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No ritmo dos dribles

Pelé completa hoje 80 anos e taí uma coisa da qual ele pode se orgulhar à vontade: seus dribles, seus chutes de canhota, seus petardos com o pé direito, suas jogadas, seus gols, suas pancadas em adversários desleais estão na memória da crônica brasileira... E se tornaram também filmes, como “Pelé Eterno” – documentário lançado pelo cineasta Aníbal Massaini Sálvia, em 2004. Mas Edson Arantes do Nascimento – driblando o olhar público desde que uma malfadada prótese na bacia o resignou ao andador e à cadeira de rodas – vive em reclusão. Está deprimido. Pelé entristeceu!

Se fora de campo ele jamais colocou sua popularidade a serviço de causas sociais e se deixou fotografar ao lado de ratazanas da ditadura, nas quatro linhas Pelé brilhou. Foi um artista da bola capaz de provocar momentos de descontração em meio aos aterrorizantes conflitos armamentistas pelo mundo. Sua habilidade levou o escritor Nelson Rodrigues a redigir um dos textos responsáveis por dar ao craque o status de Rei. E a realeza normalmente tem súditos. Eis as palavras do autor de “À Sombra das Chuteiras Imortais”: “Sozinho liquidou a partida, monopolizou o placar”.

No dia 26 de fevereiro de 1958, Nelson estava no Maracanã para assistir o jogo entre Santos e América-RJ. O Peixe bateu o time tijucano por 5 a 3, com quatro tentos anotados pelo Rei. O cronista, então, limitou-se a batucar à máquina: “Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável – a de se sentir rei, da cabeça aos pés”. Um dos mais célebres escritos sobre futebol, a crônica foi publicada em 8 de março de 1958 nas páginas da revista Manchete Esportiva. “Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento”, diz.

Nelson, contudo, não foi o único a rasgar elogios hiperbólicos ao santista. Flamenguista roxo e biógrafo de Mané Garrincha - craque problemático das Seleções de 58 e 62 -, Ruy Castro escreveu que Pelé foi “o jogador mais completo que existiu”. Carlos Drummond de Andrade reconheceu, em “Quando É Dia de Futebol”, que “o difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé”. Já Luís Fernando Veríssimo anotou que “Pelé era bom até amarrando a chuteira”.

Aqui abro um parênteses e tomo a liberdade de acrescentar: até embaixo das traves ele era fora de série. Sim, o craque – como mostra o filme “Pelé Eterno” – teve seu momento de arqueiro.   

No Maraca, como o templo sagrado do futebol é carinhosamente chamado, o Rei desfilou toda sua elegância. Foi nele também que marcou o milésimo gol da carreira, quando 65.157 pagantes assistiram o sacrilégio de um Vasco e Santos truncado, com placar magro de 1 a 1. O zagueiro René, ao contrário do que canta Jorge Ben Jor na canção “Zagueiro”, não limpou a área e cometeu um pênalti. Pelé pega a bola, coloca-a na marca da cal e uma legião de cinegrafistas se prepara para o momento. Com preguiça, a pelota vai parar no fundo das redes. Pelé, enfim, marcou seu gol mil.

Dos tentos não anotados – desculpem, mas não tem como escrever um texto sobre Rei e não mencionar essa gafe do futebol –, talvez o mais famoso deles seja aquele petardo dado do meio-campo na partida contra a Tchecoslováquia, na Copa de 70. Até hoje a tentativa ficou conhecida como “o gol que Pelé não fez”. Ainda assim, o desastre não ofuscou a habilidade infernal, a rapidez e a leitura de jogo que simplesmente lhe credenciaram como o melhor de todos os tempos. Messi e Cristiano Ronaldo estão a léguas de distância. Talvez só Maradona chegue pertinho. Pouco importa.

Porque o Rei, verdade seja dita, se viu perdendo a majestade em certas situações. Deixou-se seduzir pela metrópole do dinheiro e entretenimento quando assinou contrato com o NY Cosmos, chegando a frequentar a Casa Branca na época de Ronald Reagan e fazer pontas em filmes - nada mal para o mineiro de Três Corações que se fez um sujeito do mundo. Em sua vida, sobrou também comentários constrangedores sobre política, racismo e futebol – o que chega a ser contraditório, já que o milésimo gol dele foi dedicado às “crianças desafortunadas”.

Bem ou mal, Pelé é Pelé - e representa a época de ouro do futebol brasileiro.

Para conhecer Pelé

‘Quando É Dia de Futebol’

Escrita pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, a obra reúne crônicas e poesia publicadas em jornais como Correio da Manhã e Jornal do Brasil em época de Copas do Mundo. As descrições sobre Pelé dão dimensão acerca do talento do craque com a bola nos pés. 

‘Os Garotos do Brasil’

Jornalista com passagem pelas principais Redações do País, Ruy Castro passeia pela memória afetiva proporcionada pelo futebol. A crônica “Carnaval em Julho”, sobre a conquista da Copa de 58 com show de Garrincha e Pelé, fala sobre o Rei e seu talento infernal. 

‘À Sombra Das Chuteiras Imortais’

Compilado de crônicas sobre futebol escritas por Nelson Rodrigues, a obra conta com o texto responsável por criar a alcunha Rei, usada até hoje para se referir a Pelé. O livro tem também comentários hiperbólicos sobre as Copas de 58 e 70 - nas quais o craque brilhou.

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