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CULTURA

A fé afro-brasileira

Ofensas, ofensas, ofensas... O pomposo aparato de difamações que acompanha a cultura religiosa afro no Brasil ganha força no universo brasileiro. Sob a retórica punitivista, uma teocracia endinheirada gerida por profetas cristãos/evangélicos chafurda pensamentos que, vejam só, creiamos estar superados na sociedade pós-moderna do século 21, das liberdades religiosas e de expressão. Em tese, deveria. Mas não, não está. O pentecostalismo, ou neopentecostalismo, com o apoio de aparatos midiáticos, elegeu há tempos como inimigo cultural e político os cultos afro-brasileiros. Trata-se de uma ojeriza à felicidade e à beleza.

Tal horror à liberdade não é por acaso. As seitas evangélicas são o símbolo inverso do candomblé: de origem européia, branca, guiadas por um livrinho antigo, cujo linguajar é arrevesado e seus fiéis submetidos aos temores de um ser supremo, todo poderoso, que pune, vinga e castiga. Pela ótica cristã, somos ameaçados pelas chamas do fogo do inferno. Nossas vidas privadas são legisladas, julgadas e oprimidas. As necessidades, desejos e impulsos sexuais são reprimidos. As mulheres amaldiçoadas. Em nome de quê? De um lugar ao céu, do lado de Deus. E da hegemonia política e cultural, como atesta a historiografia.

Fotografia analógica de Júlia Lee sobre escultura de Yemanjá (rainha dos mares no Candomblé) na casa de Zélia Gattai e Jorge Amado, em Salvador (BA) - 2020

Antropologicamente, o Candomblé formou-se no Brasil no período da escravidão. Os escravocratas mandavam trazer para o outro lado do Atlântico mão de obra que, além de ser explorada na desumana e trágica labuta diária, detinha valores culturais que foram anexadas à formação do País. Valores esses, é bom lembrar, que eram censurados pelo catolicismo - em voga no momento - que proibia os rituais oriundos da África. A mordaça da fé encontrava amparo no Império Português. Séculos depois, pouco mudou. Terreiros são atacados, mães de santo, agredidas, fieis, ameaçados e, não raro, mortos. No Brasil, pelo menos a cada 15 horas um relato policial é registrado por intolerância religiosa – quase sempre uma mão de única via.

No ano passado, chegou-se ao ponto de alorixá Regina d’Yemanjá, líder do Axé Opô Afonjá, que há 132 anos atende em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, desistir de promover cultos noturnos por insegurança. Usar branco? Não é seguro, orientou ela aos fiéis.  Os mitos do candomblé são muitos, extensos, complexos e minuciosos. Guardam, em sua essência, um sentido densamente poético da vida, do mundo e existência humana. Não tem pretensão de fazer os fiéis acreditarem neles ao pé da letra, fantasiando, por exemplo, a existência de um deus primordial, de barbas brancas, como criador do universo.

Ritual de Candomblé, na Bahia - Foto: Reprodução

A beleza que faz parte do Candomblé deixou o sociólogo francês Roger Bastide impressionado quando esteve na Bahia na década de 1950. Bastide celebrou a autoridade moral das mulheres nas ilhas repressoras do continente patriarcal. “Se, por um lado, sacerdotisas têm poder absoluto sobre o conjunto de fiéis”, escreveu o sociólogo (em “O Candomblé da Bahia”, obra lançada em 1958), “por outro lado têm também obrigações para com eles, tanto de assistência pecuniária quanto moral, o que torna os candomblés verdadeiras sociedade de socorro mútuo, de auxílio fraterno, que mantêm o espírito fraterno africano”, atestou. O estudioso, ao botar os pés de volta no Velho Mundo, tinha algo a falar: era sobre uma religião libertária.

Para arrematar, os evangélicos podem consultar sem esforço seus guias espirituais numa lista que seria digna de ser publicada no top five dos endinheirados da Forbes. Edir Macedo, Valdemiro Santiago, Silas Malafaia, RR Soares, o casal Estevam Hernandes e “bispa” Sônia são algumas das figuras pentecostais que mercantilizaram a fé cristã e deixaram os verdadeiros adeptos dos ensinamentos de Jesus Cristo com lágrimas à mostra. Fico, eu confesso, tá bem, com essas personalidades: Jorge Amado e Zélia Gattai, Jorge Mautner, Martinho da Vila, Maria Bethânia. Porque eles sabiam que o candomblé é uma celebração da vida, e não da morte.

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