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Antigamente

Se a abertura desta reportagem fosse escrita pelo poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, talvez ele optasse por começar desse jeito: antigamente, as crônicas não morriam até o final do dia e os cronistas eram todos mimosos e muito prendados. Não faziam anos: eles narravam o lirismo do cotidiano de maneira despretensiosa.

É importante esclarecer para o leitor, contudo, que essas frases foram adaptadas do primeiro parágrafo da crônica “Antigamente”, texto publicado por Drummond nas páginas do jornal Correio da Manhã e reunido pelo jornalista Joaquim Ferreira dos Santos na obra “As Cem Melhores Crônicas Brasileiras”, lançada pela Objetiva, em 2007.

Mas infelizmente Drummond não assina o texto de hoje e tampouco eu posso ser alçado ao estafe do poeta: sou apenas um escriba designado a redigir uma matéria jornalística sobre a publicação de obras simultâneas do escritor pela Companhia das Letras que ilustram História do Brasil no século 20, com lirismo e poesia - tudo o que estão em falta hoje em dia.

Nascido em Itabira (MG) em 1902, o poeta foi um burocrata que recorreu à crônica para arcar com as contas no final do mês. Drummond largou a segurança proporcionada pelo funcionalismo público ao ser seduzido pelo incerto mundo da literatura e escreveu em grande escala por três décadas, começando no Correio da Manhã e depois no Jornal do Brasil, com contribuição a este Diário da Manhã, nos anos 1980.

Não foram poucos os textos: mais ou menos de 6 mil. Afinal, o poeta precisava encher a barriga para seguir esculpindo seus versos. Já que, assim como ele, havia Manuel Bandeira, que, conforme relatado pelo próprio, estava com 76 anos e ainda andava de ônibus. Drummond conseguiu se livrar da labuta na imprensa apenas quando chegou aos 80.

Ao mesmo tempo em que redigia crônicas para sobreviver, também escreveu alguns dos melhores versos já feitos na poesia brasileira. “Apesar de Drummond ter se sustentado como o primeiro grande poeta a se afirmar depois das estreias modernistas, não existe limitação que o define como um modernista. Embora tenha herdado as temáticas e estruturas do movimento”, analisa a escritora Júlia Moura.

Um dos lançamentos da série da Cia das Letras é “Moça Deitada na Grama”. Nas crônicas redigidas quando já estava maduro, Drummond propõe um olhar diferente para o Rio de Janeiro e os personagens que habitam a metrópole. É dessa obra, por exemplo, a cena em que o poeta se deleita com a imagem de uma mulher esparramada na grama. “Eu vi e achei lindo. Fiquei repetindo para meu deleite pessoal: 'Moça deitada na grama. Moça deitada na grama. Deitada na grama. Na grama’", disse.

História UPF: 17 de agosto de 1987 - CIAO! Morre Carlos Drummond de Andrade
Obituário de Drummond publicado no Jornal do Brasil - Foto:Reprodução

Para a poeta Lee Aguiar, que assina a coluna “Doce Viagem” no DM às quartas-feiras, os veículos de comunicação se perderam com a tecnologia nos anos 1990 e, se os Manuais de Redação cumpriam a função protocolar de organizar o texto, acabaram burocratizando o ofício jornalístico. Ela afirma que é triste notar que a linguagem poética se tornou restrita apenas à história da imprensa, e não algo permanente.

“É curioso perceber que talvez por ter sido um recurso muito rico nos séculos passados ela era aceita nos jornais, já que não existia muitas formas de se retratar a vida senão com a escrita”, afirma Lee, que escreve também para o Jornal Metamorfose, veículo de mídia independente que procura trazer a poesia para o contexto do jornalismo. “Esses manuais não são somente livros: eles têm o poder de aprisionar a criatividade”.

A crônica drummondiana, assim como a de Rubem Braga, se preocupa em trazer evocações sobre a memória do narrador, apesar das críticas ao estilo do poeta. Ainda assim, é importante ressaltar, o exercício desse tipo de texto, no século passado, estava – para a literatura – como o apertar parafusos está para o labor dos trabalhadores. Ou seja, nada mais era do que uma mercadoria a ser esquecida assim que a leitura findasse. 

Segundo o crítico literário Antonio Candido, em “Vários Escritos'', a obra de Drummond era marcada pelas inquietudes e contava com autonegação do sentimento de culpa. Em outro texto, Candido diz que a crônica, sob vários aspectos, é um gênero brasileiro. “Pela naturalidade com que se aclimatou aqui e pela originalidade com que aqui se desenvolveu”, afirma o estudioso, um simpatizante desse estilo despretensioso de narrativa. 

A quem interessar possa: a série da Companhia das Letras lança, além de “Moça Deitada'', as obras “Confissões de Minas”, “O Observador no Escritório” e outras publicações que mostram a diversidade literária de Carlos Drummond de Andrade. Todas elas podem ser adquiridas nas principais livrarias ou no site da editora. 

Morto no Rio de Janeiro em 1987, Drummond deixou um enorme legado à literatura brasileira. Lembrá-lo nunca é demais.

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