Uma festa literária é movimento dentro da literatura. Em nenhum momento deixará de ser criticada, celebrada ou até mesmo combatida. Isso porque a literatura precisa desse debate constante para continuar evoluindo. É uma constante destruição de vícios e a construção de novos hábitos que vão fazer a literatura nacional algo cada vez mais vivo. A Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, oscila entre críticas e elogios em cada edição. Considerado um dos festivais mais importantes da literatura nacional, o evento tem mudado o ponto de vista quanto aos escritores homenageados, mudando alguns vícios que renderam críticas ferrenhas do público e artistas. O ano de 2016, por exemplo, foi o primeiro a homenagear uma poeta, a carioca Ana Cristina César. A Flip, que lembrou o trabalho de Ana, era a 14ª edição do evento e logo na primeira mesa de debates surgiram críticas pela falta de representatividade feminina – a mesa contava apenas com homens falando sobre a obra de uma escritora.
Neste ano, o escritor Lima Barreto foi o homenageado, levando autores negros para a programação, que em muitas edições é totalmente embranquecida. Ana Cristina César abriu as portas da festa (talvez com um chute) para as escritoras brasileiras. No dia 5 de dezembro, última terça-feira, a nova curadora da festa, Joselia Aguiar, anunciou que a homenageada da 16ª edição da Flip, que ocorre em 2018 entre 25 e 29 de julho, é a escritora Hilda Hilst. De acordo com o diretor-geral da Flip, o arquiteto Mauro Munhoz, “a escolha da Hilda Hilst como Autora Homenageada da Flip 2018 se deu pelo fato de sua obra extrapolar fronteiras. Assim como os outros poetas brasileiros, leu Drummond, Bandeira e Cabral, mas leu também Fernando Pessoa, o francês Saind-John Perse e o alemão Rainer Maria Rilke. O resultado é uma literatura inovadora do ponto de vista da linguagem que exerce, por exemplo, forte influência na cena da dramaturgia brasileira de hoje”.
As últimas edições da Flip mostram que os organizadores se preocupam cada vez mais com o escritor que será homenageado, trazendo nos últimos anos autores que são destaque pela pluralidade e pela diferença. “Será uma Flip intimista, com muita poesia e teatro, um pouco de irreverência e debates sobre criação artística, a arte e a natureza, a literatura e a filosofia. A pesquisa de repertório será a mesma, ou seja, vamos manter a preocupação em ter autores e autoras plurais, do mesmo modo que na Flip de 2017”, afirma a curadora da festa, Joselia Aguiar. Ela diz perceber pontos em comum entre a obra de Lima Barreto e de Hilda: “Ambos foram transgressores, cada um a seu modo e em seu tempo e se dedicaram à escrita de modo tal que ultrapassaram o limite do que era esperado de cada um: ele como autor negro de baixa renda, ela como mulher livre numa sociedade que não estava acostumada a isso.”
HH
Hilda Hilst, ou Hilda de Almeida Prado Hilst, nasceu em 1930, escreveu poesia, ficção, teatro e crônica. Construiu uma obra singular em língua portuguesa a partir da segunda metade do século 20, abordando o amor, o sexo, a morte, Deus, a finitude das coisas e a transcendência da alma. O interesse pela escrita surgiu quando Hilda ainda era criança. Leu Samuel Beckett, Friedrich Hölderlin, Fernando Pessoa, Rainer Maria Rilke, René Char e Saint-John Perse. Sua estreia na literatura foi aos 20 anos, com um livro de poesia recebido com muito entusiasmo por Cecília Meireles e Jorge de Lima. Com 22 anos se formou em Direito pela Universidade de São Paulo, onde conheceu a escritora Lygia Fagundes Telles, com quem manteve um laço de amizade forte e duradouro.
Depois de ser diplomada em Direito, Hilda viajou pela Grécia, Itália e França. Conta que, após a leitura de Carta a El Greco, de Nikos Kazantzákis, desejou abandonar tudo para entregar-se em tempo integral ao ofício de escritora. Em 1996 passou a residir na Casa do Sol, uma chácara construída em Campinas, no interior de São Paulo. Cercada de árvores e bichos, Hilda se manteve um pouco isolada da sociedade e imersa no mundo literário. Foi casada com o escultor Dante Casarini e não teve filhos. No sítio, recebeu diversos artistas e escritores, durante temporadas breves e longas, como, por exemplo, o escritor Caio Fernando de Abreu e Mora Fuentes.