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Documentário que retrata prisão de Caetano Veloso na ditadura é selecionado para Festival de Veneza

“Vão ser necessários anos e anos para se entender o que se passou”, atestou o sociólogo Edgar Morin ao referir-se a geração que amava Beatles, Stones, Godard, Ginsberg, Glauber, Gil e Caetano. De todos os intelectuais que escreveram no calor do momento, sentenciou o jornalista Zuenir Ventura em seu livro-reportagem “1968: O Ano Que Não Terminou”, apenas o francês estava certo. Já se passaram 50 e tantos anos, e 68 ainda continua uma obra em aberta – para citar uma expressão do filósofo Umberto Eco. Mas – seria o caso de fazer um adendo – pode-se romantizá-lo à vontade, desde que não o veja como uma santidade na História.

Eis 68 no Brasil: como se estivessem diante do perigo, 14 dias após a deflagração do AI-5, agentes à paisana retiraram de suas casas Caetano Veloso e Gilberto Gil, em São Paulo. Sem lhes darem explicações, a dupla foi levada para o Rio de Janeiro, onde foram parar numa solitária por uma semana e depois transferidos para celas. Os jornais, já submetidos à censura prévia a essa altura, foram impedidos de falar sobre a prisão dos artistas. “Me lembro muito de uma frase que o Rogério Duarte me disse logo que eu fui solto: 'Quando a gente é preso, é preso para sempre'. Acho que é assim mesmo”, afirma Caetano, em “Narciso de Férias”.  

Narciso em Férias - 2 de Setembro de 2020 | Filmow
Caetano Veloso em cena do documentário 'Narciso de Férias' - Foto: Divulgação/ Primeiro Plano

O documentário, com direção de Renato Terra e Ricardo Calil, os mesmos de “Uma Noite em 67” (2010), foi selecionado nesta terça-feira (28) para participar do 77º Festival de Veneza, um dos mais importantes do mundo. A mostra acontece entre os 2 e 12 de setembro deste ano. Será o primeiro em formato presencial desde que a OMS decretou estado de calamidade pública por causa da pandemia de coronavírus. Escrito e dirigido por Terra e Calil, o longa-metragem foi realizado pela produtora Paula Lavigne e coproduzido por Walter Salles e João Moreira Salles.

“A beleza deste filme está na maneira como Caetano Veloso, o artista em questão, hoje com 77 anos, é capaz de nos levar de volta àquela cela e nos fazer partilhar da impotência do rapaz preso. A simplicidade da encenação - um homem sentado de pernas cruzadas diante de uma parede de concreto, nada mais - dá voz ao essencial, uma escolha ao mesmo tempo estética e moral. Diante da violência, qualquer excesso seria injustificado”, diz João Moreira Salles. “Este é um filme sobre o Brasil de antes e talvez de amanhã. Os fantasmas continuam entre nós.”

Caetano narra o período mais duro de sua vida e reflete sobre os 54 dias em que passou enclausurado no xadrez da repressão. O título do filme foi retirado do romance “Verdade Tropical”, do escritor norte-americano F. Scott Fitzgerald, e refere-se ao fato de o cantor ter ficado quase dois meses sem poder se olhar no espelho. "Eu tinha que comer ali no chão mesmo. Isso durou uma semana, mas pareceu uma eternidade. Eu comecei a achar que a vida era aquilo ali. Só aquilo. E que a lembrança do apartamento, dos shows, da vida lá fora era uma espécie de sonho que eu tinha tido”, recorda-se, no longa, o autor de “Alegria, Alegria”.

Narciso em Férias', Caetano Veloso relata sua prisão durante o AI ...
Nos anos de 1960, Caetano era um dos idealizadores do movimento tropicalista - Foto: Divulgação/ Primeiro Plano

Na prisão, o compositor recebeu a vista de sua então esposa Dedé, com um exemplar da revista Manchete. A publicação continha fotos inéditas da Terra vista do espaço, inspirando que o cantor criasse a música “Terra” dez anos depois. Da experiência no cárcere e com saudade dos entes queridos, Caetano compôs a canção “Irene”, em homenagem a risada da irmã mais nova. “Eu quero ir, minha gente, eu não sou daqui/ Eu não tenho nada, quero ver Irene rir/ Quero ver Irene dar sua risada”, escreveu o compositor. Em 1969, junto com Gilberto Gil, Caetano rumou para o exílio. De lá, fez o disco “Transa” (1973), com trechos em inglês.

Veneza

O roteirista Renato Terra diz que duas pessoas tiveram papel fundamental no processo de produção de “Narciso de Férias”: o coprodutor João Moreira Salles e a produtora Paula Lavigne. “Conheci o João há 12 anos e, por causa dele, convivi com Eduardo Coutinho. Cada decisão que tomei no projeto veio desse aprendizado com João e Coutinho. A Paula teve a iniciativa do filme e, desde o convite, apoiou todas as decisões que tomei, confiou, me deu confiança”, afirma o documentarista. “Narciso de Férias”, continua, respeita cada palavra, memória, gesto e silêncio de Caetano. “Agora, queremos mostrar isso para o mundo.”

Já o diretor Ricardo Calil afirma que está feliz e honrado por ter conseguido levar a trajetória do cantor e compositor Caetano Veloso para o Festival de Veneza. “É um evento histórico que pode apontar como será o cinema nessa nova realidade. Para nós, faz todo sentido que a estreia seja lá”, relata o cineasta. Ele lembra ainda que “Narciso em Férias” tem a preocupação em mostrar como um foi um períodos mais sombrios da História do Brasil. “O filme que fala do passado do Brasil, por meio das memórias de Caetano Veloso sobre sua prisão na ditadura, mas também tem muito a dizer sobre o presente do país", explica o diretor e roteirista.

Paulo, o intelectual de “Terra em Transe”, Paulo Martins, protagonizado por Jardel Filho alfineta com militares com seus comentários mordazes. “Não acreditava em sonhos e mais nada. Apenas a carne me ardia e nela eu me encontrava”, diz o poeta e jornalista. Lançado em 1967, o clássico do cinema novo, de fato, explica o que sentiu o tropicalista durante aqueles dias de cárcere no calabouço da ditadura civil e militar. Caetano, assim como Glauber, é um diamante da cultura brasileira e seu legado, suas histórias e suas músicas precisam ser mantidas vivas na memória da população. Torcendo para “Narciso de Férias”.

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