Home / Cultura

CULTURA

'Escândalo' abrasileira blues com dor de cotovelo

Angela Ro Ro estava predestinada a virar freira, mas não teve jeito, e lhe restou apenas se render ao blues, às biritas e às mulheres. A meio caminho entre Janis Joplin, Nina Simone e Maysa, a cantora foi pioneira em assumir que era homossexual num Brasil careta comandado pelos fardados. Sua obra é versátil, passeia pelo samba-canção dor de cotovelo e transita com desenvoltura pela bluseira dilacerante e as derivações do gênero, como rhythm ´n´blues, rock e jazz. A cornitude da chanson francesa de Jacques Brel e a música de prostíbulo alemã eternizada por Kurt Weill compõem a seleta musicalidade da cantora carioca.

As letras de Ro Ro retratam uma persona intensamente boemia e declaradamente lésbica. Questões amorosas são abordadas de maneira rasgante e com humor corrosivo. No disco “Angela Ro Ro”, clássico da música de fossa brasileira lançado em 1979 pela Polygram, a cantora apresenta uma identidade dramática e sensual que remete o ouvinte às músicas de Maysa, parodiando-a a partir de recursos que vão da risada escrachada ao estado de embriaguez etílico e sonoro. Com a rainha suprema do samba-canção, gravara a canção “Demais”, onde atualiza o perfil maldito de sua predecessora ao mundo pós-moderno.

Angela Ro Ro no Rio de Janeiro em 2012 - Foto: Lipe Borges/ Reprodução

Ro Ro passou a ser reverenciada pelo blues “Amor, Meu Grande Amor”, parceria sua com a compositora Ana Terra, que faz parte do lado A do LP “Angela Ro Ro”. “Amor, meu grande amor, não chegue na hora marcada”, diz a musa da cortinute da boêmia carioca. A voz aguda da cantora é acompanhada por um riff de guitarra e por um piano que não deixam nada a desejar ao som da norte-americana Etta James. No outro lado, a faixa “A Mim E A Mais Ninguém” - com as frases de guitarra bebendo na melhor tradição da bluseira americana - fala sobre amores rasgantes, sentimentos cortantes e paixões avassaladoras.

“Eu sei que o tempo vai passar, e as coisas vão ficar, porque acredito em mim, e o tempo passa a flutuar, e a chance de eu ficar, depende só de mim”, canta Ro Ro. Haja dor, haja lirismo, haja amor! No entanto, o álbum mais vigoroso da primeira fase da carreira da cantora é o LP “Escândalo”, lançado em 1981 pela gravadora Polygram no selo Polydor Records. A primeira música vai no caminho dos estilos presentes em “Só Nos Resta Viver”, de 1980, e “Angela Ro Ro”, do ano anterior. “Eu quero uma cruz de pinho selvagem, alguma bebida pra me dar coragem”, diz a cantora na segunda estrofe de “Perdoai-os Pai”.

Na sequência, vem o groove levemente suingado de baixo de “Came e Case”, que Ro Ro assina letra e música. “Esse tempo, pouco, louco de amor... Que você me dá, que você me dá... Que nem dá pra prestar muita atenção...”, declama a cantora. A música segue a mistura avassaladora entre o samba-canção de Maysa com a pegada blues de Janis Joplin. Em seguida, o triunfo do disco: “Escândalo”, de autoria de Caetano Veloso, canção que parece ter sido escrita sob medida para a cantora. O lado A do LP finaliza com “Na Cama”, um clássico blues harmônico. “Por dentro do vestido, eu guardo um corpo infernal”.

Capa do primeiro LP da cantora - Foto: Reprodução

As notas baixas, típicas do blues, duram pouco mais de três minutos. Na primeira faixa do lado B, o riff de guitarra de “Vou Lá No Fundo” anuncia o universo da safadeza noturna do início dos anos de 1980. “Vou lá no fundo, sou vagabundo, meu preço é caro, mas vem que eu te quero”, berra a cantora, acompanhada de backing vocal. Já “Perco o Rumo” é em baixa intensidade sonora, mas a letra segue na premissa da dor de cotovelo. “Fico louca, tiro a roupa, me aqueço, não te esqueço”. Na terceira música, “Fraca e Abusada” dispensa a matéria-prima do blues e do samba-canção, dando lugar a um sambão clássico carioca.

O disco caminha para o fim com uma canção guiada pelo piano de Ro Ro. Os versos, cheios de lirismo, leveza e elegância, falam sobre liberdade. “Já estou solto passarinho, juro vou te soltar também, abra as asas pequenino, eu abro também”, diz a cantora, com um agudo em vibrato, no refrão. “Mistério”, a última faixa do disco, vai pelo mesmo caminho: “que mistério é esse, que você tem, que quando você sofre, eu não passo bem, minha boca que eu amo, eu mordo até sangrar”, declama, numa voz leve, suave, sem esforço e bastante natural. De fato, “Escândalo” é um dos grandes clássicos da rainha do blues brasileiro. Basta.

Ficha técnica

‘Escândalo’

Autora: Angela Ro Ro

Gênero: Blues e samba-canção

Gravadora: Polygram

Disponível nas plataformas de streaming

Leia também:

  

edição
do dia

Capa do dia

últimas
notícias

+ notícias