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CULTURA

Como a contracultura influenciou a imprensa alternativa

Na década de 1960, o Brasil vivia o começo da ditadura, e nos jornais da chamada grande mídia a manchete era quase a mesma: o País estava dominado por comunistas. Seja na música, na literatura, no cinema, no teatro ou no jornalismo. Sem distinção, todos pregariam a degeneração da família, a permissividade sexual, o fim da moral e dos bons costumes. Era preciso, segundo a ótica dos milicos, uma faxina que retomasse a tradição e a propriedade, ameaçadas pela foice e pelo martelo. Jango tinha de sair do Planalto a qualquer custo.

Antes do golpe de 1964, a imprensa hegemônica pedia a renúncia do então presidente João Goulart e assegurava que a democracia só seria garantida com a saída dele. Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Correio da Manhã, Jornal do Brasil e O Globo se esforçaram para que ocorresse a destituição do ex-ministro do trabalho de Getúlio Vargas. Alguns jornais chegaram a se arrepender dessa empreitada imediatamente, outros precisaram de 50 anos para um mea culpa, enquanto teve quem dissesse que foi uma ditabranda.

A exceção era feita pelo Última Hora. Fundado no dia 12 de junho de 1951 por Samuel Wainer, o jornal mudou o jornalismo brasileiro com linha editorial ousada, cheia de desenhos, com bastante cores, fotos abertas em seis colunas e diagramação arejada. Se Wainer entrou para a história pela revolução gráfica e editorial que encampou no periódico, também chamou atenção sua influência política: era getulista e defendia Vargas. Sem apoio da imprensa, o ‘pai dos pobres’ se tornou amigo do jornalista e o incentivou a criar seu próprio veículo.

Pela televisão, que ainda estava engatinhando no Brasil, a cobertura daqueles anos turbulentos pré-golpe de 1964 era irritantemente parcial. Todos os telejornais das principais emissoras rasgavam cera para os militares. O peixe fora d'água era a TV Excelsior, de São Paulo. Uma das pioneiras no País, o canal 3 ousou trilhar um caminho diferente, criticando o ímpeto golpista dos militares. Foi, então, economicamente sufocada, programas saíram do ar e entrou em decadência. Por trás disso tudo, surgia a TV Globo, que apoiava os militares.

‘Imprensa nanica’

Os anos 70 eram tempos de experimentação estética no campo das artes. Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil estouraram com músicas que, metaforicamente ou não, faziam menções críticas ao regime militar. A mesma coisa acontecia no cinema: Glauber Rocha filmara a terra em transe. O elenco da peça Roda Viva, dirigida por José Celso Martinez, foi agredido por integrantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Nos anos 70 houve ainda a Geração Mimeógrafo de Torquato Neto, Chacal, Bernardo Vilhena e Ana Cristina César.

As novidades também surgiam na imprensa. Com o clima de perseguição, mordaça, demissões, prisões e desaparecimentos tomando contas das redações, não havia muita escolha: era preciso se reinventar. E foi a partir dessa paranóia que surgiram jornais revolucionários. Em encarte dentro do Jornal dos Sports, o Sol - “O Sol nas bandas de revista/ me enche de alegria e preguiça”, como canta Caetano em Alegria, Alegria - era um caderno cultural que servia de inspiração a novos jornalistas, como Ziraldo e Henfil.

“O aparelho militar distinguia os jornais alternativos dos demais, perseguindo-os e submetendo os que julgava mais importantes a um regime especial, draconiano, de censura prévia”, escreveu o jornalista Bernardo Kucinski, em Jornalistas e Revolucionários. De fato, era por aí mesmo. Entre 1964 e 1980, cerca de 150 jornais surgiram e ficaram conhecidos como imprensa nanica (palavra inspirada no formato tabloide, que era o tamanho adotado pela maioria dos jornais alternativos). Havia basicamente dois tipos de periódicos.

Os mais dogmáticos, de orientação marxista, adotava uma postura mais pedagógica, mais combativa. “Os jornais alternativos políticos foram, no entanto, os únicos em toda a imprensa brasileira a perceberem os perigos do crescente endividamento externo, ainda em 1973, e o agravamento das iniquidades sociais”, observou Kucinski, na obra. Na outra classe de jornais tinham os periódicos cujas raízes estavam nos movimentos de contracultura norte-americanos, nas teorias orientais, no anarquismo, no existencialismo e no movimento beatnik. 

Com uma visão que misturava esquerdismo com deboche, o que só era possível numa cidade que havia deixado de ser capital após 200 anos, como o Rio de Janeiro, O Pasquim nasceu de uma reunião de jornalistas insatisfeitos com seus empregos na imprensa tradicional: Jaguar, Tarso de Castro e Sérgio Cabral (o pai) queriam seguir com o tabloide A Carapuça, após a morte de Stanislaw Ponte Preta. Paulo Francis, Millôr Fernandes, Sérgio Augusto, Luiz Carlos Maciel, Ivan Lessa, Fortuno e Ruy Castro se juntaram na sequência a eles.

Ainda pegando carona no contexto sócio-político da época, surgem os jornais O Bondinho, Opinião e Movimento. O primeiro era formado por uma equipe de jornalistas do primeiro time, muitos oriundos da revista Realidade, como Sérgio de Souza, que, anos mais tarde, criaria a revista Caros Amigos. Em 1972, o empresário Fernando Gasparian chamou o Raimundo Pereira e lhe propôs a ideia de um jornal. Nascia o Opinião. Após divergência com Gasparian, Pereira idealizou, em 1975, o Movimento, que durou até 1978.

Na era da internet

Se a caça às bruxas instaurada pelos militares foi um terreno fértil para que jornalistas criassem jornais irreverentes, com textos refinados e diagramação inovadora, o mesmo aparece que vem acontecendo hoje. Passados cinco, seis décadas da criação de O Pasquim, Opinião e Movimento, é possível assistir a migração de profissionais de primeiro gabarito para a web. Webjornais, com pegada progressista após o impeachment de Dilma Rousseff, surgiram em grande escalada. E propõem uma maneira revolucionária de existir, sendo financiados pelos próprios leitores.

Os exemplos são extensos: Socialista Morena, Brasil 247, Diário do Centro do Mundo, The Intercept, Az Mina... e por aí vai. Mesmo com um contexto sócio-político pouco favorável para os jornalistas, com xingamentos e ameaçadas vindas do próprio chefe de estado - como mostra recente pesquisa da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) -, ainda é possível encontrar meios e maneiras de se reinventar. Pode ser pela via do papel, como fizeram em outrora os mestres de O Pasquim, Opinião, Movimento. Não importa: sempre haverá demanda para texto, edição criativa e pautas inventivas. O jornalismo está mais vivo.

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