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Os gritos de Pio Vargas

Sorridente, o poeta Pio Vargas estava no 9º andar do Centro Administrativo, na Praça Cívica, em Goiânia, localizado em frente à porta de acesso para a chefia de Gabinete da Secretaria de Estado da Cultura, quando interpelou o escritor Ubirajara Galli. “Então você é o grande poeta Ubirajara Galli”, disse ele. Brincando, Ubirajara lhe devolveu: “Só se for por causa dos meus um metro e oitenta e dois centímetros de altura.”

Nesse primeiro encontro entre os dois que ocorreu numa tarde de março de 1987, Pio segurava um exemplar de seu primeiro livro publicado, “Janelas do Espontâneo”, em cujos versos não depositava fé. Referia-se a obra como de “imerecida leitura”. Mas, passados mais de 30 anos de sua publicação, ela é considerada uma preciosidade da poesia goiana, um divisor entre o antigo e o moderno. Ubirajara foi presenteado com um exemplar. Na dedicatória, em letras garrafais, um aviso: "não merece ser lido!”.

Cá para nós, isso é mera modéstia. Pio Vargas chegou a ser elogiado por ninguém menos que o poeta paranaense Paulo Leminski, um dos expoentes da contracultura no Brasil. Dono de texto refinado e poética que até hoje não lhe poupa comparações a Arthur Rimbaud e Charles Bukowski, a magia de Pio vive em iniciativas como a obra “Pio Vargas – Poesia Completa”, organizada pelo poeta Carlos Willian Leite.

“O Pio deu uma modernizada na poesia feita no estado. Ele criou um movimento de amigos dele, de pessoas que o cercavam, que tinham ele também meio que como um grande líder, meio que como um guru, e desse grupo saíram dezenas e dezenas de bons poetas. Tem uma poetisa que está no mercado até hoje, que, dessa turma do Pio, os melhores são ela e ele, que é a Dayse Kênya”, diz ao Diário da Manhã o poeta Carlos Brandão.

“O Pio deu uma modernizada na poesia feita no estado. Ele criou um movimento de amigos dele, de pessoas que o cercavam, que tinham ele também meio que como um grande líder, meio que como um guru, e desse grupo saíram dezenas e dezenas de bons poetas." Carlos Brandão, poeta e produtor cultural

Segundo Brandão, a importância do Pio foi conseguir ter chamado atenção de uma cidade para a poesia que é feita nela. Seu primeiro contato com Pio, recorda-se o compositor e produtor cultural, foi quando ambos trabalhavam na secretaria de cultura durante o governo de Henrique Santillo (1987-1991). Montada por Kleber Adorno, a equipe era “genial” e Brandão e Pio passavam muito tempo juntos: tinham a agenda cheia de viagens para o interior.

“Através desse trabalho conjunto, eu fui conhecendo o que o Pio escrevia, e ele foi conhecendo o meu trabalho e fui conhecendo o dele. Mas de começo, de cara mesmo, já saquei que ele era um cara diferenciado, porque era muito rápido de raciocínio e a poesia dele era muito rápida também: era muito inteligente, muito gostosa de ler. Então, meu primeiro contato com ele foi em 1987”, relembra Brandão.

Antes de flanar por Goiânia com sua poesia, Pio descobriu o prazer da leitura ainda quando residia em Iporá, no interior goiano. Adolescente sem recurso material e afetivo, foi graças a uma professora que adentrou o caminho da literatura, selando uma amizade com o romancista Edivaldo Lourenço, também natural do município interiorano. Em 1986, já na capital, tornou-se devorador de livros, com uma excelente dinâmica de leitura e uma memória invejável, afirma o escritor Ubirajara Galli.

“Seus versos já nasciam praticamente prontos, poucas eram as suas interferências, nos poemas recém-paridos. Sempre comungava seus textos com poetas de uma geração, um pouco anterior a sua, naturalmente, mais experientes do que ele, entre os quais, o Delermando Vieira. Inclusive, a primeira premiação que o Pio obteve no Gremi (o mais importante festival de artes da história de Goiás, então realizado em Inhumas) foi um poema que o próprio Delermando sugeriu-lhe algumas mudanças”, afirma Galli, que assina no DM a coluna “Historiografia Goiana”, às segundas-feiras.

Depois, o próprio Pio começou a se revolver poeticamente. “Quando você é dono de um bom texto, ele cria pernas e anda. Esse era o caso de Pio Vargas. As suas sucessivas e bem-sucedidas incursões pelos concursos literários do Estado, principalmente, os de poesia falada, naquela época fartamente editados em várias cidades goianas, ainda ter sido o vencedor da bolsa de publicações José Décio Filho (1988) e da Hugo de Carvalho Ramos (1990), trouxeram à obra do Pio respeito e admiração.”

Transcende

Para o músico Diego Mascate, que conheceu a poesia de Pio Vargas por meio do poeta e produtor cultural Carlos Brandão no Martim Cererê, Pio transcende uma ideia pré-determinada de “poesia goiana” ou “goianidade”. Diego argumenta que, embora o poeta tenha versos dedicados a Goiânia, como os de “Outubro ou Nada”, a angústia sempre esteve presente em seus temas existenciais e sua irreverência iconoclasta, a exemplo do que é visto em “Edições PN” - “Porra Nenhuma”, coloca-o entre os grande da poesia brasileira.

Brandão me disse que o Pio era um leitor voraz, que gastava boa parte de seu salário com livros. Era um rapaz do interior goiano, de Iporá, que se mudou para a capital e se tornou um agitador cultural e um artista respeitado, que partiu, mas permanece vivo em sua obra aberta (como ele escreveu: “deve haver uma forma de concluir sem finalizar”). Gosto de lembrar que quando Brandão começou a falar de Pio, me dizia que identificava em mim uma inquietude que lembrava ele”, afirma.

"Era um rapaz do interior goiano, de Iporá, que se mudou para a capital e se tornou um agitador cultural e um artista respeitado, que partiu, mas permanece vivo em sua obra aberta (como ele escreveu: “deve haver uma forma de concluir sem finalizar”)"

Diego Mascate, músico

De acordo com Carlos Brandão, em Goiás, é mais ou menos “natural” não ter memória dos artistas e suas inquietudes. “Tô falando dos artistas em todos os sentidos, em todos os gêneros artísticos. Mas quem começou, de repente, lá atrás a fazer música, a fazer literatura, a fazer teatro, a fazer cinema, é visto pelos mais novos como medalhão, panelinha. Aqui em Goiás tem essa coisa também.”

“Os próprios artistas quando começam já começam xingando quem está no mercado há muito tempo e que abriram picadas, picadas que deram essas estradas boas, que hoje estão por aí. Então Goiás parece que é um estado medíocre em termos de pensamento e em termos de não preservar sua memória”, atesta Brandão.

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