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OPINIÃO

Totó Cigano

A década de quarenta chegava ao fim quando, sem mais nem menos, enfiou-se em nosso meio. Relacionou-se, primeiro, com um grupo de jovens estudantes, alguns secundaristas, outros de direito - Haroldo de Britto e seus irmãos Élbio e Renato, Élder Rocha Lima, Declieux Crispim Sobrinho, Sebastião de Barros Abreu, Dib Abrão - contumazes tomadores de cafezinhos, nos bares do centro de Goiânia, onde gastavam preciosas horas, discutindo literatura, música e marxismo.

Depois, mansamente, chegou e se abancou no jornal comunista - O Estado de Goiás - dirigido pelos jornalistas e advogados Alberto Xavier de Almeida e Jonas Teixeira da Matta. Tornou-se íntimo de seus tipógrafos: eu, Nilo Teixeira, Rubem Jonas, Lafaiete Moraes, Valdemar Silva.

Quarentão, estatura pouco acima da mediana, magro, pele amarelada parecendo convalescer de maleita. Vestia-se com elegância: terno bem passado, camisas de mangas compridas, abotoaduras nos punhos, colarinhos engomados; gravatas bonitas; sapatos sempre lustrosos; chapéu com dobras bem cuidadas, nunca fora da cabeça, tentando esconder os cabelos já grisalhos.

Ávido leitor de tudo que lhe caia sob os olhos; avesso a todo esforço físico: incapaz de abrir uma gaveta, atender um telefone, escrever um bilhete, anotar um endereço.

Não era propriamente um conversador, um amante do diálogo. Emitia suas opiniões, quase sempre espirituosas ou fantasiosas, mas fugia à esgrima de ideias, evitando controvérsias. O encantamento estava no modo chistoso de abordar, ou mesmo inventar os próprios fatos. Sem nunca usar gestos espetaculares, utilizava impressionante mímica facial para colorir seus discursos, assim como gravava algumas palavras, alongando-as sílaba por sílaba.

Bom observador e crítico mordaz, tendente para o cômico-trágico, mestre em arranjar apelidos espirituosos, para as pessoas que conhecia. Em troca, por ser ele verdadeiro andarilho, o apelidamos de Totó Cigano, entregando ao esquecimento seu verdadeiro nome.

Embora avesso a qualquer esforço físico, tinha hábitos cotidianamente regulares. Levantava-se bem cedo e estava entre os primeiros a disputar as frescas frutas no Mercado Central, então situado ali na Rua Quatro, entre a Seis e a Sete. Em seguida, batia ponto e papo no jornal, onde lia alguma coisa. Depois passava o dia perambulando pela cidade, com várias revisitas ao jornal, que se tornou o “peão” de suas andanças. Certeira, também, sua ida diária ao pequeno apartamento de solteiro de Jonas Teixeira da Matta, a quem dedicava sincera amizade e ao qual pespegou o apelido de Antônio Conselheiro. À noite, enturmava-se com os jovens comunas, até altas horas. Não fumava, nem bebia.

Algumas coisas em Totó Cigano, entretanto, nos intrigavam. Ninguém nunca o viu se alimentando com garfo, como todo cristão. Isto é, almoçar e jantar. Parecia viver apenas de frutas e cafezinhos, talvez a causa de sua aparente desnutrição. Não era comunista, mas, diferente de nós, que tínhamos endereço certo e sabido, ninguém sabia onde ele se “escondia”. Desconhecida, também, a fonte de sua subsistência, que a bem da verdade, não parecia muito generosa. Como todo vivente que se preza, teve alguns momentos de dificuldades monetárias, mas nunca fraquejou em sua dignidade. De nossa camarada solidariedade, aceitava apenas cafezinhos, sempre retribuindo: “Qualquer hora mato essa bruta fome de vocês.”

Naqueles anos, na ilegalidade e no contexto da guerra fria, o Partido Comunista, adotava uma política radical e delirante, pela derrubada violenta do Governo Constitucional e implantação de um governo “popular anti-imperialista”. Como já afirmei, Totó Cigano não era comunista. Vivendo em nosso meio, era arredio em discutir, frontalmente, nossas ideias. Entretanto, não perdia vez em cutucar nossa prática política:

Revolução - O “General” de vocês (Luiz Carlos Prestes), só foi revolucionário antes de virar comunista. Em 1930, o cavalo da revolução passou arreado e ele não montou...

Juventude Comunista - “Esses meninos do ‘Galã’ (Moacir Belchior), ainda uns biscoitinhos na folha de bananeira, vivem aí pintando muros e pendurando bandeirolas nos fios de alta tensão. Vão acabar eletrocutados...”

Alma sertaneja - “Vocês andam aí pelas roças, pregando revolução, mas não conhecem nada da alma sertaneja. Olhem. Uma noite dormi em uma pensão, lá na Barranca, à beira do Rio das Almas. O dia nem tinha clareado, acordei com uma algazarra dos diabos. Um corpo havia aparecido boiando nas águas do rio e pendurado em uma das vigas da ponte, esperando que alguém o reconhecesse. Na porta da pensão, um punhado de roceiros, ao redor de um vendedor de laranjas, depois de chupar as frutas, atiravam os bagaços no defunto, apostando quem tinha melhor pontaria.... Esta é a alma sertaneja.”

Bolcheviques - “Vocês, com essa mania de imitar os bolcheviques, andando por estes cafundós, vão acabar é mortos pelos jagunços dos fazendeiros ou pela polícia... No Brasil, os únicos sertanejos que já brigaram, foram os seguidores de Antônio Conselheiro, do Padre Cícero e do Lampião. O sertanejo só briga por causa da ‘muié’, dos ‘fio’ e dos cachorros magros e pulguentos. As únicas coisas que têm.”

Tochistas - “Vocês, quando crianças, devem ter lido muito Gibi, com historinhas do Tocha Humana. Com essa história de defender os fracos e oprimidos, vão acabar é presos ou mortos. Vocês não são marxistas, são uns tochistas...”

Comunismo e Dinheiro - “A única pessoa, no Brasil, que já ganhou com essa história de comunismo, foi o Boris Pasternak (Jorge Amado). Com uma mãozinha do Cominform, ficou conhecido no mundo inteiro e enricou. Olha o miserê do ‘Casa Velha’ (Bernardo Èlis) e do ‘Mal Ajambrado’ (José Godoy Garcia)...”

Idolatria - “Eu me preocupo com o Guru de vocês (Alberto Xavier de Almeida). É tamanha a idolatria de vocês por esse moço, que qualquer hora vocês o sequestrarão e o manterão preso em algum ‘aparelho’ lá na Barranca...”

O casamento - A notícia se espalhou como se fosse mais uma daquelas de Totó Cigano. Ele iria se casar... O assunto valeu muitas discussões. Respeitoso com as mulheres, ninguém nunca o tinha visto abrindo asas ou acompanhado por alguma. Melhor analisado, era até mesmo arredio a assuntos ou piadinhas que as envolvessem. Na verdade, um andante solitário, como teria caído em uma rede feminina? Da discussão à investigação, descobriu-se que a história era verdadeira. Até com dia e hora já marcada na Catedral. Ele, pedindo rigoroso sigilo, havia convidado Haroldo de Britto e Jonas Teixeira para padrinhos.

A noiva, uma senhora de família de classe média, bastante conceituada, professora de música, já avançadinha no tempo, mas não mais que ele. Como “pescou” Totó Cigano, um verdadeiro e inexplicável enigma. Dia e hora aprazados, no apartamento de Jonas Teixeira, se encontravam os mais próximos do noivo, o qual, por sinal, chegou quase atrasado. Desalentado e sem nenhum entusiasmo, foi levado pelos presentes, como um “boi de piranha”, para cumprir o compromisso casamenteiro.

Mencheviques: Na manhã seguinte ao casório, Totó Cigano, como sempre, chegou cedo no jornal e foi logo ao assunto: “Pensava que vocês fossem bolcheviques. Mas vocês são uns mencheviques.... Imaginem, eu com beri-beri, febre de mais de quarenta graus e vocês me levarem para ajoelhar naquele altar. Pior, permitiram que aquele lambe-lambe tirasse retrato daquela cena horrenda...”

Despedida: Totó Cigano não mudou seus hábitos, mas já não era mais o mesmo. Acabrunhou-se e perdeu a verve. Uma manhã, chegou ao jornal e com visível angustia proclamou: “Estou indo embora. Não aguento mais, toda noite, ter de colocar um pijama e tomar um copo de leite gelado. A culpa foi de vocês. Se não tiverem notícias minhas, é porque morri na revolução, lá no Paraguai...”

Alguns anos depois, casualmente, Haroldo de Britto encontrou Totó Cigano, em uma praça de Ribeirão Preto.

(José Moraes. Tipógrafo aposentado. Email: [email protected])

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