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Enfim, o Camões

Com láurea, Chico Buarque entra para grupo de poetas e romancistas

Chico não sai de moda. Sua brasilidade é tão encantadora como costuma ser a piscadela da mulher amada durante o flerte

Chico Buarque discursa durante entrega do Camões, em Lisboa, Portugal - Foto: Ricardo Stuckert/ Presidência da República Chico Buarque discursa durante entrega do Camões, em Lisboa, Portugal - Foto: Ricardo Stuckert/ Presidência da República

O compositor popular Chico Buarque, que recebeu ontem em Portugal o prêmio Camões, escreveu obra essencial para compreender o Brasil do golpe de 1964 para cá. Nas músicas, retratou a construção de um trabalhador brutalizado, mostrou o cotidiano dos dias se repetindo e falou sobre um país calado pela ditadura. E agora entra - com toda justiça - ao seleto grupo de poetas e romancistas que ganharam a maior honraria da literatura em língua portuguesa, dentre os quais João Cabral de Melo Neto, José Saramago e Raduan Nassar.

Chico não sai de moda. Sua brasilidade é tão encantadora como costuma ser a piscadela da mulher amada durante o flerte. O pai era paulista. O avô, pernambucano. O bisavô, mineiro. Tataravô, baiano. Possui antepassados negros e indígenas, cujos nomes os parentes brancos trataram de suprimir da história familiar. É rigoroso na forma poética, mas evita panfletarismo de quinta ao provar que a música deve ser afetuosa nos tempos difíceis.

Para Chico, por mais que leia ou fale de literatura, por mais que publique romances e contos, por mais que receba prêmios literários, o bom mesmo é ser reconhecido no Brasil como compositor popular e em Portugal, como gajo, expressão lusa para moço. Mas é inegável que nos seus versos mora o que há de melhor da tradição poética das nossas letras: une passado e modernidade, criticidade e beleza, sociologia e estética. Tudo a serviço de sua gente.

“Chico transformou em patrimônio literário comum os amores de nossos povos, as alegrias de nossos carnavais, as belezas de nossos fados e sambas, as lutas obstinadas de nossas cidadãs e cidadãos pela conquista da liberdade e da democracia”, afirma o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que assinou o Camões entregue ao artista após recusa de Jair Bolsonaro, então chefe do Executivo, em 2019. O cantor foi escolhido por unanimidade, mas Bolsonaro chegou a falar à época que entregaria a láurea até “31 de dezembro de 2026”.

Amor à língua

Chico Buarque escreveu a primeira novela em 1974, “Fazenda Modelo”. Cinco anos depois, lançou a obra infantil “Chapeuzinho Amarelo”, até estrear no romance. Lançado em 1991, “Estorvo” foi seu primeiro livro no gênero. Nele há o melhor da literatura contemporânea. A trama embaralha-se, o narrador é precário, assim como o mundo que lhe cerca, as coisas ao redor dele, como o contexto conturbado do Brasil no qual o personagem se movimenta.

Nos próximos livros, continuou preocupado em discutir sociedade, como faz em “Leite Derramado”. Chico descreve o modus operandi de uma elite, vamos dizer assim, orgulhosa de ser tosca. Seu último romance foi “Essa Gente”, publicado já durante o governo Bolsonaro, o qual define como “ameaça fascista”. Um dos seus textos mais belos, “Para Clarice Lispector, com Candura”, saiu em “Anos de Chumbo”. “Poucos produziram obra tão ampla e variada quanto a sua”, analisa o crítico literário Gilmar Rocha, em estudo.

Chico diz que, ao receber o Camões, pensou no seu pai, o historiador e sociólogo Sergio Buarque de Holanda, de quem herdou alguns livros e o amor pela língua portuguesa. “Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência nem excessiva severidade, para em seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária”, recorda-se o artista, acrescentando que ele, o progenitor, não ficou aborrecido quando se bandeou à música.

Na dramaturgia, fez “Ópera do Malandro” e “Roda Viva”, clássicos do teatro brasileiro. “Chico reside na sua intrínseca coerência com a contribuição global que essa singular personalidade vem trazendo, através da sua excepcional sensibilidade poética, ética e ideológica, para a vida cultural do país”, analisa o crítico teatral Yan Michalski, em sua “Pequena Enciclopédia do Teatro Brasileiro”, livro de referência às artes cênicas.

A carreira musical deu salto em 1971, quando já tinha sentido dor de cabeça danada por causa de “Apesar de Você”, que se tornaria, aos olhos da história, exemplo perfeito da habilidade buarquiana em construir prosódias refinadas, cheias de tons políticos, lirismo amadurecido e sensualidade acentuada - a coisa começa a se transformar no elepê “Construção”. Chico precisou driblar a censura, no que se revelou mestre de primeira grandeza, até que descobriu a experimentação estilística capaz de confundir os militares.

Bem-humorado e sagaz, inventou um compositor para fugir da perseguição ditatorial - em certa época, bastava os censores lerem nas letras o nome de Chico para vetá-lo. Sob a mordaça dos anos de chumbo, sem muita opção de escolha, criou o sambista Julinho da Adelaide, autor de “Acorda Amor” e “Jorge Maravilha”. Julinho até deu entrevista para “O Pasquim”, feita por Mário Prata, numa das peças mais hilárias do jornalismo brasileiro.

Palcos e livros

Segundo o presidente da Biblioteca Nacional, Marco Lucchesi, trata-se de uma conquista “extremamente forte” e representa uma espécie de Nobel da língua portuguesa não só por todos aqueles que receberam África, os países africanos, Brasil e Portugal, mas também pela alta qualidade de seus jurados. “O Prêmio Camões é uma proposta que avança além das fronteiras e, no fundo, a partir da literatura promove a cultura do diálogo e da paz”, diz Lucchesi, que é poeta e ocupa a cadeira 15 da Academia Brasileira de Letras (ABL).

“Reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula. Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo”, encerra Chico, artista que se interessa pela palavra.

Veja todos os vencedores do Camões

1989 - Miguel Torga, Portugal

1990 - João Cabral de Melo Neto, Brasil

1991 - José Craveirinha, Moçambique

1992 - Vergílio Ferreira, Portugal

1993 - Rachel de Queiroz, Brasil

1994 - Jorge Amado, Brasil

1995 - José Saramago, Portugal

1996 - Eduardo Lourenço, Portugal

1997 - Artur Carlos M. Pestana dos Santos, o Pepetela, Angola

1998 - Antonio Cândido de Melo e Sousa, Brasil

1999 - Sophia de Mello Breyner Andresen, Portugal

2000 - Autran Dourado, Brasil

2001 - Eugênio de Andrade, Portugal

2002 - Maria Velho da Costa, Portugal

2003 - Rubem Fonseca, Brasil

2004 - Agustina Bessa-Luís, Portugal

2005 - Lygia Fagundes Telles, Brasil

2006 - José Luandino Vieira, Angola

2007 - António Lobo Antunes, Portugal

2008 - João Ubaldo Ribeiro, Brasil

2009 - Armênio Vieira, Cabo Verde

2010 - Ferreira Gullar, Brasil

2011 – Manuel António Pina, Portugal

2012 – Dalton Trevisan, Brasil

2013 – Mia Couto, Moçambique

2014 – Alberto da Costa e Silva, Brasil

2015 – Hélia Correia, Portugal

2016 – Raduan Nassar, Brasil

2017 – Manuel Alegre, Portugal

2018 – Germano Almeida, Cabo Verde

2019 – Chico Buarque, Brasil

2020 – Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Portugal

2021 – Paula Chiziane, Moçambique

2022 - Silviano Santiago, Brasil

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