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ENTRETENIMENTO

Obituário brasileiro

Durante 45 anos, a bióloga e ativista Bertha Lutz se dedi­cou a coletar e documentar uma série de papéis que retratam a memória da luta feminista nos bastidores dos palácios, no parla­mento e no combate corpo-a-cor­po para construírem leis e políticas para as mulheres ao longo da pri­meira metade do século XX.

Onde essa preciosidade está agora? Sob os escombros do Mu­seu Nacional em São Cristóvão. Enterrado junto à identidade de inúmeras mulheres cremadas pela negligência política e popu­lar. O brasileiro não deixa de ir ao Louvre, mas no Rio de Janeiro só lembra do bondinho e da caipiri­nha do posto 12. Longe de mim mudar o curso da culpa para de­sembocá-la no povo. O estôma­go do mais insensível dos homens também deve — deveria — ficar nauseado ante a evidência de que o governo gasta três vezes mais para lavar sua frota automobilís­tica do que com museus. Mas já que essa fossa foi destampada, e o impacto desse cheiro magoou o mundo, o melhor mesmo é assu­mir que esse cheiro também vem do nosso próprio banheiro e in­vestigar a origem dessa infecção estomacal generalizada. Vamos lá.

Não é novidade que a cultura nunca foi a nossa prioridade na­cional. Também seria estranho se fosse: a derrocada de um conheci­mento milenar frente as mil mara­cutaias e denúncias que pipocam no noticiário cotidianamente. Isso é pra pirar a cuca do mais intelec­tual entre os homens. Sobreviver é preciso. O saber, hoje, nem tanto.

Sob essa perspectiva também podemos traçar o perfil brasilei­ro tragicômico que não se esgota. O que Nelson Rodrigues tão bem analisou sob a ótica psicanalítica do Complexo de Vira-Lata. O mais comum e ignorante brasileiro não deixa de ir ao Louvre por amor à arte, mas porque o francês has­teia com pompa e circunstância o orgulho de sua própria história.

A valorização cultural é o re­flexo da autoestima de um povo. O brasileiro é um ex-namorado que cobra fidelidade sem amor­-próprio. E então seguimos de ca­beça baixa, nos sentimos pobres, nos comportamos como pedintes do subdesenvolvimento, acredi­tamos que a nossa história só co­meçou após o assentamento do pé português, reduzimos nossa bandeira a objeto de grupos polí­ticos, temos vergonha do que so­mos e brigamos feito gatos como uma grande e atrapalhada famí­lia Buscapé. Eis tudo. O brasileiro tão famoso pela sua alegria fugaz, o molejo do quadril, o bronzeado da laje, é profundamente depres­sivo. E vivemos de placebos.

Como Nero, ateamos fogo na Roma tupiniquim e saímos sal­titantes tocando pandeiro. O re­cente e moderno cinismo nacio­nal, que ri ante a própria tragédia, não é capaz de tapar por comple­to o buraco onde mora a nossa baixíssima autoestima. Ela está lá, no pó da estrutura de um anjo caído, onde a princesa Isabel cor­ria leviana pelos jardins impe­riais, incapaz de prever a cortina de fumaça que cega a nação de ignorância, fere o orgulho dos ca­riocas. O samba sempre foi mes­mo mais triste do que alegre.

Não pretendo bancar a museo­logista ou a secretária de cultura do meu próprio ego. Tampouco tenho a intenção de extraviar a res­ponsabilidade do Estado, que para mim, é mais do que óbvia, é ver­gonhosa. É que dói a impossibili­dade. Tudo aquilo que perdemos e não pode ser recuperado. A ima­gem inesperadamente bela e co­movente de pesquisadores apai­xonados se atiçando ao fogo para salvar o trabalho de uma vida. De milhares de vidas.

Tudo vira pó, inevitavelmente. Pedra sobre pedra, tudo será des­truído! Como Borges, no escuro, também sonho com a biblioteca de Alexandria, aguardo ansiosa pela alçada do corpo de Nefertiti. No entanto, é preciso exigir deste obituário o atestado correto des­ta morte violenta, que veio pre­matura demais e privou o mundo de um conhecimento insubsti­tuível. Sem meias palavras, esta­mos falando de um assassinato cultural. Um verdadeiro homicí­dio em massa.

Quando o Brasil irá se dei­tar no divã das margens pláci­das e reconhecer a própria de­ficiência? Sem esquecer é claro da culpa dos pais, sempre dos pais. A verdade é que o caos polí­tico já instalado — e o futuro que se anuncia sombrio — não pas­sa do reflexo da nossa teimosia. Que ergue santos. Elege super­-heróis, desde o barbado meta­lúrgico ao aspirante militar. De­posita a esperança em piadistas ególatras, que não andam de me­trô e têm preguiça de museus. Nem um erudito de um FHC é possível salvar dessa história. O que se sabe é que Juscelino foi o último a andar sobre o agora tú­mulo de São Cristóvão.

Sem mais chatices moralis­tas e delongas literárias, acredito sobretudo na importância do le­vantamento qualitativo das per­das. É só isso. Reconhecer o que perdemos é o princípio para va­lorizarmos a riqueza de nosso passado. O legado de Bertha Lutz está perdido para sempre. Não saberemos o nome dessas mu­lheres, não conheceremos suas histórias. Isso é grave e deve ser cobrado junto às outras dívidas monstruosas que o Brasil empe­nha em santos de pau oco.

Até a primeira sessão de análise juramos conhecer todos os nossos traumas, defeitos, qualidades. E se surpresos descobríssemos que uma das curas para a nossa doen­ça está enterrada agora, sob cinzas e lamentos de um museu esque­cido no centro fluminense? O fato é que o fogo doeu mesmo. Mui­to. Em muitos. Essas queimadu­ras não irão se curar rapidamente e deixarão sequelas gravíssimas. A cultura importa. É aí que está escondida a autoestima brasilei­ra, que pode ser recuperada atra­vés do luto. Um minuto de silên­cio para este velório interminável.

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