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CULTURA

70 anos de Omar

Goiás se reinventa cotidianamente. É terra do ouro e berço das águas, santuário ecológico e cinturão do agronegócio.  Mesmo assim, poucas memórias, pouquíssimas referências.

Invariavelmente, os signos da construção do imaginário goiano flertam com a bonança, a riqueza e a prosperidade.  Diante da natureza, mais realista, ergue-se uma civilização de homens do cerrado: estropiados, malditos, famintos, violentos.

Desde o início, esse povo carece de arte – e continua carecendo. Faltam valores humanos e signos icônicos que sintetizem a expressão do ser goiano.

Pouquíssimos artistas conseguiram sintetizar o sentimento de goianidade em uma semiótica unívoca. Não raro,  somos  a cópia mais vagabunda do europeu.

Foi Veiga Valle (1806- 1874) quem deu início à produção das artes reconhecidas e que fundamentou a trajetória inicial da cultura goiana. Sua estética não remete ao regional, apesar de perfeita.

Depois dele, já no intercurso do modernismo tardio, o frei italiano Confaloni deu liberdade aos jovens artistas goianos que cresceram com o sonho de fundar na capital uma escola de artes e irradiar mais estética e menos narrativas da provinciana briga política entre coronéis e a singeleza da domesticação da natureza. Mais uma vez a arte não se encontrou para valer com a realidade.

Só após a fundação do primeiro grupo modernista goiano – responsável por instituir a Escola de Artes da UFG – é que surgiria um artista autóctone e realmente com a cara de Goiás.

Neste ano, a comunidade artística goiana celebra 70 anos de vida de Omar Souto, uma lenda das artes plásticas de Goiás que permanece da mesma forma quando começou na década de 1970: singelo, despretensioso, significativo e produtivo. Sobretudo, goiano.

O Diário da Manhã acompanhou um dia do inquieto artista. Omar continua ativo nos cavaletes.  Ideias surgem da memória. Das passagens que sonha ou acredita existirem no repertório omarsoutiano, ele orienta o pincel.

Em meio aos atos de criação, reinventa a história da arte. Suas pinceladas passeiam pelo figurativismo, mas dialogam com diversas frentes datadas, passando pelo primitivismo e até mesmo surrealismo agreste e ríspido – que muitas vezes pode ser descrito apenas como o silêncio da vida social rural.

A construção de suas figuras traz uma imagética simples que muitas vezes privilegia o vazio e que faz exatamente uma simbologia/paralelo do silêncio. É assim quando descreve personagens anônimos do interior goiano, como o noivo ou o camponês.

Diante do olhar blasé da cidade, o vazio do campo é surreal, uma vez que desloca o conhecimento do receptor da mensagem para algo jamais sentido.

É este artista que completa 70 anos em 2017 e uma vida de arte dedicada a tornar Goiás mais civilizado, mais humano. Omar nos faz entender, através de imagens, a história social deste segmento de terra. A arte goiana depende da imaginação deste colorista, intérprete dos vazios e paisagens do interior e da passagem do homem do campo para o trabalho assalariado.

PAREDES

Omar começou sua carreira como pedreiro e pintor de paredes. Rapidamente, quando menos esperava, estava nos salões de artes plásticas do mundo.

Em seu ateliê, Omar apresenta a história compilada de sua produção: paredes, banheiros, quintal, todos espaços, enfim, oferecem uma leitura de mundo deste gênio das artes plásticas de Goiás. Peças e desenhos se espalham com micronarrativas.

As temáticas são sobretudo contemporâneas (apesar de manter grande relação com a arte religiosa). Sua meta maior é descrever a solidão diante da imensidão da natureza.

As crônicas que pinta da vida rural privada revelam uma sociabilidade não revelada nem mesmo nas pesquisas mais profundas do sertão goiano. Pinta casamentos, festas populares, romarias. E assim faz complexa observação dos movimentos da vida.

A própria vida do pintor está longe dos laboratórios. Omar carrega uma dura biografia: mistura glórias e derrotas, como qualquer ser humano, mas, sobretudo, encarna hoje a redenção nietzschiana – “O que não nos destrói, nos fortalece”.

A vida no campo, a relação do homem com os animais, as reações humanas aos conflitos do cotidiano, enfim, os personagens temáticos da rudeza da vida (como os retirantes) conduzem a memória de Omar ao que é essencial para ser goiano.

Sua técnica é a metodologia da descoberta. Figurativo e colorido, ele ignora o realismo. Opta pela verossimilhança. A diferença das figurações é patente: Omar não rejeita técnicas de luz e sombra. Antes disso, exala representações de volumes – mas as deforma com um olhar autóctone e profano.

Omar é, em síntese, um grande desenhista e pintor técnico (diga-se, sua técnica, já que não é um autômato). Todavia caminha além da demonstração técnica.

Só após depois de tecer sua última camada de tinta,  ele produz a mensagem de sua arte.

ARTE

Nascido em 1947, em Heitoraí, minúscula cidade do interior goiano, Omar Souto tornou-se revelação das artes plásticas em meados da década de 1970. Desempenha na pintura o que Divino Jorge foi para a escultura, com autodidatismo e esforço próprio.  Venceu e participou de salões importantes do Estado, como a Mostra da Caixego, que nos anos de 1970 e 1980 tornou efervescente o cenário regional.

Foi um dos pintores mais assíduos da Casa Grande Galeria de Arte. Pesquisa de doutorado sobre a cena artística local realizada por Aguinaldo Caiado de Castro Aquino Coelho para a Universidade Federal de Goiás (UFG) mostra como Omar se destacava em meio a geração de Roos, DJ Oliveira, Gomes de Souza, Cleber Gouveia, Cléa Costa e Poteiro.

Deste grupo, era o mais ligado as coisas da terra. Nem mesmo o português Poteiro - com capacidade comunicativa própria - conseguia dialogar com os valores goianos como fez Omar.

Em 1998, ocorreu o fato que marcaria para sempre a vida do artista goiano. Um processo conduzido pelo Ministério Público tentou criminalizar Omar, que, segundo a versão do pintor, teria sido vítima de uma armação sobre exploração sexual de adolescentes.

Na época, o procurador de Justiça do Estado era o ex-senador Demóstenes Torres – outra figura que passou pelo torvelinho do mal após uma ruptura no Senado Federal. Na época, a força midiática do episódio puniu mais Omar Souto do que qualquer intenção de magistrados. A mídia dilacerou e estigmatizou Omar. A comunidade artística se acovardou. E a Justiça se viu sem provas para punir o réu.

Após superar o episódio, Omar descobriu que contava com poucos amigos. Alguns dos artistas que habitavam o mesmo meio do pintor fizeram questão de virar as costas, com pose de vestais da moralidade.

Outros ignoraram a fogueira que queimava Omar. Ancorado nos ombros dos jornalistas Batista Custódio e Ulisses Aesse, dentre outros, ele encarou as ameaças, a prisão e injustiças. Como o mito de Fênix, Omar renasceu e voltou a figurar no rol dos mais importantes artistas goianos.

Ganharia milhões de reais caso tivesse apresentado uma ação por indenização de danos morais. Optou pelo silêncio – o mesmo dos solitários que seguem em suas telas sem rumo definido.

A arte de Omar Souto Omar Souto nasceu em 1947, na Fazenda Mata do Pará, em Heitoraí. O pai era pedreiro e a mãe dona de casa. A síntese de sua obra é o que ele viu e viveu. Não recorre a artificialismos ou intelectualismos para se expressar. Sua arte se divide em duas vertentes: Religiosa – É um artista que recorre constantemente aos valores e signos religiosos. Figurativo, ele produz obras com linguagem própria, mas que relatam a narrativa bíblica. Exemplo: Painel predial, na Avenida Goiás, e a sequência da Via Sacra, em Trindade, considerada a obra artística mais visitada do Estado de Goiás Profana e social – A arte de Omar é também profana, na medida em que busca relatar episódios e situações do cotidiano que fogem do controle do numinoso e da fé. Ele aborda o risco, a perda, a tristeza e a fatalidade. Pinta cabarés, “mulheres da vida” (que conheceu ainda na infância, por meio da mãe.  Solidária, ela usou a religião para se aproximar de cada uma e assim fazer caridade) e extenso rol de variações de homens e mulheres do campo.

51 anos de carreira


Omar Souto surge como artista de forma espontânea: ele diz que “não tinha muitas ilusões com a arte”. Desde o início, ele faz o “que gosta e conhece”. Ou seja: a arte é como extensão. Não é algo artificial.

Aos seis anos, ele já impressionava nas aulas na zona rural. “Meu desenho era diferente. Os alunos copiavam”, recorda.

Omar diz que sua linguagem apenas surgiu. “Cresci, envelheci e aprendi muito pouco da arte. Todo quadro que pinto penso que poderia ser melhor. Mas sou eu ali”, diz a partir de um comportamento que falta em parte da arte contemporânea – honestidade.

Para Omar, quem dá o devido valor ao artista é o tempo. Não que ignore a crítica – fundamentais para atrair atenção ao segmento –, mas ele prefere “ouvir” a marcha dos anos.  “É o tempo que vai dizer se aquela arte fica ou não fica”, diz lacônico, como que concordando com Walter Benjamin, arauto da obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, mesmo sem tê-lo conhecido.

O pintor se define como “um operário das cores”. Desde 1972, quando iniciou sua passagem da construção civil para os salões de arte, Omar pinta a alma do povo brasileiro. É dessa época a postura de enfrentar as adversidades de um meio nem sempre justo. “Você tem que nadar contra a correnteza. Se não nadar, você não vai não. Não chega”, descreve suas lutas diárias.

Em 2016, Omar celebrou 50 anos de carreira com uma grande exposição no HGG. Na ocasião, mostrou para o público cem obras e impactou a nova geração. Batizada de “Raízes do Brasil”, a mostra demonstrou que o tempo tem, sim, avalizado a arte de Omar. E sem data de validade.

Apesar do espaço, Omar reafirma que faltam locais para os artistas se manifestarem. “Goiânia já chegou a ter 18 galerias de arte”, contabiliza.  Por isso mesmo ele reafirma que é necessário dar também tempo ao “tempo” para que ele, senhor de tudo e todos, volte a recolocar a arte onde merece, que é a centralidade das ações do povo goiano.

Para Omar, a arte tem o poder de humanizar. E onde persistir, com certeza, existirão homens propensos a um ambiente menos violento e hostil.

Omar reinventa a arte pública

Omar Souto é autor de diversas obras públicas de grande impacto na imaginabilidade urbana. Foi um dos nomes centrais do projeto “Galeria aberta”, lançado no final da década de 1980, cujo maior privilégio foi de Omar ao destacar a figura de um Jesus Cristo em sentido de paz (gesto com a mão) na visível Avenida Goiás.

Sua arte já faz parte da paisagem urbana, testemunhando o paradoxo da riqueza e decrepitude da vida no Centro.

A partir de uma argumentação mais ingênua do que religiosa, o artista plástico sintetiza a religiosidade do povo goiano, revelando a dualidade da religião, em que mistura personagens bíblicos e pessoas comuns nas composições de fôlego. Não raro, Omar coloca nas imagens que cria as pessoas que conhece, familiares e amigos. Ele próprio é recorrente nos casamentos.

Omar é sempre o noivo. “Como sou feio, digamos, faço sempre aquele personagem parecido comigo”.

Sua obra prima é a Via-Sacra, localizada na GO-060, patrimônio imaterial da cultura goiana. Os painéis retratam a Paixão de Cristo e valorizam um dos valores essenciais do povo goiano.  A própria Festa de Trindade tem como reverência um medalhão criado por Veiga Valle, no século 19, que optou em reconstituir a narrativa milagrosa da celebração.

A obra de Omar, todavia, é incomparável. Ela é reverenciada a cada Festa do Divino e aos poucos se solidifica como uma das imagens “santas” mais populares do país. A cada ano, cerca de três milhões de pessoas caminham do seu lado, ora contemplando ora utilizando a obra de Omar para falar com Deus.

O recorde de um museu exposto em 18 quilômetros é apenas de Omar Souto e de mais ninguém.  Sua grandeza é o desafio, já que aceitou e acreditou na missão de representar a cultura goiana em toda a plenitude.  A obra permanece na aurora dos tempos da arte goiana. Mas já encontra lugar para permanecer e solidificar-se nos momentos finais de nossa travessia como civilização.

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