Tempos atrás, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou ter sido er-radi¬cada definitivamente a malária da face da Terra, notícia recebida com grande alí¬vio pelos que outrora viveram o drama da febre e do frio do impaludismo. Tempos depois, foi a vez da varíola que, segundo a OMS, foi riscada da lista das doenças. Não existe mais varíola, a conhecida e pavorosa bexiga.
Quando se fala em bexiga em minha cidade, os velhos chegam a benzer-se e a esconjurar a epidemia que, em 1926, quase dizimou a população dos arredores da Vila de São José do Duro (hoje, Dianópolis), que, sendo de mais ou menos duzentas pessoas, ficou reduzida a 136, pois a epidemia ceifou 64 de¬las.
Naquele ano, meu tio Antunim, regressando da Bahia, chegou à fazenda Açude com a filha Maria doente, corpo empolado, com jeito de catapora. Ali recebeu visita de amigos e parentes, dentre eles meu pai (irmão dele), que era o entendido de doenças e remédios. Na sua visita ele fora com sua primeira mulher, Mariquinha.
Diante da doença de Maria, meu pai, que já tivera bexiga quando estudava em Barra/BA, suspeitou que a garota estava com a doença e recomendou que tio Antunim a isolasse. Assim foi feito: tio Antunim transferiu-se para o Porto das Canoas (hoje fazenda São Sebastião, banhada pelo rio Palmeiras, a três léguas da cidade), onde lhe adoeceram os filhos Abenílio e Alzira. Dias depois, a primeira esposa de meu pai caiu de cama, fale¬cendo pouco depois.
A notícia da bexiga espalhou rapidamente o terror na população. Mandaram um positivo a Barreiras/BA, a mais de 300 quilômetros, a cavalo, atrás de vacina, mas quando vacinaram o povo a contaminação já era grande. Ninguém ousava sair para visi¬tar ninguém.
Como Abenílio estava à porta da morte, tio Antunim mandou buscar Justino Bento para fazer o caixão. Justino, mesmo sentindo-se condenado por não se ter vaci¬nado, não deixou de atender ao amigo. Antes, porém, reuniu os filhos dividiu suas po¬bres ferramentas de carapina, despediu-se de um por um e foi atender ao chamado. Lá, morreu de bexiga, e seu corpo foi jogado no rio Palmeiras, pois faltou quem o se¬pultasse. Quanto a Abenílio, escapou, mas ficou com o rosto bordado, pelo rastro da varíola, mo¬rando em Paranã, até morrer, guardando no rosto a certidão da doença. E Abenílio não só escapou, como deixou perpetuando a família, uma fieira de dez filhos.
Perdendo a esposa e já tendo tido a doença, meu pai passou a andar de casa em casa para cuidar dos doentes, e fez de sua morada da fazenda Santo Antônio uma es¬pécie de hospital, onde, após a doença ter levado seu auxiliar, Gracindo lnácio de Jesus, passou a ser o enfermeiro, o cozinheiro, o coveiro.
Na fazenda Prazeres, morava um agregado de meu avô, por nome Higino, com nove filhos. Todos morreram. Quando um adoecia, o outro ia cuidando até cair de cama, e todos morrendo. Os últimos que ainda viviam, não suportando o mau cheiro dos corpos em decomposição, conseguiam arrastar os cadáveres para o terreiro, onde eram disputados por cães e urubus, num macabro banquete, uma tortura para os ainda sobreviventes, pois sabiam com oito filhos, foi ex¬tinta, a exemplo da de Higino.
Ninguém podia receber socorro, e muitos morriam de fome e sede. Os corpos passaram a ser queimados, para evitar maior propagação da doença. No sitio Piaus, de Augusto Rodrigues, morreu Joana, e Augusto prometeu a um morador por nome Zé Formigão uma matula se ele queimasse o corpo. Zé Formigão cumpriu a tarefa, mas não teve tempo de receber a paga: morreu de bexiga.
Na Vila de São José do Duro, uma louca chamada Chica Doida cismou que São José Pa¬droeiro era o culpado da pavorosa epidemia. E apanhando uma camisa de Antônio Martins, toda impregnada de pus variólico, foi à igreja e enfaixou a imagem com a advertência de que ele acabasse com a doença ou ficaria doente também. Chica Doida morreu dias depois, com o corpo coberto de bichos.
O bexiguento era um proscrito: ninguém ia visitá-lo sob pretexto algum, mesmo parentes. Quando alguém ia socorrer um enfermo com água, alimento, ca-chaça canforada ou creolina, esperava que o vento soprasse na direção do doente (para não receber o ví¬rus) e ficava cá de longe a uma considerável e segura distância e anunciava em voz alta, que estava deixando o auxílio em um determinado ponto, para depois o do¬ente vir buscá-lo.
Hoje ainda se fala na pavorosa bexiga que assolou a região, e todos os que sen¬ti¬ram na pele o castigo do mal certamente levantarão as mãos para o céu com a alvis¬sa¬reira notícia de sua extinção.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, escritor, jurista, historiador e advogado, membro da Associação Goiana de Imprensa -AGI. [email protected])