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Lançamentos mantêm acesa memória da roqueira Rita Lee

Morta há um ano, cantora tem legado rememorado por meio de livros, peça teatral e um clássico recriado pelo cantor e amigo Ritchie

Rita Lee, cantora e compositora - Foto: Divulgação Rita Lee, cantora e compositora - Foto: Divulgação

Há quase um ano, o Brasil se emocionava com a morte da cantora Rita Lee, que perdeu a batalha para um câncer de pulmão, aos 75 anos. Roqueira essencial na linha evolutiva do gênero maldito em língua portuguesa, Rita desperta até hoje atenção dos fãs. Só isso, por exemplo, há de justificar os dois livros sobre a artista paulistana que estão em pré-venda.

“Rita Lee Mora Ao Lado” embasou o musical protagonizado pela atriz Mel Lisboa, nos anos 2010. Escrita pelo engenheiro de som e músico Henrique Bartsch, a obra narra a trajetória de Rita pela perspectiva de uma vizinha fictícia chamada Bárbara Farniente. Embora se trate de uma narrativa sem compromisso com a realidade, Rita afirmou, em sua “Autobiografia”, publicada pela Globo Livro, que esse era o melhor e mais fiel registro sobre ela.

No texto de orelha da nova edição, Rita lembra que recebeu um email “engraçado e muito bem escrito de um cara de Ribeirão Preto”. Esse sujeito era Henrique, que se apresentava como uma espécie de fã-viúvo dos “Mutas” e admirador tardio dela na (bem-sucedida) carreira solo. “Papo vai, papo vem, Bart, como eu o chamava, perguntou se poderia escrever uma biografia-ficção minha misturando fatos reais com o mundo de sua fantasia”, diz.

Sei que nenhum dos ex-membros dos Mamutes considera tal livro merecedor de crédito, portanto o escolho como nossa melhor biografia-lixo Rita Lee, cantora e compositora

Rita, claro, topou. Guitarrista do grupo Nós, de Ribeirão Preto (SP), Henrique deixou quatro filhos, uma guitarra e um baixo, construídos pelo luthier Cláudio César Dias Baptista, conhecido como “quarto Mutante” por ter sido criador dos instrumentos usados pela banda na virada dos anos 60 e 70. Ele colaborou ainda com o pesquisador Carlos Calado no livro “A Divina Comédia dos Mutantes”, publicado em 1966 e leitura obrigatória a musicólogos.

“Meses depois, recebi uma cópia, adorei e carimbei meu aval no livro 'Rita Lee Mora ao Lado'. Bart não viveu para ver seu livro virar uma peça de teatro em 2014 com sucesso de público, com Mel Lisboa interpretando a rita lee melhor do que ela mesma, só que bem mais bonita. Sei que nenhum dos ex-membros dos Mamutes considera tal livro merecedor de crédito, portanto o escolho como nossa melhor biografia-lixo”, elege a rainha do rock.

Chris Fuscaldo, diretora da Garota FM Books, casa editorial pela qual sai tanto “Rita Lee Mora ao Lado” quanto “Discografia Mutante” (outro lançamento), lembra de um email entre ela e Bart. “Bárbara encontrou um texto em que eu falava das trocas de emails que eu tinha com o pai dela e me procurou. Fiquei muito emocionada e achei que era um sinal, pois eu vivia falando que era uma pena esse livro ter sumido das lojas depois que Bart nos deixou”, conta.


		Lançamentos mantêm acesa memória da roqueira Rita Lee
Dois livros serão lançados mês quem vem. Marcus Vinícius Beck


“Discografia Mutante” recebeu, em 2019, o troféu Livros Musicais no Prêmio Profissionais da Música. A obra saiu em versão bilíngue. Além daqui, foi publicada também nos Estados Unidos e vendida mundo afora, até mesmo no Japão e na Rússia. Hoje, encontra-se esgotada e é possível encontrá-la apenas em marketplaces digitais. Daí a nova edição ser essencial, pois chegará às livrarias com textos em português, o que a torna ainda mais acessível.

Dez anos depois e após ter sido aplaudida pelo musical "Rita Lee Mora ao Lado", Mel Lisboa volta a viver a Rita nos palcos. Dessa vez, o espetáculo se baseia na autobiografia da cantora, que foi indicada ao Jabuti, em 2017. Sem papas na língua, vai da infância aos primeiros passos na vida artística, dos Mutantes ao Tutti-Frutti, de sua prisão em 1976 na ditadura ao encontro de almas com Roberto de Carvalho, das músicas aos discos clássicos, do ativismo pelos direitos dos animais aos tropeços e glórias. Ou seja, Rita se desnuda via Mel.

Embrião

O embrião dos Mutantes começou por volta de 1964, quando Rita Lee – fã de Rolling Stones e Beatles – se aproximou do músico Arnaldo Baptista, então com 16 anos. Sob o nome Six Sided Rockers, a banda tocou em programas da TV Record e até chegou a gravar um compacto em 1966. Divergências estéticas, todavia, culminaram na debandada de alguns integrantes, sobrando Rita, os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias. Ronnie Von, então, teve uma ideia: “que tal vocês se chamarem Os Mutantes?” Ele andava lendo o livro “O Império dos Mutantes”, ficção científica publicada pelo francês Stefan Wul.

Envolvido com o tropicalismo, Gilberto Gil convidou os roqueiros para acompanhá-lo durante a canção “Domingo no Parque”, que escandalizou os pudicos jurados no Festival de Música Popular Brasileira, em 1967. Com arranjos criados pelo maestro Rogério Duprat, a apresentação demonstrou que a esquerda brasileira podia até se mostrar progressista no terreno da política, mas passava longe do espírito libertário em matéria de estética.

Arrisco acrescentar que se não fosse pelo encontro fortuito com Rita (e com toda aquela turma que veio junto com ela à Londres, um grupo que incluía o Liminha e a “Cilibrina” Lucinha Turnbull), talvez eu jamais tivesse pisado em solo brasileiro” Ritchie, cantor e compositor

Já Caetano Veloso, à frente das experimentações tropicalistas, numa espécie de modernismo eletrificado, intimou os Mutantes a lhe seguirem durante a anárquica “É Proibido Proibir”, no Festival Internacional da Canção. Rita desafiou a moral e os bons costumes (era tempo de ditadura) ao tomar emprestado um vestido de noiva da atriz Leila Diniz. Tomates, latas e garrafas voaram e, mal-humorado, Caetano perdeu a paciência. “Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos”, vociferou, carimbando passaporte à história.

Com os anos 1960 ficando para trás, era preciso se reinventar. Rita, Sérgio e Arnaldo apostaram em composições autorais. Dentre elas, destaca-se “Ando Meio Desligado”, numa levada à guitarra que lembra o efeito descompressor da maconha. “Ando meio desligado/ eu nem sinto meus pés no chão/ Olho e não vejo nada/ Eu só penso se você me quer”, diz trecho da letra, lançada no elepê “A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado”, de 1970.

Essa canção agora ganha releitura pela voz do cantor Ritchie, já disponível nas plataformas. Conhecido pelo sucesso nos anos 80 com “Menina Veneno”, o artista inglês radicado no Brasil investe em novos arranjos, numa textura sonora que evoca o clima das pistas e da música eletrônica. Inclusive, Rita foi a primeira brasileira que conheceu em Londres, em 1972, ano em que ela chegara ao estúdio onde rolava uma gravação - e ele se fazia presente.

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“Ficamos amigos de cara, ajudei Rita a escolher sua primeira flauta transversal e ela, por sua vez, me mostrou pela primeira vez ‘Ando Meio Desligado’ (já havia sido grande hit dos Mutantes). Arrisco acrescentar que se não fosse pelo encontro fortuito com Rita (e com toda aquela turma que veio junto com ela à Londres, um grupo que incluía o Liminha e a “Cilibrina” Lucinha Turnbull), talvez eu jamais tivesse pisado em solo brasileiro”, afirma Ritchie, que lembra ter ficado amigo dela assim que a conheceu, nos anos 1970.

Após o término dos Mutantes, nessa mesma década, Rita se uniu ao guitarrista Luis Sérgio Carlini, ao baixista Lee Marcucci e ao baterista Emilson Colantonio. Tutti-Frutti, cujo nome é extraído de canção lançada por Little Richard, colocou no mercado “Entradas e Bandeiras”, até que, em 1978, lançam “Babilônia” – cujo carro-chefe é “Jardins da Babilônia”. O grupo ainda fez, em dueto com Gilberto Gil, os discos ao vivo “Hollywood Rock” e “Refestança”.

Anos antes, em 1975, Rita e seus amigos chutaram a porta com o bolachão “Fruto Proibido”. Carlini construiu um dos maiores solos da guitarra brasileira em “Ovelha Negra”. É neste disco também que Rita Lee ressurge deliciosamente stoaniana, após ter sido preterida pelos Mutantes. Ao melhor estilo Muddy Waters, há ainda o blues “Cartão-Postal” e o hit-eterno "Agora Só Falta Você", uma dessas músicas que serão escutadas lá em 2060 ou 2070.

Em seguida, Rita Lee se casou com o guitarrista Roberto de Carvalho, grande paixão de sua vida. Com o parceiro de amor e arte, revelou-se letrista que saia do estilo barulhento para um pop preocupado com a comunicação de massa. “Rita Lee”, de 1979, indica que as coisas andavam quentes na casa do casal Rita e Roberto. “Vestindo fantasia, tirando a roupa/ Molhada de suor de tanto a gente se beijar/ De tanto a gente imaginar, imaginar loucuras”, canta, em “Mania de Você”. Rita, que partiu no ano passado, ainda há de brilhar - e muito.


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Atriz Mel Lisboa refaz capa de disco lançado pela cantora Rita Lee, em 1980. Foto: Priscila Prade/ Divulgação

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