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Era uma vez em Hollywood, ou: como a meta-meta-crítica-tributo fez de Tarantino um mestre

Ian Caetano

Em Reservoir Dogs, seu filme de estreia, apresentou-nos Tarantino uma proposta de estilo. A cena inicial deste filme – um diálogo inusitado entre oito criminosos acerca do real significado da música Like a Virgin, de Madonna – comprovou-se uma espécie de cartão de visitas para o que viria depois. Diálogos alongados, digressões extensas, roteiros não-lineares, violência, referências à cultura pop, trilhas sonoras contagiantes e nostálgicas, e/mas, principalmente: a ode e o tributo à 7ª arte. Suas referências a obras clássicas são incontáveis. Seja no espelho referencial do enredo (por exemplo: Kill Bill, inspirado – e espelhado – em clássicos japoneses como Lady Snowblood e O Tigre e o Dragão, outrossim reverenciando os clássicos estilos de Western e até o Anime); seja na referência de uma cena a clássicos de western spaghetti (como no “empasse mexicano” em Reservoir Dogs, alusão direta ao trecho final de Três Homens em Conflito); seja ainda num tributo a filmes de horror (como em Death Proof, onde o personagem principal reproduz cenas típicas de películas trash sanguinolentas dos anos 70 e 80); ou ainda sua deferência a uma antiga técnica de filmagem projetada em película de 70mm (pouquíssimas vezes utilizada, como no caso do célebre Ben-Hur, e bastante restrita, entretanto agregadora sobremodo de charme) em The Hateful Eight.

Em resumo, uma carreira dedicada à declaração de amor ao cinema e aos tributos, vênias e homenagens a este, mas que nunca descolada do eterno esforço de uma marca autêntica por meio do esforço antropofágico. Se, por um lado, dizem que Tarantino é um dos maiores plagiadores de cenas (o que os mais afeitos chamariam – incluo-me aqui – de referências e alusões) do cinema, por outro, se tal tese fosse de fato sustentável, seria bastante difícil distinguir um filme do diretor vis-à-vis qualquer outro, o que não é o caso. A assinatura de Tarantino é perceptível em toda sua cinegrafia.

Em repetidas aparições públicas, repetiu à exaustão Tarantino que encerrará sua “contribuição ao cinema” quando de seu décimo filme autoral. Disse querer dedicar-se a outras formas de arte (como literatura) e até que não descarta prosseguir com certas atividades no cinema, mas que seu “grande feito” estaria selado no pacote destes dez filmes, e que estes deveriam ser enxergados pelo público como uma obra fechada.

Numa entrevista, perguntaram a ele “como gostava de ser interpelado”, quando perguntado sobre o que fazia. Ele não respondeu “cineasta”, mas “artista”. Independente de gostarmos ou não do sumo final dos seus esforços, é possível atribuir a Tarantino alguns adjetivos elogiosos. Tem uma assinatura bastante característica de estilo, é uma enciclopédia viva do cinema, tem talento de pena para diálogos cativantes e é um esforçado estudioso e executor de técnicas diversas de filmagem (preto-e-branco, anime, lentes para 70mm, estilo oriental de câmera, cinema de época, western, etc.).

Como artista grandiloquente e pretencioso, entretanto, é uma lástima que este não tenha sido seu último filme. Se o projeto, como por ele alegado, era entregar uma obra única fatiada em dez filmes (vale lembrar que ele considera Kill Bill – que é uma história divida em duas partes – como um só filme), este não deveria ter sido o nono, mas seu décimo.

Justifico. Como consagrado diretor frequentemente lembrado pela sua sistemática menção a outros filmes e a estilos de outrora, a referência e a homenagem foram sempre suas tintas carregadas. Seja na ode ao estilo oriental impressa em Kill Bill, seja no cinema trash em Death Proff, seja no Blaxploitation em Jackie Brown ou os western em Django Unchained e The Hateful Eight… agora, uma “meta-meta linguagem” (e bastante melancólica, deve-se ressaltar), homenageando o cinema ao tratar da indústria cinematográfica, é um feito inédito do realizador.

Cliff Booth (Brad Pitt) é o dublê e melhor amigo de Rick Dalton (Leonardo Di Caprio)

Era uma Vez em Hollywood trata da história de Rick Dalton, um ator clichê de séries de velho-oeste que, numa decisão de carreira equivocada e com a mudança da indústria cinematográfica estadunidense, tornou-se um profissional decadente; e a história de seu dublê e amigo Cliff Booth (naquela época era comum atores terem dublês “exclusivos”), que acaba, na ausência de trabalhos do ator a quem servia de dublê, virando uma espécie de “faz-tudo” para o amigo (cuidando do carro, da casa e demais atividades comezinhas do cotidiano).

É um filme que fala dos dilemas da indústria cinematográfica no final dos anos 60, com alusão a acontecimentos como o declínio dos western (a obra não deixa explícito, mas o fato histórico é que, com a corrida espacial entre a União Soviética e os Estados Unidos – que começou na década de 60 – os western foram gradualmente perdendo espaço para os filmes e séries de ficção científica e de temática espacial, uma estratégia de ambos lados com vistas à propulsão cultural do tema político em evidência no momento); bem como da cena hollywoodiana da época (a forte presença do movimento hippie, as festas extravagantes da alta casta artística da cidade, a situação decadente dos produtores e atores que não acompanharam as transformações da indústria, etc.); além de alguns personagens verídicos – eleitos pelo diretor – marcantes da época, como Roman Polanski, Sharon Tate, Bruce Lee, Charles Mason e Sergio Corbucci. Em suma, uma deferência à divindade do autor: o cinema.

É um filme que, a despeito de poder ser razoavelmente apreciado por qualquer pessoa que goste de ir às grandes telas, ganha camadas mais entusiasmantes àqueles que: 1) são cinéfilos de carteirinha; 2) têm alguma familiaridade com o pano de fundo histórico dos acontecimentos que sucedem no filme e; 3) compreendem a obra no contexto da filmografia do diretor. Um sujeito muito sábio disse-me certa vez, e cito: “toda obra artística – ou que se pretenda tal título – é 50% de quem a fez e 50% de quem a consome”. Assim, por um lado, é possível dizer que este é o filme mais “restrito” (ou datado) de Tarantino, visto que, isolado do conjunto filmográfico, não é uma grande obra e é, igualmente, um filme que provavelmente envelhecerá mal. Contudo, como eu disse algumas linhas atrás, se formos analisar a obra do diretor tal qual ele quer que a analisemos, um conjunto fechado de dez filmes, fosse este o décimo seria demasiado difícil admoestar o diretor ou criticar sua obra como quer que fosse.

Mike Moh viveu o ator Bruce Lee

Permita-me agora o perseverante leitor um aparte. Pois a vida é feita de fortuitas ocasiões, e quando ainda estava a redigir este texto, soube que outra pessoa executava a mesma empreita.

Um nobre camarada meu, que por feliz ocasião calha ser editor deste mesmo jornal que ora publica estas parcas palavras, achou também oportuno redigir algumas linhas acerca do filme ora sob meu escrutínio. Entretanto, diferente da lei da gravidade, que é fidedigna e comporta-se o objeto sob sua influência da mesma maneira em condições iguais de velocidade, densidade e pressão, a opinião das pessoas no que se refere a uma obra artística é bastante subjetiva e, portanto – a despeito, fazendo cá justiça, de existirem critérios razoavelmente consagrados para uma avaliação metódica da arte (para que não me assassinem os estudiosos de literatura, artes cênicas, cinema e demais formas de expressão) – passível de múltiplas interpretações. Este meu camarada então publicou um texto, cujo título, para que o leitor tenha a ocasião de cotejar as duas visões acerca da película, é: “Era Uma Vez em Hollywood gera expectativa, mas decepciona”.

Se, de um lado, como aponta Marcus Beck – autor da crítica acima mencionada – é verdade que nalguns momentos o movimento hippie é retratado pejorativamente no filme, esquece-se ele de falar que esta é a visão do personagem principal, não propriamente uma configuração narrativa geral (ou explicitamente uma opinião manifesta do diretor). Basta vermos que Sharon Tate tinha não só afeição pelos hippies (tal qual retratada no filme), bem como ela própria emanava costumes “libertadores” tipicamente defendidos por esta comunidade ideológica. O que Rick Dalton (personagem de Leonardo DiCaprio) critica e repudia não são os hippies, mas as mudanças que o fizeram perder seus dias de glória, que manifestam-se, entre outras coisas, na proliferação ideológica expressa na multiplicação destes sujeitos. Em verdade, é Rick Dalton quem é ridicularizado enquanto figura: decadente, inseguro, dependente afetivamente (principalmente nas costas de seu dublê Cliff Booth) e invejoso.

Atriz Margot Robbie interpretou Sharon Tate em 'Era Uma Vez em Hollywood'

Como dito antes, é um filme para quem gosta de cinema. Não no sentido de ir ao cinema, mas da indústria, das suas entranhas. Pode ser que o filme peque ao associar de maneira muito plasmada algumas hippies à seita de Charles Mason, mas, até onde apontam alguns registros históricos, isso não deixa de estar longe da verdade. Enfim, a questão é menos uma crítica ontológica à contracultura hegemônica nos anos 60 e mais uma exposição de como os artistas em decadência encaravam esta como um dos culpados por suas carreiras em declínio.

O filme é o que chamaríamos tecnicamente de “filme de personagem”. Assim como em Pulp Fiction (talvez o filme mais consagrado do diretor), importa menos aqui o enredo geral e o desenlace da história e mais a trajetória dos personagens ali situados. São digressões que muitas vezes não contribuem com o avanço da história (supondo que este não fosse um “filme de personagem”), mas contribuem precisamente porque o importante nesta proposta é a compreensão da trajetória de cada um dos personagens ali envolvido. O meu camarada Marcus Beck insinua que o filme repete uma fórmula; eu, mais benevolente, diria que ele ostenta uma assinatura autoral. Ora, se cotejarmos obras de autores como um Machado de Assis, um José Saramago, ou – para voltarmos ao cinema – um Scorsese, invariavelmente encontraremos paralelos estilísticos e narrativos. São autores com caligrafia artística bem marcada. Assim o é Tarantino, independente de gostarmos de sua assinatura ou não.

Em suma, se eu tiver de apostar, diria que, isoladamente, talvez Era Uma Vez em Hollywood seja o filme que menos resistirá à prova do tempo em se tratando da filmografia de Tarantino. Contudo, se considerado como o corolário de uma filmografia planejada como uma obra única, é, certamente, a meu juízo, um excelente final.

Ian Caetano é doutorando e mestre em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e formado em ciências sociais pela UFG.

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