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ENTRETENIMENTO

Por que voto no PT, ou: uma provocação à esquerda radical

T enho 24 anos recém-com­pletos. Tinha 8 quando vi, por um antigo televisor de tubo, FHC passar a faixa presiden­cial a Luiz Inácio Lula da Silva. Não entendia nada daquilo à época. Amadureci e desenvolvi minhas aptidões sociais e cognitivas para com o mundo sob governo petis­ta. Tendo-o, portanto, como figura de autoridade. Fui preso sob uma gestão petista (à época este par­tido ocupando tanto o executivo federal quanto o municipal onde eu residia) por questionar o valor da tarifa do transporte público que eu usava. Passei três anos agrilhoa­do por medidas cautelares que me restringiam a atuação política. Sob um regime petista.

Isso dito, a diligência políti­ca faz-nos ter de avaliar algumas coisas. Não falarei aqui de Bol­sa família ou endossamento de qualquer natureza neste senti­do. Falarei de algumas premis­sas básicas que necessariamente têm de ser respondidas pela es­querda radical no seu elemen­tar: a análise tática do momento.

Apesar da relativa inverdade de que “tanto no PT quanto em qual­quer outro governo” a classe traba­lhadora só perdeu, assumirei, para fins de argumento, como verdadei­ra esta proposição. Sou um mate­rialista praticamente mitocondrial e levo a sério a tese de que a luta de classes é o motor da história e o ve­tor explicativo fundamental das di­versas questões sociais. Entretanto não se explica assim tão facilmen­te, e por simplismos, as questões de conjuntura. Assumamos por­tanto esta tese de que tanto fez o PT como qualquer outro governo fa­ria, ainda que, novamente, eu não entenda ela como verídica.

Uma classe social não é um ente abstrato que paira no ar. Ela é composta por diversos matizes, nuanças, subtilezas, extratos e di­ferenciações (por vezes até mesmo antagonismos) internas, atravessa­da por uma série de contradições. A diferença entre uma classe-em­-si e uma para-si está precisamen­te no fato de que do ponto objeti­vo apresenta-se a classe social pela sua realidade econômica (classe­-em-si), mas só pela luta política, e pelo acúmulo de vínculos que esta gera, adquire a classe uma realida­de sócio-cultural e política (classe­-para-si) coerentemente orienta­da com seu interesse (para quem precisar de mais: vejam a introdu­ção à “crítica da filosofia do direi­to de Hegel” escrita por K. Marx ou as primeira e terceira partes do ensaio de G. Lukács “a reificação e a consciência do proletariado”). O momento em que ela passa do “apresentar-se” (classe-em-si) para o “expressar-se” (classe-para-si). Do “existir no mundo e mecani­camente nele intervir”, para o “agir ativa e conscientemente sobre o mundo e produzi-lo”.

“Em miúdos que quer isto di­zer”? Quer dizer que no interior da classe trabalhadora existem pre­conceitos, existem ranços oriun­dos de uma cultura que, apesar de atualmente urbana e pretensa­mente diversa, tem enraizamentos ainda não muito distantes numa herança com sérios vícios provin­cianos e arcaicos quanto a ques­tões como: gênero, raça, respeito geracional, etc. (pra isso enten­dermos a nível de Brasil não pre­cisamos de mais que um bê-a-bá que, desde um conservador como Oliveira Viana até um respeitado da esquerda como Florestan Fer­nandes – passando, no meio do caminho, por sujeitos insuspei­tos de pouco competentes como Guerreiro Ramos e Sérgio Buar­que de Holanda, está catalogado e elucubrado no pensamento so­cial brasileiro). Existem portanto incoerências e atritos que mitigam as possibilidades de formação de vínculos que expressem a identi­ficação dos sujeitos com seus se­melhantes pela seu pertencimen­to a uma mesma classe.

Podemos assumir verdadeiro, numa óptica muito estrita e espe­cífica da análise da luta de clas­ses, o argumento de que o PT não contribui para o avanço da luta da classe trabalhadora. A autoi­dentificação interna desta classe (que contribua para a sua estrutu­ração enquanto sujeito político ati­vo), entretanto, necessita da elimi­nação da miríade de preconceitos e pequenas fissuras acima elenca­das. Condição sine qua nom para articularmo-nos e organizarmo­-nos pela revolução social. É um fato dificilmente questionável que, com todas as limitações intesti­nas a um governo conciliador, a questão de gênero foi de algum modo tratada nos governos do PT, a questão racial teve amplia­ção de sua visibilidade, a questão LGBT obteve avanços mínimos, mas com impactos substantivos (não estou aqui a dizer que isto te­nha sido fruto da boa vontade do PT, mas que por meio da pressão social vários destes grupos con­seguiu extrair deste partidos po­líticas que as interessassem). Em suma, os diferentes extratos que pertencem à classe trabalhado­ra puderam minimamente reco­nhecer-se mais como iguais e me­nos como diferentes no que tange a questões estritas de identidade (1 – isso ainda não está nem de lon­ge plenamente resolvido; 2 – isso é condição para uma articulação de classe, não algo que naturalmen­te a viabilize).

Isso é condição necessária para nossa autoidentificação enquanto classe e está radicalmente amea­çada de se perder. Não porque o governo do PT as tornará me­lhor, mas porque o outro gover­no as destroçará todas e muitas mais (aqui falo inclusive no cam­po estritamente econômico, visto que a lista de privatizações alme­jadas não para de crescer, alijando os bens públicos; a legislação tra­balhista medieva ora vigente será mantida e; “no tocante” à previ­dência os vagos comentários não ensejam muita esperança).

Falei isto na minha primeira manifestação de voto (inclusive havia sido a primeira desde que, de livre e espontânea vontade, ti­rei meu título aos dezasseis anos para resoluta e convictamente anulá-lo). É inútil enxergar nas eleições o reduto último da nos­sa emancipação. Se levamos esta afirmação a sério, o voto nulo a todo custo (ou por “princípio mo­ral”) é simplesmente uma incoe­rência. O que se mostra pruden­te e coerente é entender a eleição pelo que ela é: um instrumento da democracia burguesa, mas que, como tudo, é perene de fissuras e contradições (um exercício dialé­tico primário ajuda a compreen­der) que podem ser exploradas. Não disputadas, mas exploradas, exploradas em prol da abolição desta própria estrutura.

O purismo moral não pode impedir-nos de enxergar os fa­tos. O número de votos acima do esperado no candidato que ora faz frente ao PT demonstra que existem muitos “envergonhados” ainda por se revelar. Do ponto de vista prático isso significa um re­trocesso sócio-cultural que afeta­rá toda sorte de “minorias” (entre aspas porque minorias nunca fo­ram). A consequência desagrega­dora disso, pensando em termos de classe, será incalculável.

A vaidade de arvorarmo-nos no purismo da nossa radicalidade discursiva não deve ser prioridade quando as possibilidades mínimas de articulação da luta social con­creta mostram-se ameaçadas ao nível da imprevisibilidade de sua reestruturação no futuro próximo.

Se, por um lado (e eu defen­di isto e continuo sustentando), o PT é um neutralizador contu­maz das forças radicalizadas da sociedade, por outro um gover­no de seu oponente seria não a neutralização, mas o extermínio das nossas fileiras, que demora­ria gerações para ser reparado.

Muitos têm dito que a radica­lidade e a coerência estão em en­frentar de frente o fascismo. Não temos nem a coesão necessária para isso no momento, nem pro­jeto que dê capacidade aglutina­dora para produzi-la, a coesão, e fazê-lo, o enfrentamento. A his­tória mostra (peguem de Lean­dro Konder no “introdução ao fascismo” até um João Bernar­do no seu gigante “Labirintos do Fascismo”... passando ainda por obras como “Dialética do Esclare­cimento” dos alemães T. Adorno e M. Horkheimer) que o fascismo sempre tende a ampliar-se (como possibilidade) quando a classe trabalhadora apresenta uma ra­dicalidade que insufla em senti­do amplo a sociedade sem proje­to que dê vetor direcional a esta. Espontaneísmo difuso e român­tico nesta altura não nos ajudará.

O que eu disse noutro texto se­manas atrás postado haverá de passar por balizas mediante a atual conjuntura, mas, no agrega­do, continua sustentável: o tempo é de pararmos de curto-prazismo, de pensarmos as possibilidades reais (e bastante módicas) que o pleito eleitoral possibilita e apro­veitarmo-nos delas para calma e diligentemente procedermos a uma recomposição das nossas fileiras. Não posso senão chamar delirante aquele que supor que a revolução está às portas e que nosso povo está disposto e orga­nizado para uma radicalização e tomada do poder. S. Zizek tem al­gum grau de razão ao dizer (o con­texto era outro – occupy wall street – mas a lógica aplica-se aqui) que, se Marx estava certo, em seu tem­po, na sua 11ª tese sobre Feuerba­ch de que “os filósofos só interpre­taram o mundo, o ponto agora é transformá-lo”, hoje talvez tenha­mos de “reinterpretar um mundo que parecemos não muito bem compreender para poder trans­formá-lo efetivamente”. Isso pas­sa por reavaliarmos nossas forças e saber o que delas fazer e como ampliá-las. Isso leva tempo e pre­cisará de mais do que a urgência cega e o imediatismo infantil.

Não é momento para vaidades morais. É a vida de pessoas que está em jogo. Sim, a classe traba­lhadora continua explorada. Sim, nas favelas e periferias, sob gover­nos do PT, a violência contra a po­pulação só cresceu e continua a crescer. Sim, eu tremo de amargo na garganta porque detesto este partido e creio que os deméritos que ele apresentou só clarificam ainda mais a percepção de que só nós podemos mudar o mundo em prol daquilo que consideramos uma sociedade melhor.

Mas também sim: o fascismo é uma realidade concreta his­tórica e que agora nos espreita. Trata-se da ampliação dos estig­mas, da relativização perversa de direitos básicos, da guarida para o extravasamento de toda sorte de preconceitos e de escabrosi­dades contra as quais temos de lutar inclusive dentro das nos­sas trincheiras para proceder a uma organização de classe poli­ticamente robusta. Pessoas vol­taram a relativizar a ditadura ci­vil-militar de 64-85; sentem-se à vontade outras tantas para gritar em coro, numa estação de metrô e a plenos pulmões, que Bolso­naro irá “matar a bixarada”; ou­tras mais creem agora normal externar que lugar de mulher é sim na cozinha; e vários veem com naturalidade um candidato à presidência dizer que o “afro­descendente”, de um quilombo que ele alega ter visitado, “mais leve lá pesava 7 arrobas e que nem pra procriação devia servir mais”; e ganha plausibilidade, ainda, a tese de que o problema do sul/sudeste do país é a imi­gração nordestina e que o me­lhor seria “desanexar” a região.

Jamais gostei do PT, mas não é disso que se trata. É em primeiro lugar de ganhos mínimos que su­cumbirão e, em segundo, do fato de que o sucumbir destes ganhos nos fragmentará ainda mais en­quanto classe. A nossa vaidade de retidão discursiva não deve nos cegar frente à conjuntura. Se por um lado fazemos a história, por vezes isso não sucede pelos exa­tos caminhos que gostaríamos de seguir. Caso o PT eleito, não tere­mos nem de longe tempos fáceis, mas esta é reflexão para um segun­do momento.

E novamente, para finalizar, re­pito, engana-se aquele que pensa que quanto pior o estado das coi­sas, melhor em termos de articu­lação de classe. Basta olhar os li­vros de história.

Ps: por ocasião de uma nobre camarada tive acesso a um excer­to que muito bem se encaixa no contexto e orna o conteúdo des­ta epístola pública: "Por ora preci­samos de todas estas precauções. Depois... depois, querida, queima­remos o mundo, porque só é ver­dadeiramente senhor do mundo quem está acima das suas glórias fofas e das suas ambições estéreis" (Machado de Assis)

(Ian caetano é formado em Ciências Sociais pela UFG, mes­tre em sociologia pelo Institu­to de Estudos Sociais e Políticos do Rio de Janeiro e doutorando pela mesma instituição

T enho 24 anos recém-com­pletos. Tinha 8 quando vi, por um antigo televisor de tubo, FHC passar a faixa presiden­cial a Luiz Inácio Lula da Silva. Não entendia nada daquilo à época. Amadureci e desenvolvi minhas aptidões sociais e cognitivas para com o mundo sob governo petis­ta. Tendo-o, portanto, como figura de autoridade. Fui preso sob uma gestão petista (à época este par­tido ocupando tanto o executivo federal quanto o municipal onde eu residia) por questionar o valor da tarifa do transporte público que eu usava. Passei três anos agrilhoa­do por medidas cautelares que me restringiam a atuação política. Sob um regime petista.

Isso dito, a diligência políti­ca faz-nos ter de avaliar algumas coisas. Não falarei aqui de Bol­sa família ou endossamento de qualquer natureza neste senti­do. Falarei de algumas premis­sas básicas que necessariamente têm de ser respondidas pela es­querda radical no seu elemen­tar: a análise tática do momento.

Apesar da relativa inverdade de que “tanto no PT quanto em qual­quer outro governo” a classe traba­lhadora só perdeu, assumirei, para fins de argumento, como verdadei­ra esta proposição. Sou um mate­rialista praticamente mitocondrial e levo a sério a tese de que a luta de classes é o motor da história e o ve­tor explicativo fundamental das di­versas questões sociais. Entretanto não se explica assim tão facilmen­te, e por simplismos, as questões de conjuntura. Assumamos por­tanto esta tese de que tanto fez o PT como qualquer outro governo fa­ria, ainda que, novamente, eu não entenda ela como verídica.

Uma classe social não é um ente abstrato que paira no ar. Ela é composta por diversos matizes, nuanças, subtilezas, extratos e di­ferenciações (por vezes até mesmo antagonismos) internas, atravessa­da por uma série de contradições. A diferença entre uma classe-em­-si e uma para-si está precisamen­te no fato de que do ponto objeti­vo apresenta-se a classe social pela sua realidade econômica (classe­-em-si), mas só pela luta política, e pelo acúmulo de vínculos que esta gera, adquire a classe uma realida­de sócio-cultural e política (classe­-para-si) coerentemente orienta­da com seu interesse (para quem precisar de mais: vejam a introdu­ção à “crítica da filosofia do direi­to de Hegel” escrita por K. Marx ou as primeira e terceira partes do ensaio de G. Lukács “a reificação e a consciência do proletariado”). O momento em que ela passa do “apresentar-se” (classe-em-si) para o “expressar-se” (classe-para-si). Do “existir no mundo e mecani­camente nele intervir”, para o “agir ativa e conscientemente sobre o mundo e produzi-lo”.

“Em miúdos que quer isto di­zer”? Quer dizer que no interior da classe trabalhadora existem pre­conceitos, existem ranços oriun­dos de uma cultura que, apesar de atualmente urbana e pretensa­mente diversa, tem enraizamentos ainda não muito distantes numa herança com sérios vícios provin­cianos e arcaicos quanto a ques­tões como: gênero, raça, respeito geracional, etc. (pra isso enten­dermos a nível de Brasil não pre­cisamos de mais que um bê-a-bá que, desde um conservador como Oliveira Viana até um respeitado da esquerda como Florestan Fer­nandes – passando, no meio do caminho, por sujeitos insuspei­tos de pouco competentes como Guerreiro Ramos e Sérgio Buar­que de Holanda, está catalogado e elucubrado no pensamento so­cial brasileiro). Existem portanto incoerências e atritos que mitigam as possibilidades de formação de vínculos que expressem a identi­ficação dos sujeitos com seus se­melhantes pela seu pertencimen­to a uma mesma classe.

Podemos assumir verdadeiro, numa óptica muito estrita e espe­cífica da análise da luta de clas­ses, o argumento de que o PT não contribui para o avanço da luta da classe trabalhadora. A autoi­dentificação interna desta classe (que contribua para a sua estrutu­ração enquanto sujeito político ati­vo), entretanto, necessita da elimi­nação da miríade de preconceitos e pequenas fissuras acima elenca­das. Condição sine qua nom para articularmo-nos e organizarmo­-nos pela revolução social. É um fato dificilmente questionável que, com todas as limitações intesti­nas a um governo conciliador, a questão de gênero foi de algum modo tratada nos governos do PT, a questão racial teve amplia­ção de sua visibilidade, a questão LGBT obteve avanços mínimos, mas com impactos substantivos (não estou aqui a dizer que isto te­nha sido fruto da boa vontade do PT, mas que por meio da pressão social vários destes grupos con­seguiu extrair deste partidos po­líticas que as interessassem). Em suma, os diferentes extratos que pertencem à classe trabalhado­ra puderam minimamente reco­nhecer-se mais como iguais e me­nos como diferentes no que tange a questões estritas de identidade (1 – isso ainda não está nem de lon­ge plenamente resolvido; 2 – isso é condição para uma articulação de classe, não algo que naturalmen­te a viabilize).

Isso é condição necessária para nossa autoidentificação enquanto classe e está radicalmente amea­çada de se perder. Não porque o governo do PT as tornará me­lhor, mas porque o outro gover­no as destroçará todas e muitas mais (aqui falo inclusive no cam­po estritamente econômico, visto que a lista de privatizações alme­jadas não para de crescer, alijando os bens públicos; a legislação tra­balhista medieva ora vigente será mantida e; “no tocante” à previ­dência os vagos comentários não ensejam muita esperança).

Falei isto na minha primeira manifestação de voto (inclusive havia sido a primeira desde que, de livre e espontânea vontade, ti­rei meu título aos dezasseis anos para resoluta e convictamente anulá-lo). É inútil enxergar nas eleições o reduto último da nos­sa emancipação. Se levamos esta afirmação a sério, o voto nulo a todo custo (ou por “princípio mo­ral”) é simplesmente uma incoe­rência. O que se mostra pruden­te e coerente é entender a eleição pelo que ela é: um instrumento da democracia burguesa, mas que, como tudo, é perene de fissuras e contradições (um exercício dialé­tico primário ajuda a compreen­der) que podem ser exploradas. Não disputadas, mas exploradas, exploradas em prol da abolição desta própria estrutura.

O purismo moral não pode impedir-nos de enxergar os fa­tos. O número de votos acima do esperado no candidato que ora faz frente ao PT demonstra que existem muitos “envergonhados” ainda por se revelar. Do ponto de vista prático isso significa um re­trocesso sócio-cultural que afeta­rá toda sorte de “minorias” (entre aspas porque minorias nunca fo­ram). A consequência desagrega­dora disso, pensando em termos de classe, será incalculável.

A vaidade de arvorarmo-nos no purismo da nossa radicalidade discursiva não deve ser prioridade quando as possibilidades mínimas de articulação da luta social con­creta mostram-se ameaçadas ao nível da imprevisibilidade de sua reestruturação no futuro próximo.

Se, por um lado (e eu defen­di isto e continuo sustentando), o PT é um neutralizador contu­maz das forças radicalizadas da sociedade, por outro um gover­no de seu oponente seria não a neutralização, mas o extermínio das nossas fileiras, que demora­ria gerações para ser reparado.

Muitos têm dito que a radica­lidade e a coerência estão em en­frentar de frente o fascismo. Não temos nem a coesão necessária para isso no momento, nem pro­jeto que dê capacidade aglutina­dora para produzi-la, a coesão, e fazê-lo, o enfrentamento. A his­tória mostra (peguem de Lean­dro Konder no “introdução ao fascismo” até um João Bernar­do no seu gigante “Labirintos do Fascismo”... passando ainda por obras como “Dialética do Esclare­cimento” dos alemães T. Adorno e M. Horkheimer) que o fascismo sempre tende a ampliar-se (como possibilidade) quando a classe trabalhadora apresenta uma ra­dicalidade que insufla em senti­do amplo a sociedade sem proje­to que dê vetor direcional a esta. Espontaneísmo difuso e român­tico nesta altura não nos ajudará.

O que eu disse noutro texto se­manas atrás postado haverá de passar por balizas mediante a atual conjuntura, mas, no agrega­do, continua sustentável: o tempo é de pararmos de curto-prazismo, de pensarmos as possibilidades reais (e bastante módicas) que o pleito eleitoral possibilita e apro­veitarmo-nos delas para calma e diligentemente procedermos a uma recomposição das nossas fileiras. Não posso senão chamar delirante aquele que supor que a revolução está às portas e que nosso povo está disposto e orga­nizado para uma radicalização e tomada do poder. S. Zizek tem al­gum grau de razão ao dizer (o con­texto era outro – occupy wall street – mas a lógica aplica-se aqui) que, se Marx estava certo, em seu tem­po, na sua 11ª tese sobre Feuerba­ch de que “os filósofos só interpre­taram o mundo, o ponto agora é transformá-lo”, hoje talvez tenha­mos de “reinterpretar um mundo que parecemos não muito bem compreender para poder trans­formá-lo efetivamente”. Isso pas­sa por reavaliarmos nossas forças e saber o que delas fazer e como ampliá-las. Isso leva tempo e pre­cisará de mais do que a urgência cega e o imediatismo infantil.

Não é momento para vaidades morais. É a vida de pessoas que está em jogo. Sim, a classe traba­lhadora continua explorada. Sim, nas favelas e periferias, sob gover­nos do PT, a violência contra a po­pulação só cresceu e continua a crescer. Sim, eu tremo de amargo na garganta porque detesto este partido e creio que os deméritos que ele apresentou só clarificam ainda mais a percepção de que só nós podemos mudar o mundo em prol daquilo que consideramos uma sociedade melhor.

Mas também sim: o fascismo é uma realidade concreta his­tórica e que agora nos espreita. Trata-se da ampliação dos estig­mas, da relativização perversa de direitos básicos, da guarida para o extravasamento de toda sorte de preconceitos e de escabrosi­dades contra as quais temos de lutar inclusive dentro das nos­sas trincheiras para proceder a uma organização de classe poli­ticamente robusta. Pessoas vol­taram a relativizar a ditadura ci­vil-militar de 64-85; sentem-se à vontade outras tantas para gritar em coro, numa estação de metrô e a plenos pulmões, que Bolso­naro irá “matar a bixarada”; ou­tras mais creem agora normal externar que lugar de mulher é sim na cozinha; e vários veem com naturalidade um candidato à presidência dizer que o “afro­descendente”, de um quilombo que ele alega ter visitado, “mais leve lá pesava 7 arrobas e que nem pra procriação devia servir mais”; e ganha plausibilidade, ainda, a tese de que o problema do sul/sudeste do país é a imi­gração nordestina e que o me­lhor seria “desanexar” a região.

Jamais gostei do PT, mas não é disso que se trata. É em primeiro lugar de ganhos mínimos que su­cumbirão e, em segundo, do fato de que o sucumbir destes ganhos nos fragmentará ainda mais en­quanto classe. A nossa vaidade de retidão discursiva não deve nos cegar frente à conjuntura. Se por um lado fazemos a história, por vezes isso não sucede pelos exa­tos caminhos que gostaríamos de seguir. Caso o PT eleito, não tere­mos nem de longe tempos fáceis, mas esta é reflexão para um segun­do momento.

E novamente, para finalizar, re­pito, engana-se aquele que pensa que quanto pior o estado das coi­sas, melhor em termos de articu­lação de classe. Basta olhar os li­vros de história.

Ps: por ocasião de uma nobre camarada tive acesso a um excer­to que muito bem se encaixa no contexto e orna o conteúdo des­ta epístola pública: "Por ora preci­samos de todas estas precauções. Depois... depois, querida, queima­remos o mundo, porque só é ver­dadeiramente senhor do mundo quem está acima das suas glórias fofas e das suas ambições estéreis" (Machado de Assis)

(Ian caetano é formado em Ciências Sociais pela UFG, mes­tre em sociologia pelo Institu­to de Estudos Sociais e Políticos do Rio de Janeiro e doutorando pela mesma instituição

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