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OPINIÃO

Terra em transe - III

“Há no brasileiro um gosto tão forte de ‘viver às claras’, que neste particular o falecido Augusto Comte muito nos teria louvado e admirado” (Freyre, 1979, p.161)

Enquanto a sapiência popular dos raizeiros cura as feridas do corpo, o aforismo grego atado à alma do autoconhecimento afirma ao Homem: “Conhece a ti mesmo”. A história contada pelos sábios reforça que enquanto os cães ladram toda carruagem passa, mais, que o ser social nunca limpa o ego ou banha seus pecados num mesmo rio.

A metáfora da violência, histórica, determinada na calamidade do mito turístico ou Cidade Maravilhosa, funde-se à negação das políticas públicas em forma de urbanidade erguida a fatos e fotos relatados em manchetes como a dos corpos de sete homens encontrados às margens de um brejo, na Comunidade do Caratê, localidade da favela Cidade de Deus, sem objetos pessoais ou armas, alguns deles nus. O retrato midiático não denuncia nada de novo a um País acostumado à expropriação de direitos humanos, velada: “O problema é a forma como as mortes aconteceram. Eles eram traficantes, mas isso não justifica terem sido mortos com tiros à queima-roupa e facadas”, segundo o pastor Leonardo Martins da Silva, cujo filho, Leonardo Martins da Silva, 22 anos, estava em meio às vítimas e integrava a facção criminosa Comando Vermelho (CV).

Cidade de Deus, Gardênia Azul, Cidade Maravilhosa, Caratê, Segurança Pública, Corrupção, Polícia, Deus e o diabo, pastores e milicianos, traficantes e políticos, bandidos, gente de bem ou aqueles que enriquecem na má fé, corpos perfurados a facas e balas denotam significado antropológico, sinônimo do que significa o poder do Estado erguido a conceitos burgueses hegemônicos, a partir do “Descobrimento da Nação”. Carece a Federação da revisão jurídico-formal capaz de traduzir a fome de igualdade da população enquanto categoria a mais – em sua grande maioria representada a menos – que traduz a realidade trespassada pela luta de classes: “A gente paga impostos e é nosso direito que pelo menos o rabecão entre na comunidade para recolher os corpos”, na fala do pastor, em meio a alguns membros da coletividade aviltada que condenavam a chacina.

Em meio à lambança social, tragicômica, a opinião da parcela de trabalhadores destinados à própria sorte ou realidade apresentava-se ali dividida, montada em medo e alucinada, ao tempo que alguns elogiavam a atuação do Bope dizendo que servirá de exemplo para outros criminosos. Mais que a grande questão humanitária, a covardia dos homens dotados de poder moderno faz do mundo dominado uma granada social de pavio aceso e curto. O roubo à liberdade e direitos das crianças sem pátria, sem pais e sem dignidade que correm da polícia, da exclusão e do infanticídio de um lado a outro em terrenos destinados aos ricos – países centrais –, aguça-se mais ainda à sombra da mão de ferro que moverá, a partir de 2017, as peças do tabuleiro de logística da guerra mundializada.

Sob a ótica imperialista e multimilionária de um Coringa alucinado e branco recém-eleito a partir do voto democrático e de direito. Trump é fantasma empresarial falido transformado às pressas em político – montado a retrocesso, implante de topete e racismo, dinheiro, nacionalismo assassino e jogo, hotelaria que move sexo, drogas e a cidade de Las Vegas – a Sodoma e Gomorra moderna e consumista que ameaça o resto do coletivo superpovoado escravo de um mundo rico e só, alienado e omisso ao relato de Coríntios: “Estando entre vós, e tendo alguma necessidade, não fui um peso para ninguém, pois os irmãos da Macedônia supriram as minhas necessidades” (PAULO, 1999, p. 112).

Sua vitória foi estabelecida no medo que o patrício rico tem do “Hermano pobre”, grafia da exclusão social causada pela migração em busca da sobrevivência que carrega as cores do racismo e segregação – conceitos antigos atualizados –, afunilados por propostas (des) humanas extremistas pós-modernas. Definitivamente os atos de lutar para mudar, esperar e aturar, viver ou morrer designam os enigmas e paradigmas de uma Terra trespassada pelo ódio e força do cifrão mundializados. Na periférica e emergente América do Sul a Linha do Equador divide muito mais que um Estado açodado pela corrupção o qual nunca deixou de ser uma Terra em transe subjugada às esporas de um salvador da pátria, seu povo, fé e escravidão. Na opinião de Sakamoto, “uma coisa é o pensamento conservador, que merece ser respeitado, em minha opinião, questionado – quando for o caso – nas arenas públicas e privadas de discussões. A outra é gente que acha que a Constituição é papel higiênico e as instituições democráticas – que levamos décadas para reconstruir –significam um grande vaso sanitário”.

Alvo das primaveras que sacaram os Estados Unidos da depressão de 2008, via disseminação da crise do capital transnacional – estratégica que explora países periféricos –, o Brasil, assim como o resto do mundo, passam por um momento de crise conjuntural articulada pelos bancos aprofundada e fomentada na representatividade política de baixo calão. O modelo de Estado neoliberal intervencionista e arrecadador de impostos tem se mostrado totalmente equivocado. Apesar dos altos custos, não consegue atender às necessidades básicas da população e cria um ambiente propício à corrupção, desvirtuando o funcionamento das instituições e aprisionando o povo nesse quadro. Há uma prevalência de interesses privados em detrimento dos anseios da sociedade na gestão pública que denuncia a urgência de um saneamento do quadro político, condição absolutamente necessária para sua renovação.

As instituições são questionadas e a ausência de lideranças confiáveis e com projetos para o País é um fato que torna fundamental a adoção de uma postura serena, firme, objetiva e com visão de longo prazo capaz de enxergar no horizonte os velhos, as crianças e a dignidade de um povo “até aqui” passivo, ordeiro, católico e amante da bunda e do samba, da cachaça e do carnaval, do padre e do futebol, de político coronel corrupto que lhe coloque numa vaga com salário suficiente para enfrentar a amargura da vida numa pitada de doce batizado com sal.

E o pulso, ainda pulsa!

(Antônio Lopes, escritor; filósofo; mestre em Serviço Social e pesquisador em Ciências da Religião/PUC-Goiás; aluno-ouvinte em Direitos Humanos/UFG)

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