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Agonia dos cinemas

Cinemas de rua desaparecem na Capital goiana. Apenas um ainda desiste n Centro e aproveita o movimento noturno da região para exibir blockbusters

Às oito da noite, o escritor José Mendonça Teles tinha compromisso marcado. Ia, com frequência quase religiosa, para o Teatro Cine Campinas, espaço inaugurado no dia 13 de junho de 1936. Por lá, assistia ao filme do momento, muitas vezes acompanhado pela namorada. Era parte da rotina dominical dos campineiros, que incluía missa na Matriz, jogo do Atlético Goianiense à tarde e, logo no início da noite, um cineminha para sonhar.

Quem também não dispensava pegar o escurinho do cinema era Pedro Ludovico Texeira. A rotina dele costumava não falhar. Às duas em ponto, sempre vestido com elegância num bem cortado terno de linho, Ludovico cumprimentava as pessoas, sentava-se à poltrona e, até pouco antes de os créditos subirem à tela, ficava com os olhos vidrados no que via.

Eram dois os lugares favoritos do interventor para ver filmes: Cine Teatro Goiânia e Casablanca, este hoje um templo de uma igreja neopentecostal, no Centro da Capital goiana. O Teatro Goiânia continua imponente no cruzamento das avenidas Anhanguera e Tocantins, com suas curvas arquitetônicas que representam um navio se movimentando em direção ao palco que recebe espetáculos cênicos e, um dia, já servira até de casa para Eva Todor.

Cinema e Goiás

A arte que define o século 20 por excelência não demorou tanto para chegar a Goiás. No Brasil, a primeira exibição foi pouco tempo depois de os irmãos Lumière organizarem a primeira projeção de um filme, em Paris, no final de 1895. O berço, por assim dizer, do cinema brasileiro é o Rio de Janeiro e viera ao mundo em julho de 1896, na Rua do Ouvidor, Centro do Rio. Nos pequenos filmetes, mostrava-se o cotidiano das cidades europeias.

Uma vez aclimatado no Brasil, a revolução feita pelos irmãos Lumière, desde cedo, encontrou em Goiás uma espécie de paraíso. Para chegar aqui, bastou-lhe 14 anos, depois da exibição realizada no Salão Indiano Grand Café, na Europa. No dia 13 de maio de 1909, a Cidade de Goiás - à época, sede do Executivo estadual - recebeu a primeira projeção cinematográfica daqui, num prédio em cujas telas são mostradas imagens em movimento.

Sim, a primeira experiência cinematográfica em Goiás ocorreu no prédio que hoje vilaboenses, pirenópolis, goianienses, jataienses e brasilienses conhecem como Teatro São Joaquim. Como qualquer cinéfilo de pé rachado há de saber, é nele também onde o Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental se torna o que é: a casa, por excelência, do cinema goiano que, em mais de duas décadas, abriu nomes importantes do cinema nacional.

Segundo os escritores Beto Leão e Eduardo Benfica, a primeira sessão cinematográfica goiana começou pontualmente às 20h, sob “os auspícios da Empresa Receio Goyano”, que projetara películas nos gêneros comédia, dramas e phantásticas - Diário da Manhã prefere manter grafia do cartaz que anunciava à população vilaboense o evento. Os jornais do período reportaram o clima de euforia, com alta expectativa e ansiedade.

Nos anos 1910, para melhor contextualização, o cinema se firmou como forma de entretenimento. Mas os filmes, nesse período, não passaram de 20 minutos, ou seja, a programação das salas era feita basicamente por curtas-metragens. E não era diferente, claro, lá no Cinema Goyano: passava as produções mais badaladas, aquelas capazes de fazer os vilaboenses se apaixonar pela arte da era da reprodutibilidade técnica.

Dentre os filmes, vale destacar “As Proezas de Dom Quixote”, anunciado pela imprensa da Cidade de Goiás como “uma verdadeira fábrica de gargalhadas”. Em cartaz, ainda estavam “Santos Dumont”, este um documentário sobre as peripécias do pai da aviação em Paris, o brasileiro Santos Dumont. Havia ainda lugar para “O Enforcado”, uma comédia leve, sem muitos arroubos estéticos. E, por fim, assistia-se “Chegada e Partida de Trens de Ferro”.

Vila Boa

“Em 1919 foi inaugurado na antiga capital o Cinema Iris, de propriedade de Geraldo Sarti. Administrada por Carlos Lins, a sala exibidora também criou a sua própria orquestra para sonorizar as sessões cinematográficas. Com o fechamento do Iris, em 1923, Edilberto Santan fundou, no mesmo local, o Cinema Ideal, que funcionou até 1927”, relatam Beto e Leão, na obra “O Século do Cinema em Goiás”, o mais detalhado estudo historiográfico sobre as raízes do cinema goiano. A obra saiu, nos anos 1990, pela editora Kelps.

De acordo com os pesquisadores, com o som, em 1928, as orquestras são relegadas a segundo plano. “Dez anos depois do primeiro filme sonoro, em 1937, “O Cantor de Jazz”, Wadjou da Rocha Lima inaugurou na Cidade de Goiás o primeiro cinema falado do Estado, o Cine Progresso, pondo fim a toda uma era de magia reinante entre música e cinema.”

Cine Ritz e Cine Cultura resistem à agonia

Três anos após a construção de Goiânia, em 1936, Campinas abrigou o cine-teatro que leva o nome do lugar. Era frequentado, conforme narrado na abertura desta reportagem, por gente que, anos depois, viria a se tornar relevante na esfera pública goianiense, como o escritor José Mendonça Teles, autor de obras como “Em Defesa de Goiânia” (1988). Administrado pela Empresa Goiana de Cinema, que assumiria o Teatro Goiânia em 1950, a programação era quase a mesma da encontrada no Cine Goiaz, ou seja, filmes hollywoodianos.

Outro cinema badalado na Capital goiana atendia pelo nome de Cine Santa Maria. Localizado na rua 24, Setor Central, o espaço existe até hoje, porém exibe, em sua programação, apenas produções pornográficas. Foi inaugurado em 1939 e chegou a ser arrendado pela Empresa Paulista de Cinema, de acordo com o pesquisador Wesley Martins da Silva, em dissertação de mestrado defendida e, agora, disponível no site da PUC.

O último dos românticos é o Cine Ritz, mas enfrenta uma barra, apesar de aproveitar o movimento que toma conta da noite na Rua 8, com Casa Liberté e Zé Latinhas. Embora tenha atravessado a pandemia, o Ritz está endividado e sente o amargor ter as portas abaixadas em definitivo, ainda que os blockbusters sejam importante na tentativa de atrair público. Foi o que se viu, por exemplo, na estreia de “Marighella”.

Quem é responsável pela mudança tem nome: Frederico Machado. Além de diretor, roteirista e produtor, Frederico conduz há anos o Cine Lume, cinema de rua em São Luís, que leva à capital do Maranhão o melhor do cinema independente brasileiro e mundial. Até o momento, a iniciativa dá certo e faz o Ritz resistir no Centro, ao contrário do que houve com o Casablanca, Frida, Presidente e Capri, todos extintos por causa das transformações geradas pelas mudanças no consumo de conteúdo audiovisual.

Mas as opções se mostram ainda mais escassas. Nos shoppings, o que mais existe são lançamentos da Marvel e histórias de super-heróis, mas muito, ou quase nada, de filmes ‘cabeças’. Era uma função, por exemplo, cumprida pela rede Lumière, que já não opera mais na Capital. Mas é preciso reconhecer o trabalho desempenhado pela Secretaria Estadual da Cultura (Secult) à frente do Cine Cultura, no Centro Cultural Marietta Telles Machado.

Para o crítico de cinema Fabrício Cordeiro, do Cine Cultura, a derrocada do cinema de rua acontece por uma razão que, segundo ele, é lógica. “Um shopping oferece várias opções de compra em um único lugar, então as pessoas podem planejar várias coisas de uma só vez, inclusive ir ao cinema”, analisa Cordeiro, em depoimento que saiu no artigo “Era Uma Vez Um Cinema: As Salas Que Deixaram Saudades”, publicado no site da UFG, em 2010.

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