Quem da maioria de nós não se recorda da primeira vez que experimentou café? Provavelmente na tenra idade, ainda nos anos iniciais da infância, e a tez de misto de asco e de surpresa, pelo sabor amargo e forte e quente, a pensar: “Como gostam os adultos disso?” A mesma coisa pode ser vista, por exemplo, na expressão facial que faz uma criança quando colocamos-lhe à boca pela primeira vez uma bebida gaseificada qualquer. Em geral, a expressão facial transforma-se automaticamente. Também na adolescência, provavelmente a primeira vez que deitamos um gole de cerveja à língua, a impressão fosse de que não repetiríamos o cotidiano de vários adultos: o de tomar cerveja falando das coisas comezinhas do dia e do trabalho, já que, num primeiro momento, aquele gosto pareceu tão intempere ao contato com a boca.
O que isso nos ensina sobre o paladar? Num primeiro momento podemos ser levados a responder que isso nos ensina que o paladar muda com o tempo e os anos, mas seria resposta demasiado apressada, digna daqueles que naturalizam experiências que, em verdade, vemos melhor se observarmos por outra óptica. Isso demonstra que o paladar, como outros estímulos do corpo, podem ser refinados, compreendidos, estimulados. Digamos: apreciados sob outro ângulo ou doutra maneira, podem ser reinterpretados.
O cinema, mercado dos mais rentáveis do mundo, não tem favorecido tanto esse nuançar. Somos estimulados grosso modo a consumir única e simplesmente uns quantos blockbusters previsíveis ao ponto do tédio e umas quantas coisas insossas, como as comédias fílmicas da rede globo, igualmente repetitivas e draconianamente controladas em seu processo de produção (onde o diretor, o roteirista e os demais cumprem mais uma função técnica e formal que uma artística e autoral).
Numa era em que “gosto não se discute”, em geral qualquer debate sobre o tema é tido por intolerância arrogante. A verdade, contudo, é que a capacidade de apreciação das nuanças culturais é hoje artigo raro no nosso consumo cotidiano. Não admira que algo que é notadamente termômetro e marca social de qualquer tempo, civilização e lugar – a arte – seja pura e simplesmente banalizada e rebaixada a “uma questão subjetiva, pessoal e indiscutível”. Notem que não falo aqui de uma hierarquia entre os mais diversos estilos de produção artística que podem, ou não, ter lugar nos mais variados campos das artes, mas precisamente que, para cada um deles, temos de ter sensibilidade e o mínimo de aposta para lograr compreender-lhe as lógicas internas, para poder apreciar-lhe as subtilezas inerentes ao local, período, contexto, etc., em que fora criada. Além, claro, de algum senso crítico para não equiparar coisas qualitativamente diferentes e avaliá-las da mesma forma.
Mas não. O que impera hoje, grosso modo, é a apreciação no nível mais imediato do consumo. Não há tempo para longas digressões, não há tempo para enredos e tramas que exijam mais do espectador. O que há é a necessidade constante de estímulos visuais em tela, de orações diretas e de impacto vulgar e banal. Não à toa os repetitivos enredos da nova moda do cinema, os filmes de herói, serem tão requisitados mesmo pelo público mais “maduro” e terem se consolidado como produções de rentabilidade nunca antes vista.
O problema não é propriamente serem estes filmes assistidos, o problema é não aprendermos a – e não nos esforçarmos para – assistir mais nada. A uniformização e padronização una da produção cinematográfica e do consumo desta. Claro, claro, sugerirá o pretenso leitor mais “ilustrado”, há sempre os circuitos independentes e coisas congêneres. No geral, entretanto (e apesar do esforço monumental que muitos destes espaços herculeamente fazem para manter-se seu funcionamento), a seita de “descolados” que costuma frequentar estes lugares está geralmente mais preocupada em reunir-se para, durante a projeção dum filme “cult” qualquer, maldizer quem vai ao cinema do shopping, enquanto enaltece a própria postura de “consumo de arte”, do que de propriamente apreciar e consumir de fato o produto que está a servir de vetor para seu enaltecimento catártico de si próprio.
Por razões de distribuição e da força do estúdio que chancelou a produção, um filme algo inusitado para os cinemas de público de massa chegou às grandes telas nas casas mais movimentadas do ramo: Mãe! (Mother!), do diretor Darren Aronofsky. O filme foi um fiasco de bilheteria (tendo custado sua produção US$ 30 milhões e faturando pouco mais de US$ 44 milhões. Percebam que isso é considerado prejuízo não só porque o lucro foi baixo, mas é que no custo de produção acima mencionado não estão inclusos os gastos com divulgação e publicidade) e bastante tímido na crítica. Um importante site do ramo (Rotten Tomatoes) conferiu-lhe 68% de aprovação por parte dos críticos, o que é considerada uma avaliação timidamente positiva, e 50% por parte da audiência, o que é, dado já o prestígio precedente do diretor, uma avaliação baixa.
Aos que já conhecem a obra do diretor – responsável por grandes filmes como Cisne Negro (Black Swan), Réquiem para um Sonho (Requiem for a Dream) e o clássico cult Pi (π) – não surpreendeu inteiramente a proposta. A marca do diretor no terror e drama psicológicos está impressa em praticamente todos os filmes em que assina direção e roteiro, como neste. A surpresa, contudo, foi o tempo, a ambientação e a escolha de fotografia do diretor, pouco usuais em seus filmes e menos ainda no cinema de grandes salas em geral.
Para os ainda não sabedores da obra, uma breve sinopse (sem entregas do desfecho, evidentemente). Um poeta que enfrenta problemas criativos para escrever sua próxima obra e sua esposa dividem uma casa em uma área rural afastada da cidade. A casa, que é dele, foi antes alvo de um incêndio, que consumiu boa parte dela. A esposa, zelosa de seu marido e querendo ver-lhe bem e a produzir, empreita de próprias mãos a reforma da casa, cuidando e revitalizando cada aresta e detalhe. Chega então à casa um outro casal que não era esperado, pedindo pouso por uma noite, pois não conseguiram chegar ao destino que tencionavam alcançar. Um médico ortopedista e sua esposa. O que parecia um filme banal sobre uma vida conjugal morna e seus correspondentes problemas revela-se, agora, uma história bastante alegórica e metafórica, com elementos de terror, de claustrofobia psicológica, de depressão e até um pouco de gore.
A estrutura de captura do filme (motivo de incômodo para muitos dos apressados de que falei acima, a quem o plot e o desenlace do filme têm de ser já entregues, esclarecidos e esmiuçados nos primeiros 10 minutos de filme, e a estrutura visual deve ser familiar e óbvia como de todas as outras experiências cinematográficas observadas) é bastante peculiar e, o que é melhor, funciona bem para o enredo da obra, não sendo mera excentricidade. Em parte considerável da película, até o final da primeira metade do filme, a câmera é posicionada quase todo o tempo no ombro da esposa do poeta (Javier Bardem), interpretada por Jennifer Lawrence. O filme não tem nenhuma trilha sonora, passa-se todo num só ambiente – a casa – e orbita em torno do casal, com o elenco auxiliar aparecendo apenas na medida em que dá suporte ao desenvolvimento, para o espectador, da natureza e do caráter da relação entre ambos.
A primeira metade do filme, que serve para construir a tensão que servirá de propulsor para o desfecho, é bastante delicada, de passos lentos, de tons claros e luminosos, convidando o espectador à observação das nuances e dos diversos detalhes metafóricos e religiosos que, ao final, revelar-se-ão não banalidades jocosas de um diretor que quer intrigar gratuitamente a audiência, mas elementos milimetricamente pensados a serviço da trama que compõem. Depois, a mudança estilística casa-se poeticamente com o avançar da trama.
Originalidade (ou, pelo menos, inventividade no atual contexto do cinema), contudo, não garante sucesso. O que fez deste filme um fiasco de bilheteria, ainda que um êxito cinematográfico monumental no estado de arte recente do cinema, parece vir a lume justamente na lógica contemporânea imperante de consumo das artes. Queremos investir muito pouco ou quase nada (em termos de esforço cognitivo e de tempo) e queremos sair dali satisfeitos. Mas não satisfeito no sentido de um impacto reflexivo, catarticamente satisfeitos, mondrongamente satisfeitos.
Entretenimento tem seu espaço e é indispensável a qualquer vida saudável. O que seríamos de nós se, após um dia estressante, não tivéssemos alguma bobagem qualquer para assistir enquanto, digamos, bebericamos um gole de cerveja? A miséria, contudo, é que nivelamos, em geral, toda a experiência artística consumida a isso. Parece que o senso de apreciação cultural nos tempos recentes resume-se a coices. Explosões, frases rápidas, dramas caricatos, soluções simples, sagas previsíveis, efeitos especiais exagerados, cidades destroçadas. Parece haver pouco espaço para a subtileza, o desenlace menos óbvio, a expectativa que não seja atendida apenas pela resposta esperada, os tons menos negros e brancos e mais cinzas, as texturas.
O filme de Aronofsky vai precisamente na contramão de toda essa lógica imperante, e isso explica seu fracasso. Não é, a um só tempo, um destes “filmes de vanguarda” que declara guerra aberta aos blockbusters, tampouco é um filme de estímulos óbvios ao espectador. Não é um filme politicamente orientado, o que o favoreceria junto às alas ditas mais “engajadas” da franja “descolada” dos espectadores ilustrados; outrossim não é um filme de personagens tipificáveis nas noções mais correntes (herói, vilão, donzela, psicopata, etc.). Não é um filme de terror, e, ao mesmo tempo, não é propriamente um drama. Não é um um filme francês blazé, que caracteriza-se caricaturalmente pela lentidão uniforme, nem é um típico filme de ação estadunidense, de cortes de câmera a cada segundo e de correria esbaforida.
Na aposta deste não lugar em que Aronofsky decidiu colocar seu filme, ele perdeu com um fiasco de bilheteria para adentrar a história do cinema como um dos grandes diretores contemporâneos. Vale lembrar aos mais céticos que Stanley Kubrick, diretor de clássicos como Laranja Mecânica (Clockwork Orange) e 2001: uma Odisseia no Espaço (2001: a Space Odyssey), nunca ganhou um oscar de diretor por seus filmes. O compositor italiano Ennio Morricone, responsável por diversas trilhas clássicas dos Western Spaghetti, reproduzidas até hoje no imaginário e na cultura, só agora muito recentemente, e já praticamente aposentado, recebeu sua primeira estatueta (que foi mais tributo tardio ao seu legado que propriamente honra ao trabalho pelo qual foi formalmente agraciado). Ainda assim, ambos entraram para a história do cinema como gigantes de seu tempo.
Em períodos onde a obsessão de etiquetar os gostos e colocar tudo em caixas impera, um filme assim realmente não teria lugar. Como dito antes, não se trata de uma cisão moral entre o que supostamente é “entretenimento” e o que é “arte”, mas que, para uma elevação das percepções não só culturais, mas sociais em geral, temos de nos abrir mais ao esforço da nuance e do contraintuitivo no nosso consumo cotidiano de cultura. Sair da zona de conforto e do consumo fácil faz-se imperioso, e devemos também parar de de antemão olhar de sobreolho aquilo que, num primeiro momento, não está no nosso catálogo de experiências imediatamente compreensíveis ou “prazerosas”.
Se só nos regozijamos com o óbvio e só vemos prazer naquilo que de antemão demandamos de uma experiência artística, se nos encerramos nas caixas que previamente estatuímos como as nossas, fadamo-nos a não aprimorarmo-nos perceptivamente e não há então como melhorarmos nossa própria percepção de mundo. Se só aceitamos por bom aquilo que já de antemão elegemos por bom, como vivenciar novas experiências? Como absorver novos elementos que componham nossa visão de mundo? Como ser amanhã mais e melhor do que aquilo que somos hoje?
Podemos ou não gostar do novo filme de Aronofsky, mas, independente disso, a experiência cinematográfica ali entregue e seu fracasso de bilheteria e crítica muito nos têm a ensinar sobre como vemos e consumimos entretenimento e arte contemporaneamente.
(Ian Caetano, formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás e mestre em Sociologia Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos do Rio de Janeiro (Iesp-UERJ)