Home / Cultura

Livros

Poesia de Cazuza se mantém viva com lançamentos

Agenor de Miranda Araújo Neto adicionou sentidos apurados de um cronista que entornava uísques noite adentro.

Cazuza posa para fotografia do disco 'Exagerado', lançado em 1985 - Foto: Flávio Colker / Divulgação Cazuza posa para fotografia do disco 'Exagerado', lançado em 1985 - Foto: Flávio Colker / Divulgação

Poeta louco e voraz, Cazuza desempoeirou a música brasileira no início dos anos 1980. Foi o maior letrista de sua geração. O cara capaz de dizer que o banheiro era a igreja de todos os bêbados. Que falava alto coisas cruéis, ficava desatinado e queria descolar alguém pra ir dormir. Desejava a sorte de um amor tranquilo, com sabor de fruta mordida, matando a sede na saliva. Essas dinamites líricas serão abordadas pelo viés literário em “Meu Lance é Poesia”, obra editada pela Martins Fontes prevista para chegar às livrarias em dezembro.

Ao seu coração lírico, Agenor de Miranda Araújo Neto adicionou sentidos apurados de um cronista que entornava uísques noite adentro. Já em casa, altas horas da madrugada, batia seus versos à máquina, enviando-os aos parceiros após burilar os excessos literários. Às vezes, de fato, o álcool diz por nós. Cazuza - bobo nem nada - sabia disso. Costumava ser acordado por Roberto Frejat, iam à praia onde o poeta curava a ressaca e, depois, encostava no Baixo Leblon. No dia seguinte, Frejat voltava com a música pronta. A primeira foi “Nós”, reggae gravado no elepê “Maior Abandonado”, que o Barão Vermelho lançou em 1984.

Deve-se dar destaque maior à parceria do cantor com Frejat. Assim que se conheceram e à medida que iam conversando durante o trajeto até os ensaios do Barão, eles descobriram gosto parecido: Luiz Melodia era unanimidade, idem a blueseira Ângela Rô Rô ou o tropicalista Gilberto Gil. O encontro entre os dois foi primordial à nossa música. É a mais importante dupla de compositores do rock nacional. Ora, levaram a urgência da linguagem roqueira consagrada por Jimi Hendrix, The Who e Rolling Stones à língua portuguesa.


		Poesia de Cazuza se mantém viva com lançamentos
Ritual: poeta se apresenta na época do lançamento de 'Só Se For a Dois', de 1987. Foto: Site oficial do Cazuza/ Reprodução

Só os dois criaram dezenas de canções, boa parte das quais eternos hits, como “Todo Amor que Houver Nessa Vida”, “Pro Dia Nascer Feliz”, “Bete Balanço”, “Por Que a Gente é Assim” (com Ezequiel Neves) e “Maior Abandonado”. Quando Cazuza deixou o Barão, em 1985, a parceria foi adiante: “Só As Mães São Felizes”, “Ritual”, “Heavy Love”, “Ideologia” e “Blues da Piedade”. Na discografia do grupo, os artistas ainda criaram juntos a pérola “Que o Deus Venha”, uma adaptação de um poema escrito por Clarice Lispector. Essa faixa está no repertório do disco “Declare Guerra”, o primeiro sem o letrista. É um blues arrepiante.

Como se vê, muita música excelente foi feita pela dupla. As letras ressignificaram a fossa, tema tradicional na música popular brasileira, mas praticamente abolido após o AI-5, em 1968. De repente, já não era mais tão legal falar sobre o desassossego do amor, o pé na bunda dolorido e as agruras existenciais. Quem falasse sobre o próprio umbigo corria o risco de ser taxado como cafona ou alienado, o mais comum. Prevalecia na MPB as metáforas rebuscadas (ou caducas?), pois havia censura no Brasil. Dizer o que pensava poderia dar em cana.

Sempre escolhendo enfoque inteligente, com imagens poéticas desconcertantes e situações corriqueiras à vida miúda, Cazuza adotava uma postura rock’n roll, porém defendia - de maneira competente - um discurso já tradicional no cancioneiro popular brasileiro: a dor de cotovelo. Ou seja, MPB purinha. Com um adendo, porém: ele expressava - numa linguagem direta na qual as palavras pareciam lâminas afiadas - a urgência juvenil por liberdade.

Urgência

É o que se escuta, por exemplo, no elepê “Barão Vermelho”, lançado em 1982, o primeiro da banda. Já na faixa de abertura, “Posando de Star”, o cantor despirocou geral: “você precisa é dar”. Nem é preciso fazer tanto esforço para sacar que a música foi vetada pela censura - sim, no início dos anos 80, ainda tinha alguém designado a tal função. Acostumado a lidar com essa gente na imprensa, o jornalista e crítico musical Ezequiel Neves sugeriu que o grupo adicionasse um pronome no verbo: dar-se. Uma ênclise irá resolver, é isso mesmo? “Ninguém irá lembrar e depois a gente canta igual”, tranquilizou o guru dos barões.


		Poesia de Cazuza se mantém viva com lançamentos
Cazuza é retratado pelas lentes de Flávio Colker na capa do disco "Só Se For a Dois". Foto: Flávio Colker/ Divulgação

Nascido em 4 de abril de 1958, Cazuza conheceu na infância importantes nomes da música popular brasileira, como Elis Regina, Caetano Veloso e Gal Costa. O pai, João Araújo, comandava a Som Livre, gravadora surgida em 1969 para lançar as trilhas sonoras das novelas globais. Conta-se até que, certa vez, a banda Novos Baianos chegou a acampar na casa do jovem. Desde muito novo, ele escutava Lupicínio Rodrigues e Maysa, além de Noel Rosa e Nelson Cavaquinho. Por isso, funcionava extrair poesia do seu quintal. E, óbvio, esses textos eram transgressivos. Mexiam conosco. Mexem até hoje, melhor dizendo.

Em 1976, a pretexto de estudar arte dramática, Cazuza mudou-se para Londres. Na capital inglesa, tornou o relacionamento que já tinha com o rock ainda mais sério - crescera admirando Bessie Smith, Jimi Hendrix e Janis Joplin. De perto, viu Clash e Sex Pistols. Assistiu a clássicos do cinema e frequentou museus de arte. Três anos depois, viajou a San Francisco para fazer um curso de fotografia na Universidade de Berkeley. A cidade da costa oeste abrigava a City Light Books, livraria comandada à época pelo escritor Lawrence Ferlinghetti, onde o poeta Allen Ginsberg chocara os costumes bélicos do Tio Sam.

Jão já anunciou que pretende gravar inéditas de Cazuza, de quem é fã. Sabendo ser o jovem artista um pupilo de seu filho, Lucinha Araújo entregou textos inéditos ao cantor de “Me Lambe”. Ainda na seara musical, a gravadora Som Livre colocou nas plataformas de streaming o álbum “O Poeta Vive”, no qual novos nomes da música brasileira, como Thiago Pantaleão e Luiza Martins, interpretam os clássicos “Pro Dia Nascer Feliz” e “Codinome Beija-Flor”. Essa iniciativa comprova que, mesmo se passando anos ou décadas, ainda haverá de ter interesse pela obra cazuziana, sobretudo nas frases dispostas nas estrofes.

Não à toa, são obras que reinventaram o português, seja nos anos de pauleira à frente do Barão Vermelho ou durante o engajamento sociopolítico da carreira solo. Lembram o melhor de Chacal e Paulo Leminski. Cazuza se interessava pela prosa filosófica de Oscar Wilde. Lia Henry Miller, considerado obsceno pelo encaretado EUA, e Jack Kerouac, cujo “On The Road” virou a bíblia da contracultura. “Meu Lance é Poesia” chegará numa boa hora. E a fotobiografia, que promete revelar imagens inéditas, será um deleite aos fãs. Aguardemos.

Mais vídeos:

Leia também:

  

edição
do dia

Capa do dia

últimas
notícias

+ notícias