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CULTURA

A cálida voz da Zimbabwe novecentista

Guilherme Moura, estudante de letras e pesquisador, discorre sobre questões referentes à literatura africana

A literatura africana sempre ocupou um espaço subalterno na produção literária internacional, posição que é reflexo do apagamento histórico marcante no processo colonial, persistente até os dias de hoje. Porém, vislumbrar o território africano como um local de riqueza e diversidade sociocultural é o ponto de partida para repensar o cânone e dar visibilidade a uma literatura de grande valor. Esse percurso da exclusão remonta ao mito da superioridade étnica, construção iconoclasta do branco europeu e caminho importante para a consolidação do mercantilismo.

Na África novecentista, a ressonância da exploração colonial e do imperialismo presente intensifica a desigualdade social em consideração à população mundial. A divisão internacional do trabalho a situa numa posição de omissão e indecisão nas principais decisões econômicas a nível global; esse cenário indica uma persistência nos baixos números do Índice de Desenvolvimento Humano e em outras fontes de análise, como saúde, saneamento básico e alfabetização.

Nesse panorama, a arte se debruça por questões socioideológicas e busca retratar as guerras civis e os conflitos internos e externos do sujeito, imerso na efervescência política africana, nas fronteiras europeias e nas consequências de uma história marcada por exploração e silêncio. A literatura segue a mesma proposta e procura materializar em sua tradição uma voz que ecoa contra a centralização política e a divisão social do capitalismo financeiro. Com linguagem impactante, a produção de Dambudzo Marechera (1952-1987), romance e poeta zimbabuense, revela algumas das mazelas de Zimbabwe, seu país natal. Seu estilo apela, impetuosamente, às denúncias de um território devastado pela miséria e pela falta de assistência à saúde e à educação.

Na antiga Rodésia do Sul, Marechera publica sua obra mais conhecida, The House of Hunger (A Casa da Fome, numa tradução literal), em 1978, coleção de curtas narrativas autobiográficas sobre a repressão do governo de Ian Smith, após a independência do país, aflito entre a pobreza e a corrupção. Embora pouco conhecida mundialmente, a obra de Marechera é uma grande admiração aos jovens leitores de seu país, que almeja uma sociedade mais equiparada. Apesar da vida curta, de apenas 35 anos, vivenciou a discriminação étnica e a violência africana em seus níveis mais variados com forte resistência, sendo expulso da Universidade do Zimbabwe e da Universidade de Oxford por participar de movimentos eufóricos contra a desigualdade em seu continente.

Há um dissidente na sopa eleitoral!

[...]

A lua não vai baixar

Primeiro desajeitada, lancinante de constrangedora

Mas com Vênus ascendendo, grito e pulo de alegria

Quando os lençóis estão finalmente em silêncio

Não pergunte "O que você está pensando?"

Não pergunte "Foi gostoso?"

Não se sinta mal porque estou fumando

Os inseguros perguntam se sentem mal

Que dizem depois do ato

"Me conte uma história"

E você já deve saber bem

Não fale em casamento se quiser essa reconciliação

Venha a durar

(MARECHERA, Dambudzo. Cemetery of Mind, 1947)

Com ironia e linguagem popular, Dambudzo Marechera satiriza a sociedade zimbabuense nas inúmeras esferas que a compõem. O acervo deixado pelo poeta é fonte para reconhecimento da Zimbabwe novecentista, bem como de seus problemas socioeconômicos e sua inscrição na África resignada e na intensa globalização entre os demais continentes.

Texto: Guilherme Moura

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