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Entrevista

"Literatura tem magia específica", diz Maria José Silveira

Escritora lança romance em que homenageia tradição modernista brasileira. Ao DM, fala - dentre outras coisas - sobre produção literária

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A escritora Maria José Silveira se tornou uma das vozes mais interessantes da literatura brasileira contemporânea. A cada livro, demonstra versatilidade estilística, numa narrativa que oferece instrumentos para que o leitor pense sobre o Brasil, seus problemas, sua gente e sua cultura, explorando a fantasia das expressões populares. É o que faz, por exemplo, no romance “Aqui. Neste Lugar”, obra que lança hoje, a partir das 18h, no Goiânia Shopping.

Seu talento narrativo levou-a à final dos prêmios Oceanos e Jabuti. Em “O Fantasma de Luís Buñuel”, publicado em 2004, Maria José criou um romance de formação sobre sua geração, a de 68, na qual estudantes lutaram contra a ditadura civil-militar. Alguns, como ela mesma diz em entrevista ao DM, se foram, outros machucaram-se muito e houve até quem buscasse saídas diferentes. “Quis falar sobre isso”, conta a escritora, em bate-papo via e-mail.

Maria José cria, em “Aqui. Neste Lugar”, distopia que parece metáfora para o Brasil contemporâneo. Por meio de sua prosa, a goiana nascida em Jaraguá, que já mora há anos em São Paulo, caracteriza seres e povos que vivem por aqui antes da chegada dos europeus. Formada em comunicação pela UnB, mestre em Ciência Polícias pela USP e doutora em antropologia pela Universidade de San Marcos, ela dialoga com a melhor tradição moderna.

A seguir, confira bate-papo do DM com a autora, que falou sobre vida, literatura, modernismo, Mário de Andrade, Karl Marx, Darcy Ribeiro e, claro, de “Aqui. Neste Lugar”:

Diário da Manhã - Maria José, como anda a vida?

Maria José Silveira - Ah, a vida! Anda bem, otimista, agora que o país está nas mãos de quem vai fazer muito por todos nós, brasileiros.

DM - Quem são os autores que lhe fazem a cabeça para continuar a escrever?

Maria José - São muitos. Na verdade, todos os bons autores que leio e renovam minha paixão pela literatura e pela escrita. Mesmo os livros de não-ficção, quando bem escritos e dependendo do tema, podem me dar coceira nos neurônios e na mão para me pôr a escrever.

DM - Qual é a importância da tradição modernista na construção do romance “Aqui. Neste Lugar”?

Maria José - Esse meu romance nasceu dessa tradição e do romance “Macunaíma” do Mário de Andrade. Estou entre os que acreditam que o modernismo, sobretudo com Mário e Oswald de Andrade, mudou para sempre a ficção brasileira. Adoro a irreverência deles e seu desejo de mastigar bem e deglutir o que veio antes ou veio de fora. Amo também o interesse que eles tinham pelo nosso país e a maioria de seu povo, os trabalhadores e os indígenas. São meus heróis literários.

DM - Imagino qual será a resposta, mas não posso deixar de perguntar: por que dedicar o romance ao escritor Mário de Andrade?

Maria José - Mário é um dos meus heróis literários e está no meu panteão de autores. Sempre que o releio, ainda me espanto com sua graça e sua verve. Sua curiosidade pelas culturas das regiões mais recônditas, sua coragem de inovar e usar a coloquialidade, sua dedicação ao que realmente importava, tudo isso me encanta e sempre me encantou.

DM - O que diz Mário que, para a senhora, é tão urgente ou, melhor dizendo, tão especial?

Maria José - No “Macunaíma”, ele me diz: “Veja a riqueza do povo que habitava aqui antes da chegada dos europeus, veja a beleza e a sensualidade de seus mitos, veja como a floresta e a natureza devolvem o amor que eles lhes dão, mas veja também como eles não têm sossego, hein? Já viu o que eles estavam fazendo com os ianomâmi?”

DM - Você obteve título de mestre em ciência política depois de se formar em antropologia e comunicação social. E essa bagagem intelectual, naturalmente, fica evidente em toda sua literatura. Como as palavras podem dar conta de retratar a vida?

Maria José - As palavras são nossa matéria prima. Se elas não pudessem retratar a condição humana, a vida, não haveria literatura. Mas é certo que elas operam em outro plano, bem diferente de uma fotografia, por exemplo. Mesmo porque só elas, as palavras, são capazes de entrar no fundo da alma humana e de lá voltarem para contar de nossos medos, angústias, segredos, ressentimentos, perversidades, mas também de nossos desejos realizados, memórias, alegrias, afetos, amor.

DM - Durante os anos de ditadura, a Sra. se exilou no Peru junto de seu marido. Até que ponto, em sua opinião, o fato de o Brasil não ter tido uma justiça de transição possibilitou que fôssemos desmemoriados para, nos últimos anos, assistirmos a banalização do horror fardado?

Maria José - No Brasil, à Comissão da Justiça e da Verdade não foi dada a possibilidade de concluir seu trabalho, que era o de definir e punir os torturadores e assassinos que agiram livremente nos 21 anos em que a ditadura civil-militar amordaçou a vida dos brasileiros. Essa impunidade foi decisiva para que esses mesmos torturadores e assassinos fizessem escola e continuassem, por todos os meios, sua prática de torturas e assassinatos de negros e pobres, contribuindo para as inseguranças, as mazelas que temos visto, e a manipulação para assistirmos a toda sorte de invenção de horrores e mentiras.

DM - Como a literatura pode auxiliar no processo de compreensão do passado por parte da sociedade brasileira?

Maria José - A literatura tem uma magia específica que é capaz de nos colocar dentro do nosso passado, sentindo o que sentiram os habitantes daquelas épocas distantes. Um livro faz isso. Nos leva para lá e nos traz de volta mais espantados, talvez, e com certeza menos ignorantes. A ignorância é uma praga que assolou nosso país nesses últimos quatro anos. Conhecer nosso passado e entender nosso presente nos dá ferramentas para tornar possível um mundo melhor e mais justo.

DM - Do que a literatura brasileira precisa mais: Karl Marx, Darcy Ribeiro, Mário de Andrade ou o ideal é os três juntos?

Maria José - Pelo visto, você gosta de brincar; eu também. E respondo que a literatura só precisa de leitores e autores. Por isso, precisa dos três que você citou porque todos eles foram, antes de tudo, leitores atentos e dedicados, só depois se tornaram autores. Aí você dirá: “Marx nunca escreveu literatura”. Literatura no seu sentido mais restrito, não, mas ele foi um apaixonado pelos autores clássicos, o que se torna claro em sua obra, obra que, aliás, deu uma boa mexida no mundo. Darcy e Mário certamente o admiraram bastante por isso.

DM - Como foi mesclar fatos jornalísticos com liberdade ficcional para criar o romance “O Fantasma de Luis Buñuel”, obra esta que, em minha opinião, deveria ser leitura obrigatória nas escolas?

Maria José - Muito obrigada por ter essa opinião sobre “O Fantasma...” É muito bom receber uma avaliação assim de um romance que amei escrever. E ele já nasceu com a ideia de dar o contexto do que eu estava contando através das mensagens dos jornais da época. Sempre que posso, gosto de mesclar a escrita com outra linguagem. Tenho um romance que mesclei com desenhos de quadrinhos porque o protagonista gostava de desenhar gibis. Outro que mesclei com o argumento para um filme. E por aí vai.

DM - Aliás, uma curiosidade de quem muito gostou de "O Fantasma…": qual foi a inquietação que lhe fez escrever a obra?

Maria José - Eu queria escrever um romance de formação da minha geração, a geração de 68, de estudantes que lutaram contra a ditadura civil-militar. Alguns morreram, outros se machucaram muito, outros buscaram saídas diferentes. Quis falar sobre isso.

DM - Há no prólogo de “Aqui. Neste Lugar” um narrador que descreve bebês com vagina sendo jogados ao chão para que conheçam “a vida bruta das guerreiras". Já os que têm pênis, diz ele, são recebidos com ternura. Por que, mesmo com as conquistas feministas das últimas décadas, o machismo ainda não foi superado?

Maria José - São as guerreiras icamiabas, conhecidas também como amazonas, as que, em minha ficção, fazem essa triagem de macho e fêmea na hora do nascimento. Os homens recebem um tratamento mais carinhoso do que as mulheres porque logo serão jogados de um precipício. Era uma sociedade de mulheres onde os homens só entravam para funcionar como progenitores. Em nossa sociedade, muitas vezes, vemos o inverso disso: as mulheres é que só devem funcionar como úteros ambulantes e donas de casa. É certo que as conquistas feministas vêm mudando esse quadro nas sociedades ocidentais, mas ainda com muitas dificuldades (basta ver o número de feminicídios no Brasil de hoje). Mas em outras culturas, lamentavelmente, encontramos exemplos ainda piores, onde mulheres passam sua vida como não-cidadãs, e são assassinadas por me dê lá aquela palha. É difícil mudar essas condutas há milênios entranhadas no comportamento humano. Mas tenho certeza que elas mudarão, como estão mudando.

DM - É inevitável, diante do noticiário dos últimos dias, não fazer paralelo com a situação dos povos originários - especialmente os da etnia Yanomami - ao ler o romance. Como os saberes das populações da Amazônia podem ajudar a melhorar o Brasil e seu teatro do absurdo?

Maria José - Nossos povos primitivos têm muito a nos ensinar. Desde o bê-a-ba da atitude frente à natureza, nossa moradia, até uma visão de mundo mais comunitária e solidária. Recomendo muito a leitura dos livros do Airton Krenak, Davi Kopenawa, Daniel Munduruku. Eles nos dizem muito sobre seus saberes. São tipos de livros que podem mudar nossa maneira de ver o mundo.

Para encerrarmos a entrevista, Maria José, o que é a arte para a Sra.?

Maria José - Seja de que forma for, arte para mim é o que me emociona, me faz compreender melhor o mundo, me transforma como pessoa.

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