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O engenho serra que cortava

Os jornais servem desde o século 19 como instrumento de comunicação para a literatura. No Brasil do Segundo Reinado, Machado de Assis batia perna pelas ruas do Rio de Janeiro atrás de personagens para suas histórias sobre o cotidiano e Nelson Rodrigues, lá pelos idos de 1950, ia de encontro à perversidade humana. Depois, publicavam tudo na imprensa, em folhetim.

Na França, bom, na França Honoré de Balzac e Gustave Flaubert riam da burguesia incipiente que desfilava seu discreto charme (indiscreto, na verdade) pelos salões infestados de endinheirados provenientes da Revolução Industrial. O romance, enquanto gênero literário tal como o conhecemos hoje, estava sendo forjado aos olhos da História.

Viver de literatura, contudo, jamais foi das atividades mais louváveis: o lance era enveredar pelo serviço público ou se assumir como jornalista para vencer na vida, de preferência, sem abandonar a escrita. Foi o que fez Antonio Candido (1917-1997), cuja história é revisitada no documentário “Callado”, produzido em 2017 e que será exibido em evento promovido pela Folha de S. Paulo - filme chega às salas no dia 21 deste mês.

Dirigido pela cineasta Emília Silveira, o longa percorre episódios marcantes não só da carreira de Callado, mas também do Brasil. Nele, entre depoimentos de colegas de Redação como Carlos Heitor Cony e Sérgio Augusto, além de análises feitas pelo jornalista Matinas Suzuki, é possível assistir ser traçado o perfil intelectual do escritor.

Sua produção é vasta: 18 livros publicados, uma biografia, nove peças de teatro e reportagens que marcaram época ao propor recursos narrativos até então comuns à literatura, como a ironia e o uso de imagens que os jornalistas sempre evitaram em suas descrições. Por essa transgressão estilística, em 1994, ele foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. 

“O engenho serra que cortava cana. Não corta mais nada. Não vende mais nada. É uma propriedade privada que enlouqueceu”, escreveu Callado no livro-reportagem “Tempos de Arraes – A Revolução Sem Violência”, obra publicada em 1966.

Óbvio que, sendo um clássico, Silveira não pensou muito ao botou esse trecho com letreiro ocupando boa parte da tela preta. O que suscita um questionamento: por que não trazemos mais técnicas literárias para o texto jornalístico? Por que o exercício da reportagem se tornou preguiçoso, já que os repórteres resolvem tudo por telefone e aplicativos de conversa?  

Na época de Callado não tinha nada disso. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele se tornou conhecido por relatar episódios que marcaram o conflito para a BBC, como bombas atiradas a mando do líder nazista Adolf Hitler sobre Londres, na década de 1940. Nos anos de 1950, viajou a Xingu para encontrar os ossos do Coronel Percy Fawcett. Foi ainda, na década seguinte, ao Vietnã do Norte numa missão que tinha como objetivo mostrar os horrores perpetrados pelos Estados Unidos no front asiático. 

Em depoimento à Silveira, Suzuki explicou que essas coberturas revelaram as qualidades de um escritor a campo usando técnicas que raramente se utilizavam nos textos noticiosos. “A ironia, por exemplo, está presente quase em toda obra literária de Callado e é um recurso que já envolvia um certo segundo movimento sobre o fato que, em geral, não é o que acontece com o jornalismo, que tenta ficar atrelado a ele”.

O jornalista, no início dos anos de chumbo da ditadura, chegou a ser vetado por lei de escrever qualquer linha em jornal e revista, recorda-se Carlos Heitor Cony, outro conhecido por ser perseguido pelo regime fardado assim que o golpe de 64 foi deflagrado pelos militares e um dos “oito da Glória” – time que contava com as ilustres presenças de Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade, ícones do Cinema Novo.

A partir desse episódio, como se vê no início do filme, criou-se um abaixo-assinado internacional, extraído de “Masculino Feminino”, de Godard. O diretor francês, vale ressaltar, é uma influência importante no documentário, sobretudo na escolha estética de Silveira de dar ênfase visual à palavra escrita, instrumento de trabalho e beleza da literatura de Callado, que ele dominava como poucos. 

Além de gerar reflexões sobre a estética literária atrelada ao jornalismo, “Callado” também estimula um olhar atento à própria História do Brasil. Em seus anos de labuta e em todos os jornais pelos quais passou, Antonio Callado ousou pensar a sociedade fazendo questão de levar em consideração as origens indígenas e africanas. Sujeito fissurado na palavra e amante do texto, morreu trabalhando, pleno e sereno.

Até afirmou, em sua última entrevista concedida aos jornalistas Matinas Suzuki e Mauricio Stycer, na Folha de S. Paulo, em janeiro de 1997, que o Brasil era “um país motivo a falsas expectativas”. Imagine se ele visse o País na pandemia...

‘Callado’

Direção: Callado

Gênero: Documentário

Duração: 1h13

Produção: Globo Filmes

Disponível em http://eventos.folha.uol.com.br/http://eventos.folha.uol.com.br/

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