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ENTRETENIMENTO

“Mãe!”, de Darren Aronofsky

Quem da maioria de nós não se recorda da pri­meira vez que experi­mentou café? Provavelmente na tenra idade, ainda nos anos iniciais da infância, e a tez de misto de asco e de sur­presa, pelo sabor amargo e for­te e quente, a pensar: “Como gostam os adultos disso?” A mesma coisa pode ser vista, por exemplo, na expressão fa­cial que faz uma criança quan­do colocamos-lhe à boca pela primeira vez uma bebida ga­seificada qualquer. Em geral, a expressão facial transforma-se automaticamente. Também na adolescência, provavelmente a primeira vez que deitamos um gole de cerveja à língua, a im­pressão fosse de que não repe­tiríamos o cotidiano de vários adultos: o de tomar cerveja fa­lando das coisas comezinhas do dia e do trabalho, já que, num primeiro momento, aque­le gosto pareceu tão intempere ao contato com a boca.

O que isso nos ensina sobre o paladar? Num primeiro mo­mento podemos ser levados a responder que isso nos ensina que o paladar muda com o tem­po e os anos, mas seria resposta demasiado apressada, digna da­queles que naturalizam experi­ências que, em verdade, vemos melhor se observarmos por ou­tra óptica. Isso demonstra que o paladar, como outros estímulos do corpo, podem ser refinados, compreendidos, estimulados. Digamos: apreciados sob outro ângulo ou doutra maneira, po­dem ser reinterpretados.

O cinema, mercado dos mais rentáveis do mundo, não tem fa­vorecido tanto esse nuançar. So­mos estimulados grosso modo a consumir única e simplesmente uns quantos blockbusters previ­síveis ao ponto do tédio e umas quantas coisas insossas, como as comédias fílmicas da rede globo, igualmente repetitivas e draconianamente controla­das em seu processo de produ­ção (onde o diretor, o roteirista e os demais cumprem mais uma função técnica e formal que uma artística e autoral).

Numa era em que “gosto não se discute”, em geral qualquer debate sobre o tema é tido por intolerância arrogante. A verda­de, contudo, é que a capacidade de apreciação das nuanças cul­turais é hoje artigo raro no nosso consumo cotidiano. Não admira que algo que é notadamente ter­mômetro e marca social de qual­quer tempo, civilização e lugar – a arte – seja pura e simplesmente banalizada e rebaixada a “uma questão subjetiva, pessoal e in­discutível”. Notem que não falo aqui de uma hierarquia entre os mais diversos estilos de produ­ção artística que podem, ou não, ter lugar nos mais variados cam­pos das artes, mas precisamente que, para cada um deles, temos de ter sensibilidade e o míni­mo de aposta para lograr com­preender-lhe as lógicas internas, para poder apreciar-lhe as subti­lezas inerentes ao local, período, contexto, etc., em que fora cria­da. Além, claro, de algum senso crítico para não equiparar coi­sas qualitativamente diferentes e avaliá-las da mesma forma.

Mas não. O que impera hoje, grosso modo, é a apreciação no nível mais imediato do consu­mo. Não há tempo para longas digressões, não há tempo para enredos e tramas que exijam mais do espectador. O que há é a necessidade constante de estí­mulos visuais em tela, de orações diretas e de impacto vulgar e ba­nal. Não à toa os repetitivos enre­dos da nova moda do cinema, os filmes de herói, serem tão requi­sitados mesmo pelo público mais “maduro” e terem se consolida­do como produções de rentabili­dade nunca antes vista.

O problema não é propria­mente serem estes filmes assisti­dos, o problema é não aprender­mos a – e não nos esforçarmos para – assistir mais nada. A uni­formização e padronização una da produção cinematográfica e do consumo desta. Claro, claro, sugerirá o pretenso leitor mais “ilustrado”, há sempre os circui­tos independentes e coisas con­gêneres. No geral, entretanto (e apesar do esforço monumental que muitos destes espaços her­culeamente fazem para man­ter-se seu funcionamento), a sei­ta de “descolados” que costuma frequentar estes lugares está ge­ralmente mais preocupada em reunir-se para, durante a proje­ção dum filme “cult” qualquer, maldizer quem vai ao cinema do shopping, enquanto enaltece a própria postura de “consumo de arte”, do que de propriamen­te apreciar e consumir de fato o produto que está a servir de ve­tor para seu enaltecimento ca­tártico de si próprio.

Por razões de distribuição e da força do estúdio que chan­celou a produção, um filme algo inusitado para os cinemas de público de massa chegou às grandes telas nas casas mais movimentadas do ramo: Mãe! (Mother!), do diretor Darren Aronofsky. O filme foi um fias­co de bilheteria (tendo custado sua produção US$ 30 milhões e faturando pouco mais de US$ 44 milhões. Percebam que isso é considerado prejuízo não só porque o lucro foi baixo, mas é que no custo de produção acima mencionado não estão inclusos os gastos com divulgação e pu­blicidade) e bastante tímido na crítica. Um importante site do ramo (Rotten Tomatoes) con­feriu-lhe 68% de aprovação por parte dos críticos, o que é con­siderada uma avaliação timida­mente positiva, e 50% por parte da audiência, o que é, dado já o prestígio precedente do diretor, uma avaliação baixa.

Aos que já conhecem a obra do diretor – responsável por grandes filmes como Cisne Ne­gro (Black Swan), Réquiem para um Sonho (Requiem for a Dream) e o clássico cult Pi (π) – não sur­preendeu inteiramente a propos­ta. A marca do diretor no terror e drama psicológicos está impres­sa em praticamente todos os fil­mes em que assina direção e ro­teiro, como neste. A surpresa, contudo, foi o tempo, a ambien­tação e a escolha de fotografia do diretor, pouco usuais em seus fil­mes e menos ainda no cinema de grandes salas em geral.

Para os ainda não sabedores da obra, uma breve sinopse (sem entregas do desfecho, evidente­mente). Um poeta que enfrenta problemas criativos para escre­ver sua próxima obra e sua es­posa dividem uma casa em uma área rural afastada da cidade. A casa, que é dele, foi antes alvo de um incêndio, que consumiu boa parte dela. A esposa, zelosa de seu marido e querendo ver­-lhe bem e a produzir, emprei­ta de próprias mãos a reforma da casa, cuidando e revitalizan­do cada aresta e detalhe. Chega então à casa um outro casal que não era esperado, pedindo pou­so por uma noite, pois não con­seguiram chegar ao destino que tencionavam alcançar. Um mé­dico ortopedista e sua esposa. O que parecia um filme banal sobre uma vida conjugal morna e seus correspondentes proble­mas revela-se, agora, uma histó­ria bastante alegórica e metafó­rica, com elementos de terror, de claustrofobia psicológica, de de­pressão e até um pouco de gore.

A estrutura de captura do fil­me (motivo de incômodo para muitos dos apressados de que falei acima, a quem o plot e o de­senlace do filme têm de ser já en­tregues, esclarecidos e esmiuça­dos nos primeiros 10 minutos de filme, e a estrutura visual deve ser familiar e óbvia como de to­das as outras experiências cine­matográficas observadas) é bas­tante peculiar e, o que é melhor, funciona bem para o enredo da obra, não sendo mera excentri­cidade. Em parte considerável da película, até o final da primei­ra metade do filme, a câmera é posicionada quase todo o tem­po no ombro da esposa do poe­ta (Javier Bardem), interpretada por Jennifer Lawrence. O filme não tem nenhuma trilha sonora, passa-se todo num só ambien­te – a casa – e orbita em torno do casal, com o elenco auxiliar aparecendo apenas na medida em que dá suporte ao desenvol­vimento, para o espectador, da natureza e do caráter da relação entre ambos.

A primeira metade do filme, que serve para construir a ten­são que servirá de propulsor para o desfecho, é bastante de­licada, de passos lentos, de tons claros e luminosos, convidando o espectador à observação das nuances e dos diversos detalhes metafóricos e religiosos que, ao final, revelar-se-ão não banali­dades jocosas de um diretor que quer intrigar gratuitamente a audiência, mas elementos mili­metricamente pensados a ser­viço da trama que compõem. Depois, a mudança estilísti­ca casa-se poeticamente com o avançar da trama.

Originalidade (ou, pelo me­nos, inventividade no atual contexto do cinema), contudo, não garante sucesso. O que fez deste filme um fiasco de bilhe­teria, ainda que um êxito cine­matográfico monumental no estado de arte recente do ci­nema, parece vir a lume justa­mente na lógica contemporâ­nea imperante de consumo das artes. Queremos investir muito pouco ou quase nada (em ter­mos de esforço cognitivo e de tempo) e queremos sair dali sa­tisfeitos. Mas não satisfeito no sentido de um impacto reflexi­vo, catarticamente satisfeitos, mondrongamente satisfeitos.

Entretenimento tem seu es­paço e é indispensável a qual­quer vida saudável. O que se­ríamos de nós se, após um dia estressante, não tivéssemos al­guma bobagem qualquer para assistir enquanto, digamos, be­bericamos um gole de cerveja? A miséria, contudo, é que ni­velamos, em geral, toda a ex­periência artística consumi­da a isso. Parece que o senso de apreciação cultural nos tempos recentes resume-se a coices. Ex­plosões, frases rápidas, dramas caricatos, soluções simples, sa­gas previsíveis, efeitos especiais exagerados, cidades destroça­das. Parece haver pouco espa­ço para a subtileza, o desenla­ce menos óbvio, a expectativa que não seja atendida apenas pela resposta esperada, os tons menos negros e brancos e mais cinzas, as texturas.

O filme de Aronofsky vai pre­cisamente na contramão de toda essa lógica imperante, e isso ex­plica seu fracasso. Não é, a um só tempo, um destes “filmes de van­guarda” que declara guerra aber­ta aos blockbusters, tampouco é um filme de estímulos óbvios ao espectador. Não é um filme poli­ticamente orientado, o que o fa­voreceria junto às alas ditas mais “engajadas” da franja “descola­da” dos espectadores ilustrados; outrossim não é um filme de per­sonagens tipificáveis nas noções mais correntes (herói, vilão, don­zela, psicopata, etc.). Não é um filme de terror, e, ao mesmo tem­po, não é propriamente um dra­ma. Não é um um filme francês blazé, que caracteriza-se cari­caturalmente pela lentidão uni­forme, nem é um típico filme de ação estadunidense, de cortes de câmera a cada segundo e de cor­reria esbaforida.

Na aposta deste não lugar em que Aronofsky decidiu colocar seu filme, ele perdeu com um fiasco de bilheteria para adentrar a história do cinema como um dos grandes diretores contem­porâneos. Vale lembrar aos mais céticos que Stanley Kubrick, di­retor de clássicos como Laran­ja Mecânica (Clockwork Orange) e 2001: uma Odisseia no Espaço (2001: a Space Odyssey), nunca ganhou um oscar de diretor por seus filmes. O compositor italia­no Ennio Morricone, responsá­vel por diversas trilhas clássicas dos Western Spaghetti, reprodu­zidas até hoje no imaginário e na cultura, só agora muito recente­mente, e já praticamente aposen­tado, recebeu sua primeira esta­tueta (que foi mais tributo tardio ao seu legado que propriamente honra ao trabalho pelo qual foi formalmente agraciado). Ainda assim, ambos entraram para a história do cinema como gigan­tes de seu tempo.

Em períodos onde a obsessão de etiquetar os gostos e colocar tudo em caixas impera, um fil­me assim realmente não teria lu­gar. Como dito antes, não se trata de uma cisão moral entre o que supostamente é “entretenimen­to” e o que é “arte”, mas que, para uma elevação das percepções não só culturais, mas sociais em geral, temos de nos abrir mais ao esforço da nuance e do contrain­tuitivo no nosso consumo coti­diano de cultura. Sair da zona de conforto e do consumo fácil fa­z-se imperioso, e devemos tam­bém parar de de antemão olhar de sobreolho aquilo que, num primeiro momento, não está no nosso catálogo de experiências imediatamente compreensíveis ou “prazerosas”.

Se só nos regozijamos com o óbvio e só vemos prazer na­quilo que de antemão deman­damos de uma experiência ar­tística, se nos encerramos nas caixas que previamente estatu­ímos como as nossas, fadamo­-nos a não aprimorarmo-nos perceptivamente e não há então como melhorarmos nossa pró­pria percepção de mundo. Se só aceitamos por bom aquilo que já de antemão elegemos por bom, como vivenciar novas experiên­cias? Como absorver novos ele­mentos que componham nos­sa visão de mundo? Como ser amanhã mais e melhor do que aquilo que somos hoje?

Podemos ou não gostar do novo filme de Aronofsky, mas, independente disso, a experiên­cia cinematográfica ali entregue e seu fracasso de bilheteria e crí­tica muito nos têm a ensinar so­bre como vemos e consumimos entretenimento e arte contem­poraneamente.

(Ian Caetano, formado em Ci­ências Sociais pela Universidade Federal de Goiás e mestre em So­ciologia Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos do Rio de Janeiro (Iesp-UERJ)

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