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“Já chorei várias vezes desenhando tirinhas pra série”

A ilustradora amazonense Laura Athayde sempre gostou de histórias em quadrinhos, mas a decisão de usar essa linguagem com o objetivo de gerar conscientização sobre a necessidade de emancipação feminina veio no seio da própria família. Sua irmã lhe relatou uma situação machista, no curso de Ciências da Computação, e Athayde resolveu fazer algo. Daí ao projeto “Aconteceu Comigo”, que ficará exposto até novembro na sede do Itaú Cultural, em São Paulo, foi um pulo.

Nascida em Manaus e graduada em Direito, a artista passou a fazer seus próprios quadrinhos e postar na internet em 2013. De lá para cá, não parou mais. Dois anos depois, mudou-se de São Paulo – cidade onde trabalhava – para Belo Horizonte e passou a dedicar-se integralmente ao universo das ilustrações e HQ´s. Em seguida, fez curso de tecnólogo em Design Gráfico, com o objetivo obter maior independência para publicar seus projetos.

Desde então, ilustrou para as editoras Planeta, Record, Companhia das Letras e teve quadrinhos publicados em diversas coletâneas. Atualmente, a artista finaliza as últimas HQ´s da série “Aconteceu Comigo”, que está disponível nas redes sociais pela hashtag #aconteceucomigohq. O trabalho será publicado em livro no ano que vem, e tem apoio do Itaú Cultural.

Em entrevista ao Diário da Manhã realizada na tarde de ontem, Athayde falou - entre outras coisas - sobre o processo de produção da série “Aconteceu Comigo”. Além disso, a ilustradora comentou como foi a recepção do público em relação ao seu trabalho e refletiu acerca da ascensão do conservadorismo no País.

Quadrinista Laura Athayde (Foto: Acervo Pessoal/ Facebook)

Confira os principais trechos da entrevista:

Diário da Manhã - Quando você descobriu a linguagem dos HQ´s?

Laura Athayde - Sempre gostei de ler quadrinhos, desde criança. Meus pais compravam revistinhas da Turma da Mônica e eu imitava os desenhos. Na adolescência, comecei a ler mangás japoneses que comprava nas bancas de jornal perto do colégio e, um pouco mais velha, fui apresentada às graphic novels norte-americanas pela minha irmã. Contudo, só descobri o tipo de quadrinho que realmente queria fazer aos 24 anos, quando li um do carioca Diego Sanchez no Facebook. Ele desenhava histórias curtinhas sobre o amor e as frustrações da vida cotidiana, e me identifiquei de cara.

DM - Como surgiu a ideia do projeto ‘Aconteceu Comigo’?

Laura - O primeiro quadrinho da série surgiu por causa de uma situação que a minha irmã mais nova me contou. Ela cursava Ciências da Computação e sempre escutava comentários negativos por parte dos colegas e professores - que ela não devia estar ali, que mulheres não sabiam fazer conta e que deveria procurar um curso de humanas. Isso fez com que ela constantemente duvidasse de si mesma e se cobrasse muito. Na turma dela tinham apenas três meninas e eu imaginava que, se todas passavam pela mesma coisa talvez nenhuma delas chegasse a se graduar.

DM - Participei do lançamento do edital Rumos Itaú Cultural biênio 2019-2020, que aconteceu no último dia 2, em São Paulo. Seu trabalho estava exposto e me chamou bastante atenção. Qual foi o relato que mais lhe impactou?

Laura - Vários relatos me tocaram bastante. Já chorei várias vezes desenhando tirinhas pra série. Dois dos que foram mais difíceis de abordar, tanto porque sabia que as reações seriam violentas quanto por exigirem muito tato na adaptação pra HQ, foram os relatos sobre aborto e estupro.

DM - Por que escolheu as redes sociais como canal de comunicação com o público?

Laura - Já postava minhas tirinhas no Facebook e sabia que esse tipo de conteúdo, consistente em um texto rápido, acompanhado de imagens, circulava bastante por lá. Além disso, as redes sociais permitem que os leitores comentem e conversem uns com os outros, e o meu objetivo com a série era justamente promover o diálogo. Então, foi natural começar a publicá-la dessa forma.

DM - Como as histórias chegaram até você?

Laura - No começo, escrevia na legenda das postagens que as pessoas podiam me mandar suas histórias por mensagem pelo Facebook. Lá pela terceira história, percebi que não ia conseguir lidar com o volume de mensagens que chegavam com relatos misturados a outros tipos de contato. Então, abri um formulário anônimo do Google e passei a direcionar as pessoas pra lá. Mas essa não é a única forma de recebimento de relatos. Pedi para amigas contarem suas histórias e também já abri chamadas específicas para certos temas que sentia que precisavam ser abordados na série.

DM - Como o projeto ‘Aconteceu Comigo’ pode nos conscientizar sobre a condição da mulher numa sociedade patriarcal?

Laura - Muita gente não acredita que exista machismo ou que ele opere de forma negativa sobre a sociedade. Talvez, por isso, rejeite-se o feminismo e não entenda do que se trata ou qual é a sua necessidade. Contudo, quando confrontados com uma história real contada por uma mulher que sofreu com o machismo no ambiente de trabalho ou de estudos, como a minha irmã, e sabendo como a afetou, fica difícil manter esse discurso. Muita gente pensa em uma mulher recebendo um fiu-fiu na rua e acha inofensivo. No entanto, quando colocamos um contexto nessa cena, a coisa muda de figura: e se o fiu-fiu aconteceu à noite em uma rua deserta, causando na mulher o medo de sofrer uma violência que sabemos que é estatisticamente provável? E se ela só quer andar na rua em paz, pensando na vida, sem se sentir constantemente observada e analisada sob um ponto de vista sexual?

DM - Qual a recepção de ‘Aconteceu Comigo’ por parte do público?

Laura - No geral, a recepção é maravilhosa! Rola muita identificação e apoio mútuo entre as leitoras que comentam as tiras. Também recebo muitas mensagens privadas de agradecimento e encorajamento. No entanto, temas mais polêmicos inevitavelmente atraem comentários grosseiros e até mesmo de ódio. A HQ sobre aborto, por exemplo, rendeu muitas discussões nos comentários, algumas bem interessantes e outras pura baixaria. Procuro responder as pessoas sempre que possível, mostrando dados concretos e debatendo ideias.

DM - Em tempos onde o discurso reacionário contra as minorias ganha cada vez mais força na esfera pública, qual é a mensagem que você quer passar com seu trampo?

Laura - É engraçado pensar que esse trabalho está exposto no Itaú Cultural, em SP, mas que se estivesse na Bienal do Rio na semana passada, possivelmente teria sido censurado. Na verdade, não é engraçado, é bem triste, porque esconder e marginalizar as vivências das minorias não beneficia absolutamente ninguém. O meu objetivo maior com a série é comunicar, mostrar, jogar uma luz sobre histórias que não tem espaço nas mídias mainstream. Eu penso que, quando a sociedade começa a conhecer essas histórias, comportamentos tradicionais e nocivos começam a ser revistos; passa a existir uma preocupação com a inclusão dessas pessoas.

DM - Acredita que suas pautas reacionárias contribuem para que as conquistas do movimento feminista e LGBT estejam ameaçadas?

Laura - Acredito completamente. É muito cruel saber que as conquistas tão suadas dos movimentos feminista, negro e LGBT possam cair facilmente, mas isso fica cada vez mais claro. Vemos relatos de pessoas revelando um aumento de agressões homofóbicas, e o próprio caso de censura a conteúdo LGBT na Bienal do Rio é um exemplo disso. Quando um presidente declara aberta e reiteradamente a sua falta de respeito por mulheres, negros e gays, essas narrativas voltam a ser marginalizadas, a ser ignoradas ou menosprezadas pelo mercado e pela mídia.

  • Foto: Reprodução

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