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Três poetas para conhecer a autoria feminina contemporânea

Sem dúvidas, após um grande período no abismo do silenciamento, questões referentes a autoria feminina se levantam, e provam que, existiram e existem poetas mulheres produzindo literatura, embora seus nomes por inúmeras vezes tenham sido esquecidos e ignorados na história.

A referida listagem traz o nome de três mulheres que produzem literatura na contemporaneidade fora do eixo canônico, com ênfase na poesia.

Entretanto, em primeira instância, é precípuo enfatizar a problemática que permeia os termos que referenciam produção poética realizada por mulheres.

Por que poetas e não poetisas?

O termo poetisa passou a ser contestado por ter sido atribuído a ele um significado pejorativo, cuja carga semântica denotava inferiorização da literatura produzida pelas mulheres, que durante muito tempo permaneceram à margem de um padrão que priorizava o ponto de vista masculino em qualquer tipo de produção intelectual.

A compreensão cada vez mais disseminada de poetisa como termo pejorativo, ou pelo menos de conotações condescendentes, caminhou ao lado dos avanços do feminismo no século XX. Poetas do sexo feminino que jogavam de igual para igual com os homens o jogo das letras passaram a rejeitar a distinção de gênero. Isso se deu em duas etapas.

Na primeira, o impulso foi na direção do masculino como gênero neutro, como se o eu lírico não tivesse sexo: “Não sou alegre nem sou triste: sou poeta”, escreveu Cecília Meirelles (1901-1964) no poema Motivo, o mesmo em que se declara “irmão das coisas fugidias”.

Uma geração depois de Cecília, a portuguesa Sophia de Mello Breyner (1919-2004) completava o percurso, reivindicando abertamente para a palavra o gênero feminino.

O problemático vocábulo ainda se sustenta com as credenciais de “correto” em certos círculos, mas costuma ser associado ao beletrismo na acepção menos favorável deste termo e está claramente em declínio.

Todas as poetas a seguir tem como língua materna o português (logo, seus poemas não passaram por nenhum processo de tradução) e atualmente produzem literatura; compondo o cenário contemporâneo do gênero em língua portuguesa.

Ana Martins Marques

Nasceu em 1977, em Belo Horizonte. Ana é graduada em letras, também tem doutorado em literatura comparada pela UFMG. É autora de A vida submarina, Da arte das armadilhas (vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional em 2012) e O livro das semelhanças. Atualmente, além de escritora trabalha como redatora e revisora na Assembleia Legislativa de Minas Gerais.

Sua poesia, segundo o crítico Murilo Marcondes, alia a elaboração formal a uma reflexão sobre a vida, promovendo um "estreitamento entre linguagem e experiência"

Caçada E o que é o amor senão a pressa da presa em prender-se? A pressa da presa em perder-se

Pense em quantos anos foram necessários para chegarmos a este ano
quantas cidades para chegarmos a esta cidade
e quantas mães, todas mortas, até tua mãe
quantas línguas até que a língua fosse esta
e quantos verões até precisamente este verão
este em que nos encontramos neste sítio
exato
à beira de um mar rigorosamente igual
a única coisa que não muda porque muda sempre
quantas tardes e praias vazias foram necessárias para chegarmos ao vazio
desta praia nesta tarde
quantas palavras até esta palavra, esta

Minas
Se eu encostasse
meu ouvido
no seu peito
ouviria o tumulto
do mar
o alarido estridente
dos banhistas
cegos de sol
o baque
das ondas
quando despencam
na praia

Vem
escuta
no meu peito
o silêncio
elementar
dos metais

Tradução
Este poema
em outra língua
seria outro poema

um relógio atrasado
que marca a hora certa
de algum outro lugar

uma criança que inventa
uma língua só para falar
com outra criança

uma casa de montanha
reconstruída sobre a praia
corroída pouco a pouco pela presença do mar

o importante é que
num determinado ponto
os poemas fiquem emparelhados

como em certos problemas de física
de velhos livros escolares

Conceição Evaristo

"Eu não nasci rodeada de livros, nasci rodeada de palavras" diz a autora nascida em Belo Horizonte, em 1946. De origem humilde, migrou para o Rio de Janeiro na década de 1970. Graduada em Letras pela UFRJ, trabalhou como professora da rede pública de ensino da capital fluminense. É Doutora em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense.

"Antes de lerem nossos textos já fazem um pré-julgamento, ou dizem que a autoria negra é uma autoria de militância. Mas é preciso conhecer os textos. Peço muito para as pessoas que não leiam apenas minha biografia, porque ela é importante sim, porque ela contamina meu texto, mas por favor leiam meu texto" diz a autora.

Em 2017, Conceição Evaristo foi tema da Ocupação do Itaú Cultural de São Paulo. Em 2019, a autora é a grande homenageada da Bienal do Livro de Contagem.

No dia 18 de junho de 2018, Conceição Evaristo oficializou sua candidatura à Academia Brasileira de Letras, entregando a carta de autoapresentação para concorrer à cadeira de número 7, originalmente ocupada por Castro Alves.

Segundo o Portal da Literatura Afro-Brasileira, a autora escreveu na carta: “Assinalo o meu desejo e minha disposição de diálogo e espero por essa oportunidade”. A eleição ocorreu em 30 de agosto, Conceição recebeu um voto, mas acabou eleito o cineasta Cacá Diegues.

A noite não adormece nos olhos das mulheres
Em memória de Beatriz Nascimento

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.

A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede

Do fogo que em mim arde
Sim, eu trago o fogo,
o outro,
não aquele que te apraz.
Ele queima sim,
é chama voraz
que derrete o bivo de teu pincel
incendiando até ás cinzas
O desejo-desenho que fazes de mim.
Sim, eu trago o fogo,
o outro,
aquele que me faz,
e que molda a dura pena
de minha escrita.
é este o fogo,
o meu, o que me arde
e cunha a minha face
na letra desenho
do auto-retrato meu.

Recordar é preciso
O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos
A memória bravia lança o leme:
Recordar é preciso.
O movimento vaivém nas águas-lembranças
dos meus marejados olhos transborda-me a vida,
salgando-me o rosto e o gosto.
Sou eternamente náufraga,
mas os fundos oceanos não me amedrontam
e nem me imobilizam.
Uma paixão profunda é a bóia que me emerge.
Sei que o mistério subsiste além das águas.

Vozes-mulheres
A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio. Ecoou lamentos De uma infância perdida.
A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta No fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela.
A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome.

Matilde Campilho

Matilde Maria d'Orey de Sousa e Holstein Campilho nasceu em 1982 é uma poeta portuguesa.

A autora, terminou ainda em Portugal o curso de Literatura e depois foi para Florença estudar pintura. Nesta cidade, passou um ano num atelier desenhando e fazendo ilustrações para uma revista de Portugal.

"A poesia não é uma magia, embora tenha pequenas magias lá dentro."

Desde 2010, a poeta lisboeta vive entre o Rio de Janeiro, onde trabalhou como jornalista e redatora, e Lisboa. No período de 2010 a 2013 publicou seus primeiros poemas, em jornais do Rio e de São Paulo, e escreveu seu primeiro livro, Jóquei, lançado em Portugal, em 2014.

Matilde Campilho também tem um canal no Youtube, onde explora a poesia em um mergulho pelo audiovisual com uma singularidade artística de demasiada sensibilidade.

Príncipe no roseiral

Escute lá
isto é um poema
não fala de amor
não fala de cachecóis
azuis sobre os ombros
do cantor que suspende
os calcanhares
na berma do rochedo
Não fala do rolex
nem da bandeirola
da federação uruguaia
de esgrima
Não fala do lago drenado
na floresta americana
Não diz nada sobre
a confeitaria fedorenta
que recebe os notívagos
para o café da manhã
quando o dia já virou
Isto é um poema
não fala de comoções
na missa das sete
nem fala da percentagem
de mulheres que se espantam
com a imagem do marido
aparando a barba no ocaso
Não fala de tratores quebrados
na floresta americana
não fala da ideia de norte
na cidade dos revolucionários
Não fala de choro
não fala de virgens confusas
não fala de publicitários
de cotovelos gastos
Nem de manadas de cervos
Escute só
isto é um poema
não vai alinhar conceitos
do tipo liberdade igualdade e fé
Não vai ajeitar o cabelo
da menina que trabalha
com afinco na caixa registadora
do supermercado
Não vai melhorar
Não vai melhorar
isto é um poema
escute só
não fala de amor
não fala de santos
não fala de Deus
e nem fala do lavrador
que dedicou 38 anos
a descobrir uma visão
quase mística
do homem que canta
e atravessa
a estrada nacional 117
para chegar a casa
ou a algum lugar
próximo de casa.


Brincando com os dentes do tubarão

You are the sunshine
of my life
e conversar contigo de manhã
é tão bom
tens o poder do muesli e da
laranja
ou de qualquer fruta de época
for all that matters

Acompanhar teu percurso
natural
é muito bom
falar contigo
sobre tipos de alimentos
também

Neste começo d’hoje
tuas costas negavam
qualquer espécie de outono
Afinal
a ideia de estação
é só um tema ilusional
engendrado por humanos
que nunca puderam desenhar
tua coluna vertebral
a dedo nu

My dear bicho gente
veja lá se sua próxima visita
vem antes da edição fria
do Financial Times.

Desmembramento de um semicírculo

Certo que nos dedicamos
a místicas peregrinações.
Exercitamos a respiração,
lutamos brigas orientais,
praticamos uma e sete vezes
a tradução do poema chileno.
Mas no fundo sabemos
que o que importa mesmo
é roçar a superfície negra
da pele do peito do anjo
que está vivo
que não dorme.

O último poema do último príncipe
Era capaz de atravessar a cidade em bicicleta para te ver dançar.
E isso
diz muito sobre minha caixa torácica.

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