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CULTURA

Está ouvindo? Não é não

Não há registro de nada parecido no carnaval de rua goianiense com a iniciativa criada pelo bloco “Não É Não”, em 2020. Educativo, afetuoso e engajado, o folião espalhou mensagens conscientes que abordaram temas que afrontam a cartilha conservadora e a moral puritana: milhares de pessoas prestigiaram a vibração do batuque dos tambores, dançaram ao som da marcinha e angariaram consciência política a partir da campanha educativa contra o abuso sexual promovida pela agremiação na folia.

Cá para nós, o coro carnavalesco não se esvaiu na Quarta-Feira de Cinzas. Em uma sociedade cujos valores foram fundados sob a lógica do patriarcado, com uma pesada escravidão negra e que só aceita um modelo tradicional de família, a inversão de valores cumpre a função de extrapolar o aspecto protocolar e garante um propósito pedagógico, com muito samba e muita dança: o carnaval expressa a ética da igualdade, de uma nova canção na qual é cantada a alegria, como atestou Dorival Caymmi.

Com tiradas políticas como “não ponha a mão na Marielle, não é não” e cômicas do tipo “a besta Paulo Guedes só dá trela”, o videoclipe da música “Não É Não”, do Bloco da Desconstrução Coletiva, foi lançada na última segunda-feira (8) numa live especial em homenagem ao Dia Internacional das Mulheres. A composição, parceira de Diego Mascate e Léo Pereira, do Terrorista da Palavra, aponta problemas do Brasil que se tornaram comuns desde o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).

“É função do artista se manifestar filosoficamente. Eu faço arte para dizer. E faço também para o meu aprendizado. Se faço para o meu aprendizado, faço também para o aprendizado do outro”, afirmou Pereira, que é escritor, dramaturgo e comunicador social. A música, continua ele, tenta fazer uma radiografia cômica do país, mas ao mesmo tempo anárquica e lúdica. “Desse estado de golpe que a gente vive no Brasil desde o advento do governo Temer e agora com o governo Bolsonaro.”

Na canção, chama atenção a entonação vocal de Milla Tulli e Mascate no momento do “não é não”, o clímax da música. A ideia da música nasceu de Léo, que convidou Diego Mascate para a parceria. Então eles compuseram “Não É Não”. Em seguida, surgiu o convite para participar do concurso de marchinhas, promovido pela A Casa de Vidro Ponto de Cultura. Depois, ela foi reproduzida no bloco carnavalesco.

“Foi um movimento que, inicialmente, surgiu da minha parceira com Leo, mas depois tomou um corpo coletivo, envolvendo os músicos, envolvendo toda essa força coletiva, que é bem o carnaval: carnaval é essa festa do povo, essa festa popular, uma realização sempre em conjunto, em clima de festa”, disse Mascate na live. “A gente vê claramente, hoje, que o crime está no poder. Eles não querem de forma alguma nem mesmo respeitar a Constituição de 88, rasgando uma série de direitos estabelecidos.”

Para Cida Alves, do bloco Não É Não, o bonito é que a música não ficou restrita apenas ao concurso de marchinhas carnavalescas. Para ela, um corpo para ser dominado precisa ser um corpo entristecido em sua potência, em sua capacidade de dizer a que veio e em sua capacidade de expressar seus amores e seus desejos, com sua liberdade sexual silenciada pela moral vigente. “Então o Bloco Não É Não traz também esse discurso de que, na nossa luta contra a denominação, a alegria é a energia potente.”

Clipe

As imagens do clipe foram captadas pelo cineasta Eduardo Carli e contam com cenas do Bloco Não É Não pelas ruas de Goiânia, em uma montagem (também assinada por ele) que casa a letra da canção com a mensagem emancipatória disseminada pelo folião pelas ruas de Goiânia, em 2020. Um dos momentos mais interessantes do filme é quando a letra aborda o racismo e, na sequência, numa sobreposição dialética, há pessoas negras comandando a folia: afinal, a liberdade dos povos é necessária para que de fato consigamos evoluir enquanto sociedade.

Se historicamente as marchinhas narram temas do cotidiano, então é preciso resistir à violência cotidiana que atinge as mulheres: a cada oito minutos uma mulher é estuprada. É um dado alarmante que, em meio à torrente de grosseira que faz do Brasil um palco de vexames, a composição de Léo Pereira e Diego de Moraes honra a memória de Chiquinha Gonzaga (a primeira a compor uma marcha carnavalesca e, não por acaso, vítima da falácia da democracia racial que atinge a História) e Tia Ciata, duas das personalidades mais marcantes da cultura popular brasileira.

Chiquinha e Ciata fizeram absolutamente o contrário do que é esperado que uma mulher faça no seio da sociedade patriarcal: a primeira criou a clássica marcinha “Abre-alas” enquanto a segunda é reconhecida como a matriarca do samba e símbolo da resistência negra no Brasil pós-abolicionista. Pela história e por tudo o que ela representa, tanto o clipe quanto a música “Não É Não” chegam em um bom momento. Mais do que ser anti machista, é preciso fazer ruir as estruturas do patriarcado.

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