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'Leia Mulheres' discute obra de Maria Carolina de Jesus

Em 1958 o jornalista Audálio Dantas (1929-2018) estava na favela do Canindé, em São Paulo, apurando uma reportagem sobre um parque infantil para o extinto Folha da Noite, no momento em que se deparou com uma mulher negra, de 44 anos, aos berros. Ela ficara indignada com marmanjos que não deixavam as crianças brincarem em paz. “Vou botar o nome de todos vocês no meu livro!”, ela disse, de acordo com Audálio em “Tempos de Reportagem”, obra lançada em 2012 pela editora LeYa. Aos poucos, narra o jornalista, eles foram se esgueirando. “Um deles xingava, entre dentes: - Cala a boca aí, puta veia”, conta.

Curioso, como todo bom repórter, Audálio foi atrás da mulher e deu de cara com uma escritora: Maria Carolina de Jesus, que se tornaria mundialmente conhecida pela obra “Quarto de Despejo”, um clássico da literatura brasileira. “Não demorou para Carolina virar celebridade internacional. Jornais e revistas mais importantes do mundo abriram espaço para a novidade, entre os quais Time, Life, Paris, Match, Le Monde”, relata o jornalista. A Time, uma das revistas mais prestigiadas do mundo, mandou um enviado especial ao Brasil. “Carolina começou a ser consumida. Era uma excitante novidade”, lembra o jornalista.

A escritora Maria Carolina de Jesus e o jornalista Audálio Dantas - Foto: Reprodução/ Acervo Histórico

Lançado em 1960, o livro ultrapassou a marca de 80 mil exemplares vendidos no Brasil, um best-seller até para os padrões atuais. Na obra, Carolina contava sua vida desde quando deixou Sacramento, no interior de Minas Gerais, aos 17 anos, para ir morar em São Paulo. Trabalhou como empregada doméstica e, quando Audálio a encontrou, era catadora de papel. O título surgiu de uma frase da própria Carolina: “A favela é o quarto despejo da cidade”. De certo modo, a escritora foi a precursora das revelações literárias que saem das favelas das grandes cidades, como os poetas do slam que invadiram a Flip no ano passado.

Com o objetivo de difundir a literatura produzida por mulheres, o projeto Leia Mulheres inicia suas atividades neste ano com debate sobre o livro “Quarto de Despejo”. “Damos as boas-vindas com a discussão de um dos livros mais importantes já escritos”, disse em suas redes sociais a organizadora Maria Clara Dunck, doutoranda em literatura pela Universidade Nacional de Brasília (UNB) - o evento ocorre hoje, às 19h, na Livraria Palavrear, no Setor Leste Universitário. “É uma forma de homenagear sua contribuição e reafirmar o papel da literatura como resistência a políticas autoritárias e excludentes”, afirma.

Livraria Palavrar: o local recebe com frequência eventos literários - Foto: Reprodução

“Em tempos de censura e ataque à cultura, é preciso relembrar a luta de quem muito contribuiu para a descolonização da arte: os grupos periféricos e as pessoas de cor”, analisa Maria Clara. De acordo com ela, Carolina de Jesus rompeu com a tradição elitista da literatura e, por isso, é representada por jovens que vêm das periferias nos festivais de slams Brasil afora. “Os diários apresentam a rotina massacrante de uma mulher cuja condição de vida foi durante muito tempo ignorada, mas tamanha é a sagacidade da autora que se tornou impossível se desviar de sua denúncia”, aponta a estudiosa.

Longe dos holofotes

Chateada com o insucesso de suas obras seguintes, Carolina resolveu romper com Audálio Dantas e passou a criticá-lo no livro “Casa de Alvenaria”. “Eu queria ir para o rádio, cantar. Fiquei curiosa com a autoridade do Audálio, reprovando tudo. Dá a impressão de que sou sua escrava”, reclamou a escritora. Em 1961, ela lançou um disco com composições de sua autoria. Anos depois, próximo do fim da vida, mudou de opinião sobre o jornalista. “O Audálio foi muito bom, muito correto comigo, eu sempre acreditei nele”, disse Carolina de Jesus, na última entrevista que concedeu ao jornal Folha de S. Paulo, em 1976.

Na matéria que abre “Tempos de Reportagem”, Audálio Dantas relata que a escritora recebia convites de membros da alta sociedade paulistana e, como ele tinha compreensão do que isso de fato significava, tentava alertar a escritora. “Ela recebia convites de um Matarazzo, recebia convites para falar em faculdades, para visitar o Chile, para frequentes a sociedade e dezena de propostas de casamento. Mas eu achava que ela não deveria entrar neste esquema, porque não era uma coisa natural. Porque as pessoas a procuravam como uma pessoa de sucesso e a viam como um animal curioso”, escreveu o repórter.

Depois do enorme sucesso editorial, Maria Carolina de Jesus morreu pobre e isolada num sítio, em fevereiro de 1977, aos 62 anos. Mesmo com todo o reconhecimento dos críticos literários mais renomados do mundo, a literatura dela entrou em hiato entre as décadas de 1970 e 1990, voltando a ser debatida apenas quando os pesquisadores brasileiro José Carlos Sebe Bom Meihy e norte-americano Robert Levine publicaram pela editora da UFRJ o livro “Cinderela Negra: A Saga de Carolina Maria de Jesus” e editariam juntos duas coletâneas de textos inéditos da autora.

Serviço

‘Leia Mulheres’ discute ‘Quarto de Despejo’

Quando: hoje

Horário: a partir das 19h

Onde: Livraria Palavrear

Endereço: R. 232, 338 - Setor Leste Universitário, Goiânia

Informações: (62) 3086-3204

Entrada Franca

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