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ENTRETENIMENTO

Dança do sacrifício

A presentado pela primeira vez em 29 de maio de 1913 no Théâtre des Champs­-Élysées, com a presença do próprio compositor, o russo Igor Stravinsky, o concerto ‘A sagração da primave­ra’ (Le Sacre du Printemps) acabou virando um dos escândalos mais marcantes da história da música clássica. A obra, considerada um marco importante do século XX, não foi bem recebida a princípio. Suas dissonâncias incomuns e o terror que expressa através dos ins­trumentos – acompanhada por um ballet – contam a história de uma virgem, escolhida para um ritual de sacrifício pagão, que dança até a morte, contemplada por seus abdu­tores em êxtase. Durante a estréia, a plateia, chocada, não se conteve em vaias, e arremessava todo tipo de objeto contra bailarinas e músicos.

A composição é considerada pelo célebre maestro Leonard Bernstein (1918-1990) a mais importante do século XX. A coreografia do ballet era tão moderna quanto a música. Várias testemunhas e autores apon­tam que a dança teria sido a verda­deira causa dos problemas na estréia da obra. Richard Taruskim, escritor especializado na obra de Stravinsky, conta um pouco do que aconteceu no Théâtre des Champs-Élysées: “A coreografia de Nijinsky, muito mais do que a música de Stravinsky, foi o que fomentou a famosa ’revolta’ na estreia. Muitas das análises apenas citam Stravinsky. E, como a maioria das lembranças da estréia falam de uma barulheira, a maior parte da música sequer foi ouvida”.

A confusão causada pela com­posição de Stravinsky e pela coreo­grafia de Nijinsky foi remontada em um filme televisivo chamado Riot at the Rite (Tumulto na sagra­ção), lançado em 2005 na emissora BBC, da Inglaterra; e também nas cenas iniciais do filme Coco Cha­nel & Igor Stravinsky, dirigido por Jan Kounen e lançado em 2009.

COREOGRAFIA

Nos início do século XX, na cha­mada Belle Époque francesa, o em­presário Sergei Diaghilev decidiu iniciar apresentações de divulga­ção da arte russa em Paris. Em 1909 ele criou uma companhia de Bal­let. Stravinsky era desconhecido na época, mas surpreendeu o em­presário com um de seus concer­tos. Diaghilev encomendou dele a orquestração de algumas peças de Chopin, e satisfeito com o re­sultado pediu outras três peças. A terceira, que consagraria para a eternidade o nome de Stravinsky, ganhou o título de ‘A sagração da primavera – cenas de uma Rússia pagã em duas partes’. O empresário queria uma coreografia ainda mais ousada que a música e seu enre­do, e contratou o coreógrafo Vaslav Nijinsky, que já havia causado es­cândalo em Paris no ano anterior.

Amancio Cueto Jr., autor do site Euterpe, narra como aconteceu o tumulto no teatro. Na época, tanto o maestro encarregado de reger a peça quanto os músicos considera­vam ‘A sagração da primavera’ uma verdadeira loucura, e estavam com receio de executá-la. Testemunhas relataram que as vaias começaram ainda na introdução da peça, e fo­ram ganhando força assim que as cortinas subiram e as bailarinas apa­receram. Os passos não convencio­nais da dança, bem como os figu­rinos, nada lembravam a elegância de peças como ‘O lago do cisnes’. De acordo com o relato de um dos bai­larinos, A coreografia de Nijinsky in­cluía muitos passos anti-dançantes, com os pés para dentro e saltos que faziam todos os órgãos internos do corpo sacudirem violentamente”.

A condessa de Pourtales, que es­tava na platéia, ficou extremamen­te ofendida com a falta de ‘classe’ do ballet e com as notas assusta­doras de Stravinsky. “Eu tenho 60 anos de idade e esta é a primei­ra vez que alguém se atreve a tirar sarro assim de mim”, disse irritada.

POLÍCIA

“Asvaiascresceramtantoque, em certoponto, amúsicasetornouinau­dível para os que estavam dançando no palco”, explica Amancio Cueto Jr. “Nijinsky então subiu numa cadeira e passou a gritar o tempo dos com­passosparaosbailarinos. Paraconter os mais exaltados, a gerência do tea­tro acendeu várias vezes as luzes da platéia, sem sucesso”. No momento em que a plateia se dividiu e come­çou a lutar, o teatro precisou recorrer às autoridades para conter o públi­co. “E então, quando os que gosta­ram da novidade chegaram às vias de fato com os que vaiavam, a polí­cia foi chamada e colocou para fora, à força, cerca de 40 pessoas”.

“Insensível e com o sangue frio de um crocodilo”–essa foi a crítica do compositor Stravisky ao maestro Pierre Montreux, que mesmo com toda a bagunça conseguiu se man­ter firme e conduzir a orquestra até o final da peça. Contraditoriamen­te, o ballet foi bastante aplaudido no final. Como não era a última apre­sentação da noite, foi seguido por outras duas peças, consideradas mais “comuns” pelo público: Con­vite à dança, de Weber e o 2º ato do Príncipe Igor, de Borodin.

Depois de mais algumas apre­sentações em Paris, menos tumul­tuadas que a estréia, o grupo seguiu para Londres, onde a peça foi bem recebida. “Em abril de 1914 Mon­teux regeu ‘A Sagração’ em concerto, sem a dança, e segundo reza a len­da, o sucesso foi tanto que Stravinsky chegou a ser carregado nos ombros de admiradores, em sinal de triun­fo”, conta Amancio Cueto Jr. Com a chegada da Primeira Guerra Mun­dial, o ballet se dissolveu, pois cada membro voltou para seu país natal.

REDESCOBERTA

Em 1920, quando Diaghilev re­solveu reestrear a peça, ninguém mais se lembrava da Coreografia. Ninjinski, o coreógrafo, havia sido diagnosticado com esquizofrenia e estava internado em uma clínica psiquiátrica. Ele morreu aos 61 anos, em 1950. Hoje ele é considerado um dos bailarinos mais importantes de sua geração. “Por muitos anos, pen­sou-se que a sua coreografia estives­se perdida”, explica Cueto Jr. Apenas em 1987, mais de 70 anos após a es­tréia, a pesquisadora Millicent Hod­son, atravésdeumtrabalhominucio­so, conseguiu restaurá-la da forma mais próxima o possível da original. “A pesquisadora reuniu fotografias, esboços, documentos de Nijinsky e depoimentos de bailarinos daquela época ainda vivos”, conclui.

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