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Adaptações democratizam obra de Machado de Assis

Dirigido pelo cineasta Julio Bressane, ‘Capitu e o Capítulo’ está em cartaz no Cine Cultura, a preço popular, R$ 10. Trata-se de filme que desafia público

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É desafiador, as cenas, a estética, as atuações, a direção. Só poderia ser mesmo obra do cara que marginalizou o cinema: Julio Bressane revive Machado de Assis em “Capitu e o Capítulo”. Está em cartaz no Cine Cultura, preço popular, R$ 10. Trata-se de belo tributo ao criador da personagem feminina mais famosa da literatura brasileira - Capitu. Ela traiu Bentinho? Para Bressane, pouco importa se o chifrou ou não o chifrou. O ponto é outro.

Capitu tem olhos de ressaca, oblíquos. Falam o que palavras não expressam. Mostram aquilo que sequer Bentinho, amor de juventude, dá conta. Sibila enigmatismo. Fribila sedução. Pense em Ana Terra (criada por Érico Veríssimo na saga “O Vento e o Vento”), Gabriela (a excitante personagem levada às páginas por Jorge Amado) e Aurélia Camargo (descrita por José de Alencar para ser à frente de seu tempo). Há bons anos, todas despertam nossas imaginações. Mas nenhuma delas saltou da existência verbal à audiovisual como Capitu.

Na película filmada por Bressane, a sedução hipnotizante fica sob responsabilidade da atriz Mariana Ximenes. Talvez você se esforce e até consiga lembrar da minissérie levada ao ar pela Globo na década de 2000, mais precisamente em 2008, com direção de Luiz Fernando Carvalho e roteiro assinado pelo crítico cultural Daniel Piza. Quem vivia a personagem machadiana era Maria Fernanda Cândido. Michel Melamed fazia Bentinho. Agora, pela natureza artística de Bressane, as preocupações são outras. Não é produção global.

Mariana se empenha em enfeitiçar Bentinho, aqui interpretado pelo ator Vladimir Brichta. Amigos desde a infância e namorados durante a adolescência, os dois se casam e, como sabemos, Machado tece crítica à sociedade do período, uma vez que os personagens são de classes sociais distintas, o que acontecia bastante no Rio de Janeiro daquele século 19 - e acontece até hoje, se pensarmos bem. Ou seja, além de tudo, trata-se de realismo cirúrgico.

Afora questões sociológicas, é preciso se atentar ao aspecto estilístico. Bressane - conhecido por ter participado do cinema marginal, isto é, filmou com pouca grana - não se preocupou em transpor à telona uma adaptação convencional do romance clássico de Machado de Assis. Até porque, nós sabemos, isso já foi feito. Tudo é explicado nos letreiros: a obra ‘extrai’ elementos de “Dom Casmurro”. E o todo pulula à tela para explicar a parte, como nas passagens em que o personagem masculino lembra os amores e a finitude matrimonial.

Conversa amiga

À imprensa nacional, Bressane recordou-se, nas entrevistas para divulgar o filme, conversa que tivera com o poeta Haroldo de Campos nos anos 80. O cineasta ouviu do amigo uma provocação que nunca mais lhe saíra da cabeça. Era raciocínio simples: por anos, décadas até, as pessoas se preocuparam com o que seria o aspecto trivial do livro - a tal pergunta se Bentinho foi corneado ou não por Capitu. Mas, para Haroldo, o relevante - de fato - seria a estrutura da obra, não o relacionamento conturbado entre os dois. “Capitu e o capítulo”, dizia Haroldo. Quase um poema concreto, na visão bressaneana - e não é exagero, não.

Cineasta de estrutura poética e ensaística, Julio Bressane sacudiu o cinema nacional nos anos 1960 ao fundar, com o camarada Rogério Sganzerla, a produtora Belair. O clima, em razão do endurecimento ditatorial, pesou e, filho de general, Bressane precisou se exilar em Londres. Para o mesmo destino, foi a atriz Helena Ignez. Retornou ao Brasil em 72. Apaixonado por Oswald de Andrade e João do Rio, o diretor levou à tela grande, nos anos 80, outro clássico escrito por Machado de Assis: “Brás Cubas”. Uma adaptação bem irônica.

Anos depois, em 2001, houve outra releitura da obra machadiana, com Reginaldo Faria (Brás Cubas idoso) e Petrônio Gontijo (Brás Cubas na flor da idade) dirigidos por André Klotzel. Ambas as produções evidenciam apreço literário dos dois diretores e, mais importante, traduzem em imagens - bem sacadas - a verve debochada necessária para um projeto que tenha como eixo transpor Machado à linguagem audiovisual. No caso de Bressane, se prestarmos atenção, veremos um jogo de palavras fundamental em sua filmografia.

Há um interesse por retratar um Brasil antiquado, cujos ecos resvalam na história do protagonista que, falecido, rememora sua vida até chegar à conclusão de que, sim, teve uma existência pra lá de irrelevante. Devoto a Machado, nesta ocasião, Bressane dirigiu os atores Luís Fernando Guimarães, Maria Gladys e Regina Casé. Já no ano de 2008, com “A Erva do Rato”, fez releitura dos contos “Um Esqueleto” e “A Causa Secreta”, com Selton Mello e Alessandra Negrini - antes, ela havia trabalhado com o cineasta marginal em “Cleópatra”.

Seja qual for a adaptação de Machado, releva-se nelas tentativa de democratizar um dos autores mais brilhantes da língua portuguesa. Seu texto, cristalino, deve ser lido por todos. E, ao chegar à tela grande, é necessário que as pessoas o prestigiem. Se Machado de Assis é um remédio ao nosso cérebro, Julio Bressane oferece doses anti-caretice. E isso, levando em conta o Brasil, nunca é demais. Prestigie o cinema brasileiro. Vá ao Cine Cultura.

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