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OPINIÃO

Contos reflexivos do andarilho

Mais um dia de jornada, tudo corre dentro da normalidade, pessoas indo e vindo como se nada mais existisse, mas todos pensando em alguma coisa. O andarilho caminha lentamente, pressa não faz parte de seu dicionário.
Uns tristes, outros alegres, cada um com seus problemas, a vida e algo que corre em várias direções diferentes, só vai interligar aquilo que se comunica.
O ponto de ônibus cheio, um picolezeiro a sombra de uma munguba só espera o tempo passar, sua renda vem de moedas, outro oferece balinhas de coco, uma senhora vende bilhetes de jogos.
O bilhete premiado com certeza esta em algum lugar, sonhos se misturam com múltiplas realidades, o viajante a tudo observa, mas se mantém inerte.
A tarde cai, a noite vem, a paisagem muda, todos somem, como se nada daquilo tivesse existido, e assim os anos passam e novas paisagens surgem.
O andarilho sente se nostálgico, pois sua existência se interliga ao tudo e ao nada ele segue, apenas segue às vezes se confunde com tantas historias de vida que ouviu durante sua jornada.
Com a chegada da noite e necessário que se busque um abrigo, pois e perigoso vagar pela madrugada, os bares já começam a se movimentar, tem seu lado bom, pois sempre surge alguém que se compadece e lhe oferece algo para comer.
Se não por piedade ao menos por culpa, isso mesmo culpa de andar em um carro que vale mais que a existência de tantos seres humanos, mas de onde vem a comida não importa.
O necessário é que ela chegue, e assim ele continua sua busca incessante pela própria subsistência.
De longe ele percebe um bar cheio de gente bem vestida, que escolhe o uso da bebida como fuga da realidade, aproxima se do bar e procura ficar o menos visível possível, as laterais das ruas vão se enchendo de carros de luxo.
Ele fica distante, pois já tem gente que vai até aquele local para vigiar carros para ganhar alguns trocados, ele não quer ser ameaça para aqueles homens, quer apenas algo para comer.
As horas vão se passando, até que encosta uma caminhoneta, e desce dela um homem aparentando uns 50 anos, desce sorrindo e cumprimenta o andarilho.
O cumprimento é retribuído, o homem acende um cigarro e enquanto fuma pergunta se o andarilho vai vigiar seu carro, mas logo e interrompido, pois o dono do ponto se aproxima e vai logo dizendo.
Pode ficar sossegado patrão, aqui a gente olha mesmo. Só vou embora quando sair o ultimo carro.
O homem achou que o andarilho é quem ia vigiar seu carro, o andarilho percebe a confusão que o homem ficou e lhe fala. Eu vivo a vagar, só achei aqui um lugar seguro para passar a noite e tentar arrumar algo para comer.
O homem ri, mas olha ao lado e vê um saco com roupas e uma coberta, e do nada o sorriso some dos seus lábios, ele fica sem jeito, mas o andarilho sorrindo diz.
Fique tranquilo e escolha própria, essa é minha missão, o homem fica curioso e pergunta?
Como assim?, ninguém escolhe viver na miséria.
O andarilho lhe diz.
Miséria não quer dizer sempre pobreza, a maioria dos miseráveis opta pela miséria moral e se faz de coitados, eu vago em busca do conhecimento, e o bem maior não é dinheiro, e sim conhecimento.
O homem do nada abre a porta da caminhoneta e joga o saco do andarilho para dentro, e lhe diz.
Então venha, hoje você é meu convidado.
O andarilho fica sem jeito, mas aceita o convite, e assim os dois vão caminhando e conversando rumo ao bar.
Logo na entrada o segurança barra o andarilho, o homem se enfurece e vai logo dizendo, pode deixar ele é meu convidado.
O segurança fica sem entender, mas percebe que todos estão olhando e franqueia a passagem do viajante.
Assim os dois desconhecidos caminham em direção a uma mesa, sentam se e continuam a conversa.
Logo vem o garçom e o homem pede uma cerveja, e o andarilho pede algo para comer, o garçom anota os pedido e sai.
O homem se sente feliz com a companhia do andarilho, e ali a conversa vai fluindo como se fossem grandes e antigos amigos.
O homem pergunta pela família do andarilho, não tem como responder, pois como explicar o sentido de sua vida.
Agora é o andarilho quem lhe pergunta pela família.
O homem fala.
Quase tive uma, durou poucos momentos.
O andarilho lhe pergunta como assim.
O homem lhe responde. Já me casei, mas durou pouco.
E assim mais uma história de vida é dividida com o escritor do cosmo, que registra tantos relatos diferentes para que sirva de alguma forma para aqueles que se sentem perdidos diante das incertezas da vida.
Eu morava no interior, era uma cidade pequena, e sempre mantive um amor intenso por uma menina, cresci junto com ela, eu era peão do pai dela.
E naturalmente com o correr dos anos começamos a namorar, eu era bem visto no pequeno lugarejo, e o pai dela nunca se opôs.
A vida seguia naturalmente, e acabamos nos casando.
Dois meses se passaram rápido, juntei minhas economias e comprei um barracão de três cômodos na pequena vila, que ficava próximo à fazenda.
Reformei e mobiliei como podia, e como não precisava mais morar com o sogro, chamei a minha esposa para mudarmos para nossa casa.
Ela gostou da ideia, fomos até o barracão e juntos decidimos que mudaríamos no sábado.
Ao chegarmos à casa do pai dela, ela foi correndo falar com a mãe, o clima mudou de imediato.
A mãe dela foi até o marido e contou tudo, o sogro se sentiu traído, e já veio gritando comigo de longe.
Olha seu pé rapado, até que o casamento eu não impedi, mas tirar minha única filha daqui você não vai.
Eu fiquei paralisado e disse a ele, quem decide e ela.
Ela não se manifestou, não esperava aquela reação do pai, e muito menos dela.
Ele só esbravejava e gritava como louco. Como você quer fazer isso comigo, te dei tudo inclusive meu maior tesouro, saia da minha casa agora, e saiba que só levará a roupa do corpo.
Baixei a cabeça esperando que ela intercedesse, mas ela não falou nada, então eu saí andando em direção a porteira sem forças nem para pensar.
Caminhei até o barracão, entrei e fechei a porta, e lá eu fiquei por quatro dias, até que foram atrás de mim.
Todos achavam que ia morrer.
O andarilho continua ouvindo e comendo.
Mas percebe a profunda tristeza do homem, e vê que a fome de longe causa tanto sofrimento quanto ao que acaba de ouvir.
O homem continua.
Depois de uma semana ela me procurou e disse que havia conversado com o pai, e que ele havia me aceitado de volta para ver a filha parar de sofrer.
Mas eu não aceitei, não tinha como voltar depois de tudo que ouvi da boca dele, pedi que ele viesse falar comigo, mas ele não quis.
O andarilho lhe pergunta.
Por que não voltou, se amava tanto aquela mulher?
O homem lhe diz.
Ele só me aceitou porque me conhecia, e sabia no fundo de sua alma que após a discussão que eu jamais voltaria.
E a história segue.
Durante uns três meses ela continuou indo atrás de mim pedindo que eu reconsiderasse minha decisão, e eu sempre dizendo a ela que jamais daria certo e se ela quisesse viver comigo eu faria de tudo para fazê-la feliz, mas após tanta insistência ela acabou desistindo.
Eu já não aguentava mais viver naquele lugar e acabei indo embora. O dinheiro era pouco, mas com a venda do barraco consegui o suficiente para me ajeitar aqui na periferia.
Comprei um direito em uma invasão de um conterrâneo do meu pai.
Arrumei um emprego de chapa e fui tocando minha vida.
O andarilho pergunta ao novo amigo.
Então você superou essa tragédia com humildade e coragem. O homem responde.
Sim, passei por cima do meu sentimento e transformei o amor em força para trabalhar.
Mas não termina aqui a minha história.
Alguns meses depois quando chegava do serviço encontrei-a na porta da minha casa, o pai dela nos observava de longe.
Entramos no meu barraco, e ela chorando me disse.
Minha mãe morreu.
Eu, na hora, perdi as forças, pois gostava muito da mãe dela.
Mas em seguida ela me disse o que tinha levado ela a me procurar.
Ela foi direto ao assunto.
Eu vim aqui para te dar o que é seu, abriram o inventário e ainda somos casados civilmente.
Aí eu entendi tudo.
E fui logo dizendo a ela.
Me dê os papéis que eu assino, não quero nada, tudo lhe pertence, ela sem levar a conversa para frente me deu os papéis, eu assinei e ela saiu sem me dizer adeus.
Alguns minutos depois o pai dela apareceu e me disse.
Não esperava que você morando onde está abrisse mão do que é seu, lhe agradeço muito, vou deixar algum dinheiro para te compensar.
Ele abriu uma pasta e levou em minha direção, estava cheia de dinheiro, eu levantei a cabeça agradeci e pedi para que ele saísse, que eu não queria nada daquilo.
Ele sem entender não disse mais nada, deu as costas e se foi.
A vida seguiu, me esforcei ainda mais.
O tempo seguiu, não ficou esperando que eu me arrependesse da chance perdida.
Até que anos depois o conterrâneo foi visitar os parentes e me trouxe notícias de todos.
Ele me disse que algum tempo depois, ela se casou com um esnobe que sempre esteve próximo a nós, o pai morreu e o marido conseguiu acabar com tudo, com suas ideias fantasiosas de multiplicar o dinheiro.
O andarilho percebe a amargura da perda da vontade de viver que abateu sobre aquele ser diante da sua história de vida.
Mas reconhece que ele canalizou sua energia vital em algo produtivo ao invés de se lamentar por tamanha perda.
O homem olha dentro dos olhos do andarilho e diz com franqueza.
Caro viajante o que parece ser algo certo no dia de hoje pode se mostrar errado no dia da manhã, se eu tivesse continuado minha vida onde estava, jamais ia buscar qualquer tipo de melhora.
Com certeza eu teria me acomodado, mas ela continuaria sendo o que sempre foi, rica e mimada. Eu reconheço que jamais daria conta de acompanhá-la na vida social a qual ela era acostumada.
Sempre gostei das coisas mais simples, sem luxo e vaidade, a minha decisão beneficiou a nós dois, e hoje prefiro me guiar pela razão ao invés de tomar decisões movidas pelo sentimento.
O andarilho percebe que o homem não guarda rancor, e entende o caminho escolhido pelo estranho, pois as ideologias de vida só foram as mesmas durante a infância daqueles seres, mas com certeza na idade adulta os problemas iriam surgir.
E assim a madrugada chega, o estranho deixa o andarilho em uma pensão para que ele tenha uma noite de sono digna, e tome um bom banho.
E assim termina mais um dia na vida daquele que não tem apego pelo mundo material, e sim vive tentando entender a mecânica da vida humana na dimensão da carne.

(Paulo César de Castro Gomes, graduado em Direito pela Universidade Salgado de Oliveira Goiânia, pós-graduado em docência universitária superior pela Universidade Salgado de Oliveira Goiânia, pós-graduando em Criminologia e Segurança Pública pela Universidade Federal de Goiás - E-mail. [email protected])

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