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OPINIÃO

O cheiro de cada lembrança

Hailton Correa ,Especial para Opinião Pública

“Isto não está me cheirando bem.” Quantas e quantas vezes ouvimos ou dissemos essa frase? Muitas. Com certeza, sim.  Quando se suspeita de algo, ou mesmo havendo pressentimentos de que determinada situação pode não acabar bem, seja por motivos aparentes ou tácitos, usamo-la.

Dos cinco sentidos, considerando — claro! — serem todos muito importantes para nossa orientação no meio em que vivemos, certamente o olfato é o mais intrigante. Digo “intrigante” no sentido popular, sem querer me meter em explicar cientificamente sobre o seu funcionamento. É que através do olfato podemos velejar para lugares distantes, num passado recente ou remoto. Quando sentimos determinado cheiro, nossa memória é instantaneamente acionada, e emerge, dos lugares mais profundos de nossa memória, essa ou aquela lembrança. É automático. Automático e rápido.

Cheiros. Aromas. Perfumes. Ou mesmo odores. Seja qual for a palavra, e sem afirmar que elas se equivalem, é inegável que cumprem magicamente a função de ignição do que está arquivado no fundo de nós. Por exemplo, compulsando aqui na minha cachola, dá para enumerar mais de uma dezena de cheiros que me arremetem a alguma lembrança, e sei que pode haver mais pessoas com as quais isso aconteça coincidentemente.

A primeira delas vem do cheiro de plástico. Aquele cheiro de vasilhas plásticas novas. É sentir e me lembrar, como se fosse ontem, dos Natais de minha infância. Natais? Como assim? Simples. O Natal, o tempo dos presentes. E os presentes que preencheram os meus foram os carrinhos e caminhõezinhos ganhados de pessoas da família, ou de programas sociais da época. É possível até lembrar dos detalhes de cada um dos brinquedos que tive, apenas diante do cheiro do plástico. É possível se lembrar do desembrulhar das embalagens, do cuidado em colocá-los no chão para não sujar. É possível lembrar dos sons das rodinhas pelas calçadas. É possível lembrar dos amiguinhos da época, com os quais foram compartilhados esses momentos. Tudo isso diante do simples cheiro de plástico.

Um outro cheiro que traz forte lembrança é aquele dos forros de mesa, esses forros transparentes. Quando o sinto, lembro-me dos primeiros anos de escola. Lembro-me da primeira mochila. E essa reminiscência tem um peso maior, pois, até então, eu ia à aula com os cadernos dentro de saquinho de açúcar. A antiga promessa da mamãe se cumpriu quando ela chegou com um certo embrulho. Ao abrir, ligeiro, lá estava o que os meus olhos custaram a dar por si: uma bela mochila dos “Smurfs”, com detalhes azuis e vermelhos e um fecho metálico de girar. De noite, nem comi direito. Brincava um pouco e, correndo, ia olhar a mochila. O dia custou amanhecer, porque custei a dormir. No outro dia, foi só alegria. Cheguei a escola de mochila nas costas. O máximo.

O cheiro de livro. Nesse terceiro item não há pontualidades, um momento específico. As lembranças são mais dispersas que as outras. Uma delas é de quando havia em nossa casa uma caixa de papelão sobre o guarda-roupa com muitos e muitos livros. Livros usados. Entre eles, Antologia Poética, de Carlos Drummond de Andrade. Os sinais de cupim, as páginas sujas, nada me fez deixar de correr os olhos pelas poesias, as primeiras que li com olhos de agrado. Eu devia ter uns doze anos. Pedi para ficar com ele. Permitiram.  Hoje o cheiro de livro velho me leva, dentre outros, a esse fato.

Cheiro de dama-da-noite. Cheiro de fazenda. Cheiro de manga pequena. Cheiro de goiaba. Cheiro de terra molhada pela chuva. Cheiro do gel de cabelo. Cheiro de fumaça ou pastilha de freio queimada de caminhão. Cheiro de álcool. Cheiro de alho cru. Cheiro de borracha queimada. Cheiro deste ou daquele perfume. Para cada qual, no meu caso, uma circunstância passada, pelo qual foi deixado tatuado na memória. Alguns levam a aproximações, relances; enquanto outros, a pontualidades, a precisões.

Tudo cheira bem quando cheira a passado. Seja lá qual for a lembrança, tenho comigo que todas são determinantes para nos orgulharmos do que somos. Dos cheiros das coisas, as reminiscências saltitam para fora, ficam inquietas, tornam-se peraltas as informações. Do escuro e frio canto à superfície iluminada e quente da memória; nos entregamos a um suspiro profundo. Tudo junto, cheiro de vida, cheiro de pulsar, e neles a sensação de tantos caminhos percorridos e a expectativa de outros tantos que haveremos de percorrer. Cheiros, lembranças e viveres. Ah...

(Hailton Correa é agente prisional, graduado em Letras pela UEG/Inhumas e escritor. Contato: [email protected])

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