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ENTRETENIMENTO

Gabriel Nascente definitivo: revisado e ampliado

Gabriel Nascente não quer mais saber de noites de au­tógrafo. Já deu. Apesar disso, ele está prestes a lançar sua suma poética, a “Enchente Verbal”. Tra­ta-se de uma compilação de todos seus poemas publicados até aqui em dezenas de livros, uma série ini­ciada em 1966 com “Os Gatos”.

A Kelpes deve entregar, no se­gundo semestre deste ano, obra em 4 volumes de mil páginas cada um com os poemas devidamente revi­sados – alguns até ampliados – pelo próprio poeta. É que muitos livros de Gabriel já não são mais encon­trados nem em sebo. Daí a ideia da Kelpes em lançar esta compilação.

Antes disso, a Editora Ex Machi­na, de São Paulo, lança uma antolo­gia de poemas nascenteanos, orga­nizada por Iuri Pereira, abrangendo um período que vai de 1966 a 2016. Os poemas são agrupados por te­mática e, dentro de cada temática, por ordem cronológica.

O poeta do Bairro Popular, o fi­lho do seu Tunico Marceneiro, anda eufórico por estar vivo e bem de saú­de e cada vez mais inspirado, mas ao mesmo tempo melancólico em vir­tude dos rumos que a vida lá fora vai tomando. A modernidade o aborre­ce. As modernidades tecnológicas o enojam. Computadores, internet, ce­lulares... para Gabriel, tudo isso é lixo.

Mas o que o desgosta mesmo é viver neste Goiás provinciano, de mentalidade feudal, onde o suces­so se mede pelo tamanho da boiada no pasto. Uma sociedade cada vez mais hostil às letras, onde livrarias vão se fechando e até os sebos – esta nunca assaz louvável instituição – também vão fechando suas portas por falta de clientela. Se o povo mal tem uns cobrinhos para o pão do corpo, que se dirá para o pão do es­pírito, que é livro?

É por isso que Gabriel está indo embora de Goiás. Depois de encer­rada a longa entrevista que ele con­cedeu a este repórter, falando de sua carreira e de seus novos projetos lite­rários, ele fala casualmente, em off the record, que pretende se mudar para Copacabana, aprazível bairro praiano do progressista município de São Sebastião do Rio de Janeiro.

“Pode pôr isso também”, me autoriza o poeta. Prestes a se apo­sentar do serviço público, o poeta pretende aplicar algumas de suas economias em um apartamenti­nho em Copacabana. Ficará mais fácil para ele comparecer às reuni­ões ordinárias da Academia Bra­sileira de Letras. Pois é certo que Gabriel acabará sendo eleito para compor aquele sodalício, podem apostar. Questão de tempo.

Aí está a entrevista de Gabriel. Gabriel nu e cru. De quebra, ele nos passa seu último poema, escrito na madrugada de 1° para 2 de janeiro. Gabriel anda sempre com um toco de lápis e um papel. Nas suas an­danças pelas ruas da cidade, o que ele vai vendo vira versos instantâ­neos, que ele depois passa a limpo em sua velha Olivetti.

 ENTREVISTA

Helvécio Cardoso – Que avaliação você faz dos seus 51 anos de poesia militante?

Gabriel Nascente – Que ainda permane­ço incompleto, comendo chão, com as minhas chinelas de aprendiz. Chateado e triste, mas eufórico e positivo. Chateado porque – expli­co – Goiás, literariamente falando, não exis­te mais, acabou. O que existe são movimentos pseudoculturais, fechados, preconceituosos, elitistas e estéreis. Esta é a minha aldeia. Desde o verão daquele 23 de janeiro de 1950, quando abri meus olhos pela primeira vez para o mun­do. E triste porque aquela comunicação aca­lorada de antigamente, entre os intelectuais, escritores e artistas, também não existe mais, O que me propicia a pensar que já estamos vi­vendo o início do Apocalipse, com o estrondoso advento da geração dos sem cérebros. As pesso­as flagrantemente já não querem mais pensar, pois estão viciadas à praticidade alienante do automatismo tecnológico, tudo é magnético; é a síndrome universal da preguiça de pensar. A tal ponto isto me deixa estupefato, perplexo, que é como se a humanidade tivesse substitu­ído a presença de Deus (e isto nada tem a ver com religião) pela majestosa figura do todo poderoso senhor computador. Isto me parece absolutamente ridículo. Daqui a pouco esta ci­vilização cretina (que tudo faz para destruir o livro, a natureza, e os valores estéticos da alma) estará inventando o sêmen de líquido plástico, para pôr no mercado ginecológico. Ficção? Não. É burrice mesmo. Fruto de uma obsceni­dade intelectual estrondosa, sem limites.

Helvécio Cardoso – Mas você não disse a que conclusão chegou.

Gabriel Nascente: - Você, meu caro re­pórter, me pergunta que conclusão eu trou­xe comigo, ao chegar, hoje, carregando nos ombros esta carga de 51 anos de poesia. É! Me deixa coçar um pouco as minhas ideias. Aliás, lá no começo eu disse que também es­tava eufórico. E estou! É verdade. Eufóri­co porque a vida tem sido muitíssimo gene­rosa comigo, cá pelas alturas dos meus 67 anos; acumulando sobretudo a lucidez de uma boa maturidade, o suficiente para ad­ministrar, com serenidade, certas aparições de surpresas maléficas, decepcionantes, que saltam repentinamente do fundo da caixa de Pandora com o fito de bagunçar nossas vidas, que se esforçam cotidianamente para andar sobre os trilhos da virtude.

Helvécio Cardoso – E eufórico...

Gabriel Nascente: - Eufórico, principal­mente, porque a vida bate firme, lúcida e fe­cunda e funda, pelos subterrâneos do meu sangue. E está aqui comigo, atiçando as la­baredas do milagre. Estou vivo. É este o tro­féu gigante do meu bem-estar, minha alegria triunfal. A vida não se troca por outra vida, e é absolutamente única, na matéria e nos so­nhos, no afã e na abulia, na pérola do pranto e no mel dos sorrisos. Partamos agora para o eufórico literário. Posso falar? E positivo por­que, pela primeira vez, ao longo desta minha jornada de paixão pela poesia, estou viven­do a deleitosa oportunidade de rever toda (ou quase) a minha extensa bibliografia poé­tica (verso por verso, estrofe por estrofe, linha por linha, poema por poema, livro por livro) desta pequena montanha de mais de qua­tro mil páginas de poesia, reunida em qua­tro volumes de mil páginas cada uma, que a intitulei de “A enchente verbal”, já com o fir­me propósito de lançá-la ainda no primeiro semestre deste ano.

Helvécio Cardoso – Por quê você se declara inimigo radical da civilização tecnológica, e combate ostensivamen­te a internet?

Gabriel Nascente: - Nem tanto. Mas, basicamente, a realidade é a seguinte: toda civilização traz, no bojo dos seus objetivos, uma multidão de coisas noci­vas e prejudiciais à saúde e à natureza, à saúde mental do homem, ao equilíbrio\ ecológico, à natalidade dos bichos, à po­esia florestal e marítima do mundo etc., etc. Por exemplo, querer substituir o li­vro por uma pernóstica comunicação eletrônica, de internet, é contumácia de bobo, de imbecil, de viciado. Nada neste mundo é mais salutar e dadivoso do que ver um menino com um livro na mão. Imagina você se cada pessoa, da aldeia global, tivesse, ao invés de um celular na mão, um livro, essa invenção artesanal do que homem que imortaliza o pensa­mento, a cultura, a filosofia, a literatura, as artes e poesia, das maiores celebrida­des dos continentes ocidental e oriental. Isto sim, meu companheiro, é ferramen­ta sadia para enfrentar a vida. Embora, em tempos atuais, tudo se faz para reti­rá-lo da vitrine livresca.

Helvécio Cardoso – O Brasil não tem livrarias, nem bibliotecas públicas, mas lojas de vender computador tem em cada esquina...

Gabriel Nascente: - Pois então! Em Copacabana, por exemplo, um populo­so bairro com mais de três milhões de ha­bitantes, existem hoje apenas treze livra­rias, em rede comercial. Os governantes assinam documentos autorizando a di­zimarem os mananciais da natureza, em troca de milionárias propinas e en­gorda de bois no pasto. Mandam secar rios, roubar suas águas. E depois, ironi­camente, aparecem na tela de televisão, promovendo campanhas para as popu­lações preservarem a natureza. Nas ruas, as pessoas não se confraternizam mais, estão todas com os olhos pregados na teli­nha do celular. Mal sabem elas que, com o uso demo­níaco dessa enge­nhoca, instauram­-se, dentro delas, a loucura e a solidão. O gostoso da vida, meu caro repórter, é a paz de espírito para se ler um bom livro. Esse hábito, de milenar origem, não pode acabar nunca. Do contrá­rio, a humanidade vai se transformar em boiada de aba­te, aguardando apenas o soar das sirenes dos mata­douros.

E tem mais. O virtual é uma men­tira, língua sem sa­livas. O virtual não tem sentimento, nem o calor de um aper­to de mão, nem o fogo sensual da ternura de um beijo; é mais frio que o encontro de duas lâminas na escuridão. Daí porque, diante desta parafernália robótica, ele­trônica, virtual e magnética, eu me orgu­lho de ser um poeta manual. Adoro as mi­nhas máquinas de escrever, meus lápis, borrachas, canivetes, e não os troco por esta ostentação burguesa que destruiu até a minha caixa-postal, onde nem mos­quito entra mais. É isso daí, companhei­ro... Mas, lhe pergunto: “O que farei sem carregar nos ombros uma parte da espe­rança?”. E quer mais?

Helvécio Cardoso – Tem mais?

Gabriel Nascente: - Eu venho de uma geração em que até os cachacei­ros de antigamente iam para os bote­cos discutir Neruda e Maiakovski. No mínimo, aquela gente era chegada à leitura de um bom livro. E falava com paixão, sobre literatura, filosofia, reli­gião e política. E nós, naquele ambien­te de boemia cervejal, de muita fumaça e batons de beleza femininas – acredi­távamos na utopia. E por isso, cada um de nós tinha lá a sua torre de menti­ras. Mentiras informativas, (fantasio­sas), mas que criavam a razão de vi­vermos adentrando as perspectivas do sonho, e seus horizontes para os dias de amanhã. Fossem as fantasias que fos­sem, era preciso acreditar. E eu, orgu­lhosamente, sou fruto daquela geração de quixotes do asfalto. hoje, nada dis­so existe mais. O deus da humanidade chama-se internet. Ou melhor, infer­net. Daí porque esta é a mais imbecil de todas as humanidades que já povoa­ram o invólucro terrestre.

Helvécio Cardoso – É verdade que você enfarou-se com as tradicionais noi­tes de autógrafos, a ponto de não querer mais realizá-las?

Gabriel Nascente: - Sim, é verdade. Isso, no entanto, não quer dizer que eu feche as alegrias de minha alma, e pas­se a cuspir no prato em que comi; quan­do nos áureos tempos que lançar livro em Goiânia era um evento encorpado, gar­boso, de glamour. Fiz isso durante mais 40 anos. E o fiz feliz, autografando meus livros, vendendo no corpo-a-corpo os meus livros; dando vazão às emoções po­éticas de minhas mensagens. Dava uma mão de obra do capeta, mas era praze­roso, a gente acreditava na importân­cia daquelas noites de autógrafo, com coquetéis, en­trevistas, chu­va de fotógra­fos. E a vaidade da gente subia às alturas do Olimpo lidera­do por Cronos e Zeus. Hoje, a luz dessas alegrias, e o conteúdo dessas emoções, saíram de cena. Dificilmente as pessoas mar­cam presen­ça nessas noi­tes literárias. O papo é outro. É a rede social da internet. Esses usuários de tec­nologia mag­nética pensam que estão se co­municando uns com os outros. Ledo engano. Eles mesmos acabam solitários, quando saem des­ses canais de comunicação, sem ter com quem conversar. E ficam aflitos, neuróti­cos, quando longe de seus celulares. Em piscinas e restaurantes, e até mesmo du­rante os intermezzos das peças teatrais, lá estão ele grudados em seus aparelhos. Não sabem se comem, se nadam, ou se apreciam o enredo da peça.

Helvécio Cardoso – Qual é o seu esta­do de espírito emocional ao atingir o apo­geu de seus 52 anos de poesia, a se com­pletarem no dia 18 de janeiro deste ano?

Gabriel Nascente: - Nunca estive mais dentro de mim quanto agora. E com vontade de fazer poesia. Quer pro­va? “A palavra segue o voo do vento. Eu sigo o estalo das sementes”. E encaver­nado nas entranhas das minhas medi­tações. Pois, o que escandaliza a minha consciência não é a morte. A morte é o fim do último capítulo. Só isso. Silêncio de pedra. Nada mais. Mas o que escan­daliza mesmo a minha consciência é o tempo. O tempo que Santo Agostinho tentou definir. Para mim, entanto, ele, o tempo, é o anjo carrasco da vida. Faz o que quer e ninguém (absolutamente ninguém) tem peito para condená-lo à prisão perpétua. Ah, se eu fosse o vigia da eternidade!... Não deixaria nun­ca o tempo entrar, porque ele bagunça tudo, esmaga até o pó.

Concernente ao meu estado de espí­rito, respondo: estou em paz com a mi­nha consciência; e mais leve que asa de borboleta, fazendo o que mais amo nesta vida: poesia. E o que fiz não conta, é so­pro dissolvido no ar. Estou sempre sain­do do zero para uma nova empreitada de aurora. E a poesia é meu único instru­mento de aproximação entre os homens. “Ferramenta divina na mão do homem”. Essa fala verbal que desembrulha o mis­tério das minhas emoções, criando ima­gens que levitam no azul das nossas ideias. E o amor – diria o grande Lord Byron – me ensina a melancolia. E ser poeta é ter esta sensação... Caramba! Es­tou ficando louco! Eu vou explodir”.

Helvécio Cardoso – Como é que a poesia chegou em sua vida? Foi na in­fância? Foi na adolescência? Como foi esta descoberta?

Gabriel Nascente: - Ih, evên pedra­das! Na verdade, muito antes de bafe­jar meu primeiro verso, eu já era poeta. Diotima – o demônio de Sócrates – já ha­via solfejado o seu hálito nas têmporas das minha verve. Se bem que, quando eu trabalhava de mecânico de bicicle­ta numa oficina lá da Rua 24, na idade ali dos meus treze/quatorze anos, exis­tia outro mecânico que tinha o apeli­do popular, de guerra, de “poeta louco”, por causa da moita de cabelos palha de aço que encobria todo o seu frontal, da testa à nuca, suscitando-lhe a imagem de loucão. Ademais, o tal “poeta louco” era de uma feiura vampiresca de doer. Mas era um cômico de mão cheia. E eu nunca soube a razão daquele cognome. Pois o próprio era um tremendo de um analfabeto; e, portanto, ele mesmo des­conhecia o significado da palavra.

Helvécio Cardoso – Você foi um meni­no travesso ou um nerd?

Gabriel Nascente: - A precocidade das minhas travessuras, durante boa parte da infância e também da pré-ado­lescência, já dava sinais de como eu, in­conscientemente, procurava uma janela para a minha inspiração. A inquietude espiritual da minha angústia, aguça­da principalmente pela morte prematu­ra de meu pai, aos 33 anos de idade (eu contava 8 anos, em 1958), vinha à tona de forma contundente, rebelde. Quan­tas vezes sonhei ser cientista, engenhei­ro eletrônico, diplomata, menos escritor e poeta. Isso não existia no cardápio das minhas ilusões. Até então era incogitá­vel. Mas o fato é que, durante aquele tu­multuado período da minha meninice, fui protagonista de grandes e perigosas loucuras. Impróprias, inclusive, à mi­nha idade. Proezas de arrepiar. Uma delas, conto. Foi quando eu, em pleno horário de recreio vespertino, decidi a subir (e subi) os degraus de ferro chum­bado numa coluna de concreto, que sus­tentava a gigantesca caixa d´água da Escola Técnica Federal de Goiás – onde cursava o ginásio industrial – e, lá em cima, no topo, empurrei a tampa ( sabe Deus como), tirei a roupa, e me joguei, pelado, às águas daquele reservatório.

Helvécio Cardoso – E deu no quê?

Gabriel Nascente: - Lá embaixo, no pátio de recreio da escola, a estudantada erguia os seus gritos de ovações – e tam­bém de vaias – ao louquinho pelado na caixa d´água; o Bié da 75, filho do seu Tu­nico, da marcenaria. Parece que aquela proeza minha, maluca, de se expor, nu, às 3h15 da tarde, durante o lanche da gale­ra etefegeana, tinha, como conteúdo mís­tico-existencial, a especulação cosmoló­gica, para confirmar se Deus era mesmo o ápice supremo de todas as coisas e seres do universo. No mínimo, aquele adoles­cente intelectualmente inquieto, pertur­bado, dos anos 60, queria dizer alguma coisa através daquela exibição teatral, para chamar a atenção dos colegas. Deu no que deu. Fui amargamente penaliza­do por aquela façanha, com manchas de notas vermelhas no boletim escolar.

Helvécio Cardoso – Mas, Gabriel, você não conclui a resposta sobre o tema “noite de autógrafo”.

Gabriel Nascente: - Eu gostaria, en­tão, de pedir permissão ao valoroso ami­go e repórter do Diário da Manhã, para concluir o que penso hoje sobre esta ques­tão de convidar o público para noite de autógrafo. O único retorno que se colhe desse evento, dentro de uma sociedade inteiramente dominada pelo computa­dor, é a ressaca daquilo que não se leva a nada. Primeiro, porque não somos gê­nios sobrenaturais, nem fenômenos do futebol, tampouco celebridades da mú­sica sertaneja, para abarrotarem seus palcos e ambientes com multidões de fãs, que se retumbam no delírio das massas. Depois, é loucura disparatada correr atrás de quem gosta de poesia nos dias de hoje. Isso não passa de exibicionismo in­dividual nosso, farra de vaidade pessoal, pegando carona com os holofotes da im­prensa. E custa caro, muito caro, além de dar uma mão de obra do capeta, para de­pois afundarmos no mais cruel ostracis­mo. Porque a sociedade brasileira, como um todo, é cruel e individualista, mate­rialista, consumista. E nós somos esta so­ciedade. Queremos é dinheiro, fama, e não cultura, poesia. O que me provoca a disparar contra os ouvidos dessa mesma sociedade é a seguinte pergunta: “Aca­so eu - GN – não vivo numa sociedade anti livresca e anti literária”? Goiás, meu amigo, é a terra do boi gordo no pasto, às fartas. As universidades são elitistas. E nossos representantes políticos, de todo o país (de todo o país) são uns venais, lei­loeiros, filhos da puta. Então, diante de tão esmagadora realidade, o que sobrou para nós, operários iludidos das letras, é morrermos de porta em porta, vendendo nossos livros, no corpo a corpo. Parar de escrever? Nanja, jamais!

Helvécio Cardoso – Então não ha­verá mais noites de autógrafos de Ga­briel Nascente?

Gabriel Nascente: - Só para se ter uma ideia sobre o quanto eu me esva­ziei por dentro com relação a essa ques­tão de lançamento de livros, lhe afirmo que, neste exato momento, estou viven­do o trauma da seguinte opção: devo ou não apresentar ao público, à crítica e à imprensa (l966-2017) a minha nova An­tologia Poética? Acaba de sair do forno, pela Ex Machina, São Paulo, numa edi­ção muitíssimo bem trabalhada, belís­sima, e de requintado bom gosto, princi­palmente no que se refere ao critério de escolha dos poemas adotado pelo an­tólogo Iuri Pereira, que optou por agru­pá-los dentro de um universo de simila­ridades temáticas; isento, portanto, de qualquer interferência do autor. Tra­balho de fôlego hercúleo, que teve que enfrentar, mergulhando na leitura das quase mil páginas de poesia, desde “Os gatos”, de 1966, com o assessoramento editorial de Bruno Costa.

 “Nunca estive mais dentro de mim quanto agora. E com vontade de fazer poesia. Quer prova? ‘A palavra segue o voo do vento. Eu sigo o estalo das sementes’”    “Eu venho de uma geração em que até os cachaceiros de antigamente iam para os botecos discutir Neruda e Maiakovski. No mínimo, aquela gente era chegada à leitura de um bom livro. E falava com paixão, sobre literatura, filosofia, religião e política. E nós, naquele ambiente de boemia cervejal, de muita fumaça e batons de beleza femininas – acreditávamos na utopia”

 Abrindo as janelas para 2018

O ANO NOVO JÁ SE DESPENCA DA ROLHA DE CHAMPANHE

Gabriel Nascente

Fui subindo os degraus do amanhecer

com este verso na cabeça:: a alma

da poesia incandesce o meu verbo.

E vi o sol bater de cabeça no chão.

Cristo era um homem alto,

de face doce e severa.

E tinha, nos olhos,

uma cor de vinho.

Mas o flanco de Cristo

foi rasgado pela lança

de Longino,

o centurião.

Por que me lembro disso agora,

se nesse natal, eu apertei a mão dos

bêbados e lhes ofereci pão com sardinha?

Mas me leembrei também da vida suja dos

presidiários; e do velho cebo barbaçudo

lá do Mercado da Vila Nova. E da mão de Homero

depois que o dia amanheceu “recamado de ouro”.

Fui subindo enquanto a aurora descia,

no sonolento ar de ressaca dos homens.

Pedaços de papel voavam da boca

das sargetas.

“A religião não é o

ópio, é a poesia da

humanidade”,

fui subindo

até a banca de jornais,

onde encontrei o “glutão beberrento”.

Ele levava uma tradução de Maiakóvski

debaixo do braço. “Feliz Ano

Novo, gente boa!”, trovejei-lhe

esta sonora saudação ( que ecoou

vazia, sem calor cristão).

Fiz que não senti. Segui,

e vi monte de trapos na calçada

misturados a bagaços de mangas

e moscas. ( E os mendigos destroçados

pelos porres de suas misérias, ali

tresnoitados...)

Ó vida minha,

fôlego de fósforo,

vem,

vamos nos prover de utopias!

É disso que preecisamos.

A poesia me sobeja.

Sinos bimbalham em meu peito.

As almas não se entendem.

E as nuvens dos horizontes

são mentirosas.

Luz que afla, que bagunça!

Todos cobiçam montanhas de dinheiro.

E já não sei se será uma boa mandar

embora este enxame de sonhos,

(que me atordoa tenazmente).

Sei apenas

que a mão que escreve

carrega sonhos

E que eu preciso urgentemente escapar-me

desse celibato literário

que me faz cuspir na eternidade,

dessa selva de palavras

que urram em meu sangue,

desses entardeceres

que me enlouquecem,

desses sonhares caudalosos

que não me levam a nada,

e, sobretudo, meus amigos,

dessa lucidez que sibila

me enchendo de melancolia.

( É primeiro de janeiro e eu

estou muito longe de ser eu mesmo).

Tenho sede, medo de mim.

O sol está frio. E ninguém

me vê.

(1° e 2 de janeiro de 2018

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