, deixou a grota e saiu numa carreira de urubu pelo caminho fundo, sem ao menos querer voltar a vista para o lado do terreno da roça. Muito adiante foi que moderou o galope. Uma canseira forte o dominava; sua respiração saía rascante e dificultosa por causa do papo, aquele papo incomodo que pesava quase uma arroba. Diminuiu o chouto, chupou fôlego e, sentindo a vista turva, se assentou. Passada a zonzura, percebeu que fazia um calor de matar, embora não se visse o sol. Nuvens pesadíssimas, negras, baixas, toldavam o céu. “Tomara que chova.” Com esse veranico,quem é que pode plantar? Embora desprevenido de enxada, se o diabo desse solão continuasse como ia, não sobejaria qualquer esperança de colheita. “Tomara que chova.” Chuva muito, dessa chuvinha criadeira, porque no dia seguinte Seu Eupídio ia mandar soldado saber se a roça estava plantada. Chuva dia e noite. Não chuva braba, que Santa Bárbara o defendesse, que essa levaria a terra, encheria o córrego e arrastaria todo o arroz que Piano ia plantar pela encosta arriba, o arroz que crescia bonito, verdinho, verdinho, fazendo ondas ao vento”.

Na sequência, a amostragem dos elementos cerradeiros como o pé de jatobá do campo, o matagal, o pé de vento no jatobazeiro; a guia da chuva, a roça de toco, chamada de destocada, a tristeza do homem diante da natureza bravia e forte, mais forte que o próprio homem naquele tempo: “Piano abandonou a estrada, foi até a beira do mato, subiu num pé de jatobá do campo. De lá tentou enxergar, mas era impossível. O mato tapava tudo. Subiu mais até os galhos fininhos, de modo a ficar com a cabeça acima da fronde, mal se equilibrando nas grimpas. Perigo de o galho partir e ele despencar para o chão. Jatobá não é feito goiabeira que morgueia, jatobá costuma quebrar de uma vazada só. Nesse meio-tempo o jatobazeiro pegou de balangar. Um pé-de-vento, chamado guia da chuva, sacolejava o mataréu, desengonçando as árvores, descabelando-as. Num momento que o mato se espandongava, saracoteando, Piano pôde vislumbrar sua roça. O terreno enegrecido, sujo de troncos queimados, nu de qualquer plantação, onde o capim já pegava a crescer afobadamente de parelha com as árvores derrubadas que deitavam brotos novos”.

Ainda no mesmo conto, mostra as plantas do Cerrado, nas proximidades da vila, com os tufos de marmelada de cachorro, lobeiras, pindaíbas e paus-terras. Há imagens poéticas a dizer do anoitecer e do amanhecer e os diversos tons do campo, as outras plantas como gabiroba, gravatá e murici, que brilhavam com as teias de aranha molhadas de orvalho: “Aglomerado na frente da igreja, o pessoal da cidade olhava para a encosta fronteiriça, doutra banda do rio, por onde torcicolava a estrada que levava para a Prata. A encosta era alta, cheia de tufos verdes de marmelada-de-cachorro, lobeiras, pindaíbas e paus-terras. Nesse tapete verdolengo, a estrada era um traço rubro, ora brancacento. O dia era um encanto de dia. Muito sol, a orvalhada rebrilhando como se fosse brilhante, restos de névoa navegando ao longo do vale do rio, pássaros-pretos, bem-te-vis e periquitos grazinando em bandos. Certas moitas de gabiroba, gravatá e murici estavam vestidas com uma espessa teia de aranha muito abundante no lugar, em que o orvalho se prendia formando como se fosse um lençol alvíssimo. Uma beleza”!

Na ordem dos contos, destaca sobre o desbarrancado da gruta, os pés de pau do cerrado como angico, jatobá, pau de óleo, cedro, imbaúbas, juá brabo, capim tiririca, a piçarra, as taiobas. Mostra o cenário do desbarrancado junto ao Cerrado: “Era um desbarrancado grande, formando uma gruta que ia toda a vida. Na grota e nos altos adjacentes cresciam pés de pau: angico, jatobá, óleo, pindaíbas, cedro, embaúbas e gameleiras. Mais por baixo vinham murici, lobeiras, assa-peixe e, mais por derradeiro, vinham cansanção-de-leite, juá-brabo, são-caetano e tufos de capim tiririca e outros. A grota era sempre sombrosa. A gente vinha, que entrava, logo sentia que o tempo demudava para frioso e a gente sem querer pegava a espirrar. No fundo, no barranco de pedras que caía a prumo, a água marejava e escorria seus risquinhos medrosos seguindo os talos de samambaias verdinhas: as gotinhas se formavam, pingavam e lá ficava o raminho balançando, com coisa que um vento estivesse sempre bulindo com as folhas verdes.Na piçarra dos barrancos as apanhadeiras d’água cavavam pequenos regos e metiam bicas de taquara ou de folhas de piteira, mode encher melhor as vasilhas. Assim pra baixo, a água espalhava-se num lamaçal esverdinhado, adonde as jias gritavam por entre moitas e moitas de taiobas, as folhonas viçosas cheinhas de pingos d’água de chuva”.

Em seu livro Contos esparsos, Curado (1987, p. 4), destaca sobre a manhã de dezembro na cidade de Pau terra, onde Manezinho campeava um gado, destaca sobre os barulhos do campo, as cigarras, os passarinhos, os grilos, o cansaço do peão que foi deitar-se debaixo do pequizeiro, escondido por uma macega de lobeiras, gravatás e gabirobas: “Naquelas dez horas da manhã de dezembro, Manezinho campeava uma novilha barrosa pelos cerrados circunvizinhos da cidade de Pau-Terra. Tanto o cerrado como a novilha pertenciam ao coronel Fulgêncio, de quem Manezinho era camarada. No calor sufocante, o sol tinia de quente, com nuvens imensas, parecendo pedreiras gigantescas, erguendo-se para os lados do norte, a indicar chuvarada grossa. De par com o fraternir dos grilos, o rechinar das cigarras e o pio dos papa-capins, subia da terra úmida um bafo escaldante, um bafo peganhento de suor, feito um bafo de tacha de açúcar. Sacudido pelo trote do rosilho, socador, o estomago pesado do feijão com farinha de mandioca que comera pouco antes, Manezinho sentia as pálpebras pesadas, como se fossem de chumbo e pouco e pouco, o mundo foi-se sumindo ante os seus sentidos: emudecia-se o trilhar dos grilos, esbatia-se o horizonte, o cavalo se transformava num molengo nhe-nhe de rede”.

Em seu livro Ermos e gerais, destaca sobre o rio Santa Tereza, carregado com as suas lendas e suas histórias; fala das matas escuras cerradeiras, também, carregadas com os seus mistérios, ressalta sobre o roçado do pequeno sitiante e a roça destocada apenas para o gasto e os bichos para a caça e também a pesca. Era um mundo pequeno, mas que bastava a si mesmo.

Em seu outro livro Caminhos e descaminhos, relata sobre o barranco, o calor, o luar  como “o próprio silêncio escorrendo”, a queimada no mato virgem, a lonjura do horizonte, a ideia das nascentes, o córrego a tudo transpor, as borboletas, o fundo “fofo” da mata, os lambaris e piaus, as imaginações do Cabo Sulivero sobre os mistérios das águas e dos rios, do chão parado e sem mistérios: “Lesma, cobra, bicho danado que ia deslizando, escorregando, viscoso e frio, lambendo o barranco, mordendo as areias, pastando o capim das estrelas; ora azul como o céu, ora faiscante ao sol e fogo, já imitando o azougue nas noites em que o luar é o próprio silencio escorrendo; fumaça que se levanta da queimada de mato virgem e se perde na lonjura do horizonte, confundindo-se com o céu embaciado de agosto; - para onde iria o Tocantins?”.

Em outros de seus contos, Bernardo Élis se destaca com descrições belas acerca do Cerrado e da paisagem goiana, como a ressaltar sobre o angico, uma das espécies importantes do Bioma, pois se constitui numa madeira de lei que, quando enterrada, é muito durável. Há várias espécies de angicos em Goiás, usados especialmente como lenha: “Na grota e nos altos adjacentes cresciam pés de pau: angico, jatobá”. Também em outra obra, destaca sobre a aroeira, que é árvore que outrora serviu como cimento, já que é madeira de lei, como a aroeira, ipê-roxo, peroba, angico-preto: “Passava por uma das melhores habitações da zona, principalmente pela extensão da curralama de aroeira em pé, suficiente para a apartação de milhares de cabeças de gado.” “Ficou mesmo só uma viga de aroeira, cuja ainda está lá, peba de viga desgranhenta!”.

Em outras obras o autor ressalta sobre as plantas do Cerrado, a ressaltar sobre o cipó-de-leite, variedade de cipó leitoso: “Cabelos luzidios caindo lisamente até os ombros torneados, o corpo nubil pintado de urucum e cipó-de-leite.” Também, os pés de pau da mata: "Na grota e nos altos adjacentes cresciam pés de pau: angico, jatobá, óleo, pindaíbas, cedro, embaúbas”. Ressalta ainda sobre a embira, que é fibra de certas árvores (candiúba, carrapicho, jangada, jequitibá, imbé e embiruçu), usada para amarrar: "Ali o ìndiozinho mostrou-se mais alegre, pois convenceu-se de estar no caminho certo. Improvisamos, então com alguns troncos, uma pequena jangada, amarrada com cipós e embiras e os torrões de barro do pau-a-pique se desprendiam dos amarrilhos de embira e caiam n´água com um barulhinho brincalhão."

O autor ainda, em seus contos utiliza o Cerrado em outras descrições dignas de nota: "A não ser um esguio e solitário coqueiro guariroba que parece espiava por cima do vale e das pedreiras da cercania: "Consegue, ainda, ressaltar sobre as espécies perdidas no alto sertão: "Por cima desses brocotós e buracos cresciam gameleiras, lixeiras, gravatás, ingazeiras e, aqui e ali, touças de catingueiro." Também sobre o juá, que é árvore da mata, de grande porte: "Mais por baixo vinham murici, lobeiras, assa-peixe, mais por derradeiro, vinham cansanção-de-leite, juá-bravo..."

Bernardo Élis foi sublime escritor em tudo que se propôs a escrever. E sua escrita foi Goiás, com sua gente, suas paisagens, suas grandezas e misérias. Tudo esteve envolvido pela maestria de sua pena, a registrar a posteridade, fatos singulares de nossa história miúda, das acontecências diárias no sertão.

Há grandes e profundas descrições bem escolhidas do Cerrado como em O tronco, esbanja poesia, ao destacar as superstições do povo: “Pelos morros eram as acauãs, com o mais rouquenho grito de maldição: – cauã, cauã! Os soldados ouviam e se benziam. As mulheres balbuciavam uma jaculatória. Era sinal de mau agouro. No seu cantar as acauãs diziam: – mata o homem, mata o homem!”, além dos costumes e dos remédios, as andanças: “Ao longo da cerca formou-se um aceiro largo de tanto o gado de Benedita ir e vir em busca de acesso ao refrigério. O caruru-de-porco, o fedegoso brabo, a erva-de-santa-maria cresciam com uma pujança de feitiço”.

Até sobre o caminhar do povo pelas roças, o autor evocou o Cerrado, assim como a vegetação das beiras de estradas: “O vulto de Vicente ia rompendo por entre os ramos de lobeira, lixeira e espinho-agulha. Severo, que vinha atrás do juiz, apertou as esporas no animal, desviou-se de uns ramos de lobeiras floridas de suas florzinhas apaixonadas, que pendiam sobre a estrada, e emparelhou-se com Carvalho”.

Ainda no mesmo romance, há descrições notáveis sobre o amanhecer no sertão, no Cerrado. O autor descreve sobre as chuvas de dezembro, a abundância das mesmas naquele tempo, o florescer do Cerrado, os animais, com belos trechos como “em cada gota, um fio d’água murmurava infindas queixas de prata, reverdecendo os buritis”, além dos bichos e da própria paisagem se refazendo sob a benfazeja presença da água: Em dezembro, o dia acorda cedo. As chuvas já tinham caído abundantemente, o chão era um tapete de verdura. Pelos campos e matos, as plantas floresciam, atraindo com o perfume milhares de abelhas, maribondos e bezouros. Erravam no ar o cheiro das flores e o fretenir buliçoso dos insetos. Em cada grota, um fio d’água murmurava infindas queixas de prata, reverdecendo os buritis que tremiam ao vento seu cocar de guerreiro tapuio. Na baixada, estendia-se o manto alvacento da névoa. Os sabiás cantavam horas a fio pelas moreiras da borda dos rios, enquanto as rolinhas fogo-apagou gemiam nas moitas de veludo. Pela estrada pedrenta, quatro cavalheiros marchavam quietos”.

Em seu outro romance Chegou o governador, de cunho histórico, o autor também descreve o cenário do Cerrado com as suas infindas distâncias naquele tempo, a solidão da Cidade de Goiás, então Vila Boa, as léguas e léguas de estradas em meio ao Cerrado, a sensação de isolamento e abandono no sertão. Uma lua no céu anunciando o tempo mais uma vez. Era o homem civilizado encerrado no sertão do Brasil, na ideia de profundidade daquela época: “Podia ser nove horas da noite, quando os visitantes se dispersaram. Nos quartéis as cornetas tocaram a recolher e o sino da Câmara badalou seu pequeno repique solitário, que se perdeu melancolicamente na imensidão do deserto que sitiava a Vila por todos os lados. Dali a Belém do Pará eram 400 léguas; dali ao litoral, 200 léguas; dali a Vila Rica 130 léguas; dali a Cuiabá, 160 léguas. E essas eram as povoações mais próximas. Uma sensação de isolamento, de desamparo, de solidão, de abandono pesou como um bloco de gelo sobre a alma do jovem que avaliou a impotência daquele sino e impossível amparo das dezenas de soldados a seu serviço. Era uma noite quente de fins de fevereiro, de céu limpíssimo e um quarto crescente que já era quase uma lua cheia”.

Há um papel a ser exercido pelo escritor de intérprete da realidade de seu tempo, na alquimia das ideais e na transformação daquilo que nos cerceia, avaliando e rediscutindo o mundo em suas contradições e desacertos. Há que ser sofrido o escritor, machucado pela realidade que o cerca, pois só no cerne das emoções tecidas no ato solitário, está a verdadeira Literatura; não aquela que tem compromisso apenas com um grupo, mas aquela de caráter universalizante.

Bernardo Élis Fleury de Campos Curado, inesquecível homem das letras, o tradutor da alma de Goiás!

(Bento Fleury (Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, graduado em Letras e Linguística pela UFG, especialista em Letras pela UFG, mestre em Letras e Linguística pela UFG, mestre em Geografia pela UFG, doutor em Geografia pela UFG, pós-doutorando em Geografia pela UFG. Professor da Faculdade Aphonsiano de Trindade. Funcionário público, pesquisador e poeta. [email protected])

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