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A verdade enfática do corpo no cinema de Claire Denis

Ensaio de Lucas Wagner Nunes, pesquisador e cineasta goiano em reflexão à estética de Claire Denis.

Aproximar-se do cinema de Claire Denis pode não ser simples. Suas temporalidades estranhas, silêncios, deslocamentos muitas vezes confusos, podem repelir o olhar daquele que começa uma sessão no esforço de compreender. Isso acontece porque a postura que sua obra pede é outra: é uma de calma e abertura.

Pede que se solte em um fluxo sensorial no qual sentidos brotam e desfalecem, apenas para renascer em novos sentidos igualmente provisórios. É uma atitude que vai na contra mão do padrão da vida capitalista contemporânea, em sua pressa de extrair significados para desenvolver modos eficazes de agir e olhar. Aqui, se pede brecha para um fluxo afetivo que obedece a leis mais fluidas.

Existe uma trama logicamente organizada em cada filme, mas ela está sempre por trás de uma organização sensorial difusa. Seu cinema funciona como blocos de impressões e sensações. O fluxo de matéria movente, o próprio reposicionar dos elementos em um estado de coisas que se atualiza. Muitas vezes, esses estados de coisas funcionam como espaços quaisquer lançados no avulso, seus personagens deambulando no vazio absoluto que tornam nulas suas ações (Minha Terra, África; O Intruso; Sexta Feira à Noite; Deixe a Luz Entrar).

Mas é o próprio movimento, o impulso afetivo que orienta o olhar da diretora. É no corpo dos atores e dos objetos o local de onde o sentido se inscreve e escapa a todo momento, extraído unicamente a partir de sua presença, hora traçando um desenho coeso e logo depois (re)aberto ao caos informe.

É um cinema do corpo. Não existe a crença no poder da câmera de penetrar camadas de subjetividade e dar conta da alma daqueles seres. Para Denis, corpo é alma, não há distinção. O que a câmera pode fazer é contemplar. E nesse olhar, ela não vai adentrar os seres e extrair explicações dramáticas. Interessa mais como esses corpos agem e reagem aos movimentos de outros corpos, sem intencionalidade psicológica que dê conta desses processos. Mas Denis não se distancia para olhar. Pelo contrário: se adere, se mistura aos corpos. Ao contrário do que se pode pensar, ela não usa lentes teleobjetivas para se aproximar.

Salvo raras exceções, usa lentes normais, entre 40mm e 50mm. Não menos, pois a deformação grande-angular está longe de ser seu objetivo, e não mais, pois não faz sentido se afastar dos corpos para chegar mais perto. Se Godard já dizia que um travelling é uma questão moral, a escolha de lentes tem uma dimensão ética. Denis pode não querer impor uma ordenação cartesiana ao movimento daqueles corpos, mas se adere a eles para acompanhar seu fluxo. O fluxo, por si mesmo, contém histórias.

Essa postura se reflete na encenação. Para Denis, encenar é mais uma questão de posicionamento de câmera do que de marcação ou ordenação dos atores. Determina-se com Agnès Godard (diretora de fotografia frequente em seus filmes) os limites da movimentação de câmera e iluminação. A partir daí, o espaço é todo dos atores, e é sua presença física que Denis almeja. Como esses tomam o espaço, agem e reagem ao movimento de outros corpos. Não é por acaso que trabalha constantemente com atores e atrizes específicos, pois já compreende a força que brota deles. Michel Subor, ela mesma diz, é como um buraco negro, sugando toda a energia ao seu redor. Alex Descas, com seu rosto duro e gestos firmes, não exterioriza emoções, mas transmite a profundidade de um sentimento. E muito mais poderia ser dito de Béatrice Dalle, Juliette Binoche, Grégoire Colin, Vincent Gallo, entre outros.

A câmera na mão, além de imprimir certa energia ao enquadramento, faz dela uma personagem. Sem amarras mecânicas, pode se mover como corpo livre pelo espaço, se aproximando ou se afastando dos atores. É interessante que a diretora admita que não lida bem com o improviso. Sua encenação se posiciona na fronteira turva entre o espontâneo e o orquestrado.

Ao se posicionar fora do corpo, porém aderido a ele, Denis assume a impermeabilidade trágica de seu olhar. E respeita esse que é, acima de tudo, um mistério da própria intimidade, seja de um corpo consigo mesmo ou com outros. É o enigma do sensível que se inscreve no balé de corpos contemplado por Denis. Com sua câmera tátil, Denis assume um fascínio por essa intimidade inescrutável e sua fragilidade inerente. Chega perto e abraça a matéria bruta inarticulada dos afetos, as tensões à flor da pele, que não podem ultrapassar essa última barreira epidérmica pois as consequências poderiam ser desastrosas.

Talvez por isso que a dança tem um lugar privilegiado no cinema de Claire Denis. Narrativa física por excelência, o dançar assume um lugar de liberdade, onde os corpos se movem ao som de seus ritmos internos sem riscos de consequências. Ela não é a possibilidade de articulação verbal dos tumultuosos universos privados, mas são espaços de ruptura. Nisso, elas funcionam como monólogos possíveis: esses corpos dizendo de si sem as artimanhas do verbo. Quando Allain (Grégoire Colin) em U.S. Go Home, ou Galloup (Denis Lavant) em Bom Trabalho, dançam à músicas pop contempladas em toda sua duração é porque esse momento é a explosão súbita e libertária que tiveram que manter entocadas, e são os discursos pessoais mais genuínos possíveis. O mesmo vale para momentos similares em Deixe a Luz Entrar, High Life, Dane-se a Morte, entre outros. Em uma chave diferente, a dança também tem lugar privilegiado enquanto espaço onde as narrativas dessas relações podem se expressar de maneira fluida, não-verbal, rearticulando as tensões ou mesmo dando conclusões a conflitos longamente abastecidos. 35 Doses de Rum é um exemplo ideal: a dança que ocorre no bar entre os quatro personagens principais, as maneiras como os corpos se tocam e se trocam, faz surgir na própria tensão epidérmica todos os processos decisórios tão difíceis de serem tomados e que representam o mote do longa.

Mas não é só de corpos que se seguram em seus limites que é feito o cinema de Claire Denis. Sua obra está sempre se voltando ao tema da invasão de fronteiras, que podem ser nacionais, geográficas ou físicas. Corpos que não se permitem ser tocados, barreiras intransponíveis que são atravessadas à força. O Intruso é um filme, literalmente, de intrusão em todas suas facetas, e não é a toa que a cineasta opta pelo uso do Cinemascope como formato de imagem. O retângulo largo do scope pôe nosso olho em constante busca pelo elemento invasor, por algo que talvez esteja logo atrás da linha do enquadramento. Às vezes a poucos passos dos personagens. O Cinemascope também é usado, com finalidades muito parecidas, em Minha Terra, África. Nesse filme, a pele branca e não maquiada de Isabelle Huppert se machuca e desgasta ao sol, ficando com um tom que se parece com a terra vermelha que cobre tudo. Corpo humano e terra se tornam uma única coisa, e quando os rebeldes invadem essa terra, invadem também o corpo da protagonista. Bom Trabalho é, em suma, uma história onde admiração, tesão e inveja se confundem numa lógica onde a invasão do outro, fazer parte dele, consumi-lo ou destruí-lo seja a mesma coisa.

É um cinema de desestabilização de fronteiras, e isso faz muito sentido se tomarmos sua obra dentro do contexto pós-colonialista onde ela se inscreve. Boa parte das tensões surgem de conflitos sub-reptícios ou explícitos que trazem as marcas da História. Nos filmes de Claire Denis, um negro é um negro, um branco é um branco, um imigrante é um imigrante, e essas barreiras nunca se desfazem, ainda que ressignificadas. Mas o olhar da cineasta vai muito além das pautas políticas que adornam a parcela do cinema contemporâneo que lota festivais. Longe da ideia do lacre, Denis complexifica ao máximo as coordenadas morais e políticas dos universos que contempla. Personagens “canceláveis” são trabalhados com curiosidade e respeito pela diretora, numa atitude humanista rara ao cinema contemporâneo, tão preocupado em ser “politicamente relevante”. Não que a diretora os defenda impunemente, mas os respeita. Ao dedicar Minha Terra, África à sua própria protagonista, Denis não o faz por ser sua personagem uma mulher branca proprietária de terras na África, mas por um carinho ao observá-la em suas contradições.

Ao chegar tão perto de seus personagens, dissolvendo-os entre si e seus entornos materiais/ambientais, Claire Denis atravessa a última fronteira de todas: a que existe entre fantasia e realidade. É a própria plasticidade do cinema que insere a possibilidade do fantástico: um corpo dança em um espaço avulso fora do tempo (Bom Trabalho); objetos se movem sozinhos (Sexta Feira à Noite); um corpo se dissolve no jardim que deu significado ao final de sua vida (High Life); paisagens alucinatórias e apocalípticas (Minha Terra, África); sonho e vigília se tornam indiscerníveis (Nenette e Boni; Minha Terra, África; Chocolat; Sexta Feira à Noite).

Gilles Deleuze já dizia: “É o naturalismo. Este não se opõe ao realismo, mas, ao contrário, acentua seus traços, prolongando-os num surrealismo particular”. Nessa chave, é possível compreender a razão de muitos chamarem seu cinema de prismático: sua câmera refrata a luz do estado de coisas e o decompõe em cores várias. Como um sonho faz com a experiência cotidiana, ou como acontece com a experiência pura antes de olharmos para ela novamente e analisa-la. A obra de Claire Denis nos convida ao susto antes da consciência.

Voltando àquela veia que pulsa no braço de Galloup em Bom Trabalho: toda a essência do olhar de Claire Denis está nesse plano. A vida que briga contra a carne para, em última instância, se aderir a ela na dança louca que explode para além da vida. Não há nada sem carne. Tudo está nos sentidos. Banhemos no fluxo sensorial do cinema de Denis e louvemos nossos sentidos.

Texto: Lucas Wagner Nunes

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