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CULTURA

Para que serve um poeta?

Por Walacy Neto

A linguagem é qualquer meio sistemático de comunicação de idéias ou sentimentos através de signos. Faz parte da linguagem os gritos, murros, gestos, passos de dança, informativos entregados no eixo e etc. A comunicação é, portanto um sistema com regras, meios e finalidades específicas. Sendo o artista um ser inquieto por natureza que não aceita fácil qualquer imposição, torna-se quase como um dever ser o contestador desses padrões em vigência. A linguagem no papel em seu teor mais destorcido é considerada pelos estudiosos e pelos não estudiosos como um poema (ou poesia). O responsável por esse desvio é chamado pela sociedade de poeta.

O nascimento de um poeta é, em alguns momentos, algo apagado como uma folha em branco. Manoel de Barros, por exemplo, afirma em um poema que descobriu-se aos 13 anos encontrando prazer nas leituras, mas não na beleza das frases, mas na doença delas. Concluiu nesse mesmo poema que deveria apenas saber errar bem seu idioma, tornando-se um dos grandes professores de agramática do país. O desofício de um poeta está na ressignificação das palavras, ou seja, perceber que existe muito mais dentro de um buraco na porta do que apenas um espaço por onde passa a chave e se abre a porta. Na verdade, citando Manoel novamente: todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para poesia.

É necessário saber errar bem o nosso português. Fazer possível que um ser invisível faça um pulo entre uma letra T e outra T. Fingir sentir profundamente um desamparo no peito e chorar uma lágrima inexistente sobre o papel. Disseminar um sentimento inventado, inventar um sentimento que provavelmente afeta toda a população e num verso final dar a solução pra esse mesmo problema. O poeta é um fingidor. Finge dor. Dizia Fernando Pessoa que foi mais de um ser, graças a falta de paredes de uma folha. O poeta é fingidor/ finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente. Dizia Fernando Pessoa que também foi Álvaro Campos e também foi Alberto Caeiro e Ricardo Reis e outros tantos que talvez a gente nem sabe. Num poeta, quase uma jarra vazia, cabem milhares e milhares de raminhos de flor.

Excrescência ornamental

O poeta então seria como um jogador de futebol que busca a simplicidade de colocar uma bola entre três traves. A felicidade de um gol de futebol é quase o mesmo gozo de ser ler um poema. Um gozo necessário, como dizia o poeta curitibano Paulo Leminski. Ou melhor, uma excrescência ornamental da sociedade. Não entendeu? Eu explico. O poeta, nesse caso, é aquele que não serviu para nenhuma das faculdades de estudo. Um poeta tem preguiça, muito medo e um olhar diferenciado da maioria dos cidadãos. Consegue ser ao mesmo tempo um excremento (algo que não tem tanta utilidade) e um ornamento (um enfeite delicado). Melhor, citando novamente Leminski: um inutensílio necessário.

A função do poeta pode ser essa, pode ser aquela, pode ser qualquer uma. Na verdade, a poesia talvez seja uma lente para transver o mundo. Chacal, poeta marginal do Rio de Janeiro, fala em tonalidades de receita. Como um professor intencionado a apagar o que foi ensinado Chacal diz: se o mundo não vai bem / a seus olhos, use lentes/ ... ou transforme o mundo/ ótica olho vivo/ agradece a preferência.

Um binóculos

Manoel de Barros dizia que a poesia é feita para alargar o mundo. Um modo de transver a realidade, ou seja, de permitir que um sentimento, fato ou objeto tenha uma pluralidade de significados e intenções. A poesia tem como função aumentar a paisagem, como um óculos sem grau, ou como um binóculo para ver de perto. A militância de um texto poético está justamente na falta de militância que ele tem. Destinar um texto com diversas linhas, estrofes e estrofes com ou sem rimas e falar sobre o bater de asas de uma borboleta e se posicionar no silêncio. Na poesia cabe a manifestação e a política, é claro, mas o olhar distante daquilo que é tido como importante pelo mundo contemporâneo é quase como fechar os olhos por um minuto e mergulhar.

A poesia é um binóculos para quem não quer ver a realidade crua na cara. É uma forma de contestar concordando. É um amontoado de contrários exprimidos em poucas linhas de forma alinhada ao canto do papel. O poeta, portanto, é um jogador que chuta forte e acerta gol. Enfim, feliz dia do poeta.

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