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OPINIÃO

Das fantasias e espírito de Natal

Há vários natais que estou tentando passar incólume por eles, mas não é fácil. Este ano radicalizei: procurei não ligar a televisão para não ver tantos apelos ao consumo, também não ir aos centros comerciais e shoppings para não ouvir o “Ho, Ho, Ho” hipócrita dos covers de Papai Noel. Aliás, se os Papais Noeis andam com o saco cheio de presentes, de minha parte ando com o saco cheio de Papais Noeis. Este ser fantasioso que para as crianças se passa por bonzinho, no fundo é um ilusionista, que nesta época do ano aprimora-se na arte do hipnotismo, fazendo a cabeça dos pais para assim caírem na lábia de sua magia, deixando depois de presente as despesas do presente a eles.

As influências são tantas que até já inculcaram que o Natal é o momento de confraternização em família. Leia-se comilança e bebelância, um verdadeiro regabofe urdido para que no outro dia venha a ressaca, companheira da depressão. Ora, os membros da família nos fartamos de nos ver o ano todo, em aniversários, festas, encontros em família etc. Não seria a hora de festejarmos o natal - já que nos impuseram a necessidade desta fantasia -, acompanhados de famílias alheias, desconhecidas, a fim de que pudéssemos avaliar o mundo com outros olhos? Houvesse, pois, um intercâmbio de famílias para que nós nos destituíssemos do nosso âmago o egoísmo a que estamos acostumados, o qual nos individualiza através dos muros de nossas casas, seria interessante e diferente. Fica aí registrada a utopia.

Mesmo querendo me esquivar das utopias e das influências do momento, passando em frente a uma casa, elas me acharam. Não pude deixar de ouvir o verso de uma canção natalina que diz: “eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel...” Pensando bem, enquanto filhos da ignorância, temos sim este pressentimento de que todo mundo seja filho dele, principalmente as crianças. Mas não. Pobre do pai que se acha desempregado ou com o salário mal dando para a sobrevivência! Nesta hora não aparece um só Papai Noel para socorrer o pai verdadeiro e muito menos ao filho deste, que também deveria ser filho daquele. Na verdade, o Papai Noel do capitalismo é um filho da pura ilusão. No seu coração o sentimento que há é o do lucro, mesmo que este seja o do patrão, e vai ficar chupando os dedos a criança que, iludida pela fantasia, deixar a meia dependurada na janela à espera do seu presentinho.

Falando em fantasia, não sei o que ocorre, mas creio que a humanidade tem necessidade dela. Centenas de pessoas no Rio de Janeiro, esquecendo-se um pouco do mercador Natal, saíram para conhecer o tal Museu do Amanhã. Pode ser desconhecimento meu, mas não engoli isto. Museu do Amanhã? Que eu saiba um museu existe para resguardar o ontem ou o passado mais remoto a fim de que a história possa ser entendida. Agora, Museu do Amanhã sinceramente não sei o que vai expor, até porque como já diz a sabedoria popular o futuro a Deus pertence. Achei desperdício de dinheiro, apesar de ter saído da iniciativa privada. Mesmo assim poderia ser usado para outros fins nada surreais como construção de escolas e moradias para a população sem teto. É prova inconteste da concentração de renda e de que muitos abonados não sabem o que fazer do seu rico dinheiro.

Outro dossel de ilusão que cobriu as mentes humanas nesta semana passada foi a estreia do filme Jornada nas Estrelas II. Tudo bem que é arte, ficção, o que desperta nossa curiosidade para o porvir, bem como soma ao nosso cabedal cultural. Não pelo filme em si que diferentemente do Museu do Rio de Janeiro colabora para a nossa introspecção ao futuro. O que me estranha é a necessidade de as pessoas se fantasiarem deste ou daquele personagem, chegando ao ponto de irem assistir ao filme paramentados como os próprios. Não julgo se certo ou errado, mas discuto a necessidade de que o ser humano tem de sair da realidade e ir parar no reino fantasia. Se bem que, não raro, não é ele quem vai por sua espontânea vontade, mas é sub-repticiamente envolvido no mundo fantástico do poder ilusionista da política, o que o torna cego.  Afinal as instituições vão muito bem, obrigado...

Resolvi deixar esse lance de cegueira para um posterior artigo, já que o tema dá pano pra manga, melhor seria pegar outro caminho. Dito e feito, saindo eu à rua, vi um cartaz onde se oferecia leitoa para as festas de fim de ano, incluindo aí, claro, o natal. Imediatamente este evento deu-me as caras novamente, enlaçando-me pelo pescoço como um velho conhecido. Por isso vejo que é quase impossível passar batido, ocultar-me sossegado no meu nirvana particular. Pensei até em viajar por aí num mundo etéreo (agora quem fantasia sou eu), para ver se ao invés do corpo presente, encontro o espírito de natal.

Talvez o encontrasse em um Centro Espírita, onde pudesse dele receber uma mensagem, para que me explicasse sem rodeios por que motivo caiu fora. Se é porque, logo após ter chutado o balde, desorientou-se, e não consegue no meio de tantos reencarnar no seu verdadeiro corpo. Este, por seu turno, é certo que não mais o acha interessante e dele vive despistando, tomado que fora por um outro espírito mais profano, onde se sente melhor. Se o verdadeiro espírito de natal depara agora com o seu antigo invólucro certamente vai se negar a entrar em seus departamentos internos, visto que estes não mais condiziam com a sua pureza de outrora, eivado que está até a tampa de superficialidades mercadológicas. Pensando bem, retornando sem aviso prévio o verdadeiro espírito de natal seria rechaçado por estar desatualizado e anacrônico. É que o povo está com o diabo no corpo e quer só badalação, não suportado a monotonia de tradições, rezas e cerimônias.  Em protesto, o verdadeiro espírito de natal, creio, até decida reencarnar, mas desta feita em corpo de um esquecido animal qualquer, um simpático tracajá talvez, que vivesse nas areias frias de um ainda intacto riacho, menos em nenhuma atual asquerosa forma de corpo natalino.

Mas aí é viajar demais. Melhor ficar na minha. Só peço um presente, que não seja de Papai Noel, se possível for: que os ventos do evento de Natal soprem bem distante de mim. Santos numes!

(Joaquim de Azevedo Machado, professor e escritor - [email protected])

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