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O escultor dos mortos

Os goianos chegaram ao século 21 sem se dar conta de um fato: o cemitério Santana está impregnado de arte. E um dos maiores artistas deste museu a céu aberto é o grego Angelos Ktenas, 80, um dos fundadores do movimento artístico que levaria a fundação da Escola de Artes, unidade que se tornou uma das prestigiadas faculdades da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Ontem, 31, o escultor voltou ao cemitério para ver sua criação. Ktenas tem arte exposta em inúmeros museus e galerias do mundo. Praças, espaços públicos e coleções privadas guardam sua marca indelével – a capacidade de imortalizar homens e gestos em um modelo clássico e perpétuo. Ele sintetiza estágios da alma no poderoso bronze.  É uma antena da raça, já que perpetua a história.
A visita ao cemitério o leva para outra época e traz de volta um específico traço de sua arte:  a imortalidade da alma.
“Começamos a fazer estas esculturas e imagens por acaso. Não foi por arte pela arte, nem nada. Foi por necessidade”, recorda o experiente professor grego.
A cada passo dentro das avenidas dos mortos, ao lado do fotógrafo Cristovão Matos, ele aponta: “Aquele ali, ó, lá: aquele eu fiz”. Outros modelos o escultor rejeita ou confessa que foram usados de modelo para suas obras.
A arte produzida para o cemitério se mistura a uma história ainda não contada. Ela se refere a uma parceria que Ktenas firmou com Cleber Gouveia (1942-2000) – outra lenda das artes plásticas de Goiás. “Éramos jovens e precisávamos de dinheiro para sustentar a família”, diz o escultor.
Ktenas recorda que a parceria era ampla e irrestrita: “Não tem nada meu e dele. É tudo junto. Cleber era mais modernista e muitas vezes ficava concentrado no corpo. Eu, pelas características de artista clássico, me concentrava no rosto”, explica.
TEMÁTICA
A temática dos cemitérios se divide em produções personalistas e religiosas. No primeiro segmento de produção em bronze, as famílias costumavam encomendar bustos, com a imagem do retratado. Ktenas é autor de uma delas, de Totó Cavalcanti, um dos personagens mais emblemáticos da velha política goiana.
Mas ele se aprimorou, de fato, na arte religiosa, que desvenda os temas numinosos e telúricos referentes à passagem da vida para a morte.
Daí que suas obras em grande maioria serem retratos de Cristo nas Oliveiras ( momento de reflexão e oração) ou de “Vinde a mim” (quando prepara a passagem alegórica da vida para a morte).
A galeria de personagens de Ktenas é ampla; ele faz representações de virgem Maria e outros modelos da mãe de Deus.
EXCENTRICIDADE
Ktenas relata para o DM o dia em que do nada chegou em se ateliê uma reconhecida personalidade goiana e pediu para que ele esculpisse seu rosto no lugar da tradicional fisionomia de Jesus Cristo.
“Um senhor de nome João Mascarenhas – cujo filho foi gerente geral do Banco Central ou da Caixa – disse que estava bem velho e chegava sua hora... E falou: ‘quero um Cristo com meu rosto’. Eu precisava de dinheiro: respondi, então, perfeitamente, senhor João”.
Ele, então, fez pose por duas horas e Ktenas, por fim, fez o novo “Cristo”: sem barba, já que o cliente não tinha. Depois, Ktenas pensou novamente e colocou o adorno característico de Jesus. “Ele era lisinho e vivia sempre de gravata”.
O professor grego levou a equipe de reportagem até o túmulo polêmico. A encomenda foi realizada em 1966. Dois anos depois, em sua morte, João Mascarenhas conseguia o que muitos não teriam como fazer: morrer e já ter sua peça como ornamento no cemitério Santana.
Hoje, Ktenas não faz mais esculturas para cemitério. Por dois motivos: o trabalho exige imenso vigor e energia. Mas sobretudo por respeitar ainda mais sua religião. “Já cheguei a pensar que não é certo fazer como fiz, dinheiro pelo dinheiro. Pelo menos na época fiz isso. Hoje, conheço melhor a minha religião,  tenho grande respeito e devoção por Cristo”.
O rigor exigente do professor é apenas um capricho. As obras, vistas de perto,  como é possível ver hoje, amanhã (e sempre), estão cada vez mais belas e perpétuas – verdadeiras manifestações de amor ao ofício de escultor e ao Deus, que ali recebeu os mortos em corpo.

O artista e a segunda guerra

Angelos Ktenas veio da Grécia para o Brasil em busca da vida. Sabia que na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial, seria facilmente levado aos campos de batalha.  “Explicar minha vida é muito complicado – no bom sentido. Já fiz muita coisa na vida. Ela é longa: não no sentido de viver. Mas no sentido do que vivemos. Sou estrangeiro, sou grego. Saí da segunda guerra mundial fugido. Passei todas as misérias da vida. Queria sobreviver. Queria passar a fase de servir o Exército e voltar para Grécia. Cheguei no Brasil aos 16 anos sem saber falar uma palavra em português, sem ter um dinheiro no bolso. Cheguei sem um amigo”, relata.
Ktenas trouxe para o Brasil as primeiras sensações do que desenvolveria em suas mãos: a vontade de investigar as formas humanas a compreender a anatomia, a dar vida ao material através do vigor do corpo.
No Brasil, tornou-se um dos maiores escultores de formas humanas. Em Goiânia, ajudou a desenvolver a Escola de Artes, que se tornaria em Instituto de Artes e posteriormente Faculdade de Artes Visuais (FAV).

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