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OPINIÃO

Burro não amansa: acostuma

Como dizia meu conterrâneo Carmo Bernardes ao longo de suas gostosíssimas crônicas: a vida da cidade é emprestada.  De fato, volta e meia, o sangue mexe, e sobe na gente uma cegueira de ver sertão, e o remédio é arribar pra lá: pegar a pinha de carrapato miúdo nas capoeiras, atravessar riachos, comer carne de caça (escondido do Ibama), zanzar à toa pelo mundo, de pé no chão, descomprometido com o tempo e com as gentes.

Quem nasceu naquele mundão traz na massa do sangue a natureza de sertanejo, sentindo saudade das primeiras chuvas encharcando a terra e exalando aquele cheirinho de primeiras águas; saudade do leite cru ainda quente bebido numa cuia ali mesmo no curral, escutando o berro grosso e gutural da bezerrada; da carne de sol assada num espeto de taboca em cima da brasa pra comer com o pedaço de beiju de massa de mandioca tirada no dia; saudade das conversas cheias de inventivas do sertanejo de língua “estrangeira”, de tão peculiar, contando com gestos largos e exagerados histórias de caçada de onça e de pescada nas beiras dos rios e até histórias do trancoso da noite e assombrando corajudos nas esperas de flor de embiruçu nas noites de lua cheia.

Mas tudo é diferente hoje em dia. O tempo de hoje é contado com horários para tudo; hoje ninguém tem mais a resistência de andar montado uma hora, que dirá dia inteiro ou vários dias rasgando distâncias na junta de gado, navegando de sol a sol, para dormir onde os cascos do animal levam e no momento em que a natureza pedir e o corpo reclamar, sem a preocupação de saber o dia e a hora guiando-se apenasmente pelo sol e pela lua.

Quando morava lá nas alterosas, ia embarcando, na primeira oportunidade que me atravessava à frente; ia de carro, ia de ônibus, ia de avião, que era mais rápido; bem que gostaria de ir num bom cavalo esquipador, forrado com um coxonilho ou um pelego de carneiro cor de abóbora, mas a distância não recomendava: de lá pro meu torrão é chão que dá abuso! A concessão do progresso em cima de rodas é apenas uma concessão, que aceito meio amuado, com coisa de sem outro jeito, mas sem parte de mal agradecido por força da precisão.

Mas se dispensava – por não ter outra valença – o cavalo, por impotente pr'essa distanciona toda, não dispensava a carne seca, a farinha de mandioca, o leite cru no curral, a rede armada na casa dos bezerros, para assuntar a vida passar, o tempo capengar caminhando devagarzinho ali na minha frente, sem pressa de ver o sol descambar e a boca de noite engolir o mundo.

Sem essas imagens adrede fabricadas no pensar, uma viagem ao sertão perdia a graça e ficava aguada.

Diz o ditado: “Burro não amansa; acostuma”; é assim – o sertanejo, que saiu do seu casulo e abriu caminho mundo afora para viver uma vida postiça de civilizado. Mas volta e meia, o sangue alvoroça, chacoalha nas veias, a vontade chega, e o negócio é levantar poeira.

Agora, que se acabaram as razões de voltar àqueles tempos (porque o ônibus sepultou o cavalo-de-sela e houve progressos matando as coisas boas do passado), contento-me com coisas mais simples: anos atrás, meu primo Reinaldo arranjou e ocupou uma ilhazinha no Rio Paranã, a poucos quilômetros da rua, e fizemos umas benfeitorias (barracão, água encanada, luz, cozinha, geladeira e até uma TV), e temos até a licença de ocupação do órgão oficial.

Quando a quadra da lua começa a melhorar pra desfrutar de uma ceva de pacu e piau, principalmente da cheia pro minguante, arranco-me pra lá e passo uns dias sossegado com Reinaldo, sua mulher, Nélia, e às vezes os filhos Fernando e Júnior, que moram fora, além do caçula Matheusinho, que ainda vive debaixo da asa dos pais e já ensaiando um chamego com as meninas nesta fase de engrossamento da fala. Além de desfrutar das noites em que a lua transforma o rio numa lâmina de prata refletindo,, folgo em dar um pulo ao centro da velha Paranã, pra relembrar os causos de lá com Alverne, Jari, Ilma Bezerra, Haydée e Creusa Benevides, além de receber as bênçãos de Enedino Neto, que, após morar na terra do tio Sam bons pares de anos, voltou transformado e hoje, como funcionário municipal, cuida com muito zelo das comunidades quilombolas da região.

Enquanto você, leitor, está lendo estas caraminholas de sertanejo com jeito de acostumado e não amansado, eu me imagino lá naquele mundão, num bem bom, sem relógio, sem rádio, internet ou qualquer liame com o mundo, a não ser a inexorável folhinha para assuntar o dia de volta.

Enquanto me esqueço da vida, rebuçado numa coberta para rebater o frio de meio de ano naquela abençoada ilha, aqui o mundo está virando às avessas, com estas coisas de horários e compromissos e às vezes até me fazendo deixar escrita uma coluna para não faltar na minha ausência, pois, afinal, o leitor também pode até não gostar, mas também acostuma.

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

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