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Fora de Lugar - Parte IV

Fora de Lugar - Parte IV

Os Sapatos de Nathália


por Rafael Saddi

Quando fez 15 anos, o pai deu uma festa surpresa em sua cama. Com direito a valsa, cavalgada e picolé. Bebeu, comeu tanto que, no dia seguinte, se via as manchas de vinho tinto derramado no lençol.

Em cima delas, o corpo de Nathália estava estranho. Se fosse Ontem, teria acordado atravessada na diagonal, com a coluna em S de maneira, agora, linda, e no futuro, dolorosa.

Mas, era Hoje e seu corpo estava reto e rígido na cama, em um perfeito I, os olhos para o teto, o peito estufado, nos pés um sapato preto, camisa e saia calça marrom perfeitamente alinhados, e até, acreditem, cabelo preso e um quepe na cabeça. Sim, naquela manhã, Natália acordou fardada.

Se levantou também de modo estranho e se dirigiu para a escola. Mas, na rua, vocês não imaginam o qual não foi o seu susto quando percebeu que não andava assim simplesmente andando. Não. Tinha um ritmo, compassado, forte, reto, rígido. Natália andava marchando.

"Que coisa estranha", pensou. "Ontem, bem ontem, eu ainda era uma menina e andava pulando os azuleijos na calçada. Mas, agora, olhem para mim, agora não consigo dar um salto sequer".

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Mal começaram a cair os primeiros pingos de chuva, já se lançara para o meio da rua. Adorava a chuva, "o grande chuveiro do universo". Dizia. Lhe agradava tentar contar quantos pingos tocavam ao mesmo tempo o seu corpo. E naquele momento era como se eles limpassem a sujeira pelas pernas, no cabelo e na língua. "Limpa. Limpa". Não se sentia limpa.

Talvez por isso começara a derramar feito uma criança um choro triste e longo. "Que coisa estranha é essa de chorar na chuva. No meio de tanta água, as nossas lágrimas se tornam tão insignificantes." Pensou. Mas, naquele instante, chorou tanto e tanto que por um momento achou que tinha chorado sozinha aquela chuva inteira.

Quando parou de chover, Natália se importou muito com aquela lamaceira horrível que se formara no seu bairro não asfaltado. "Veja quanta sujeira saíram dos meus olhos?" Tentou mudar os passos, andar mais devagar, desviar das poças de lamas, mas seus pés não mais lhe obedeciam. "É muito ruim perder o comando sob os próprios pés. Tem hora que eu penso que eu nunca o tive realmente. Afinal, eu acho que eles nunca me levaram para onde eu realmente queria ir".

Assim foi, em ritmo certo, sem pular as poças, enfiando os sapatos novos e limpos em cada lama e poça d'água até que, por fim, chegara à escola. Tudo estava diferente. "Que estranho. Não parece bem a escola que eu estudei. Isso aqui tá parecendo mais um quartel. É muito ruim estudar em um quartel. Tem hora que eu penso que eu sempre estudei em um quartel. Afinal, com o professor de Matemática aprendi mais a me sentar e a me calar do que Álgebra".

Mas agora a escola estava limpa, perfeitamente limpa. Os alunos perfeitamente iguais, em fileira e posição de descanso, com suas fardas alinhadas, e os sapatos reluzentes. Olhou para as garotas, a mesma saia calça, a mesma camisa, o cabelo preso do mesmo modo que o dela. Natália se alegrou: "As garotas estão tão iguais que talvez aqui eu possa esquecer quem sou eu e quem são elas".

Entrou na fila, marchando, e depois de bater continência para a colega superior, se colocou de lado em posição de descanso. O diretor da escola, o Coronel Julião, passava na frente de cada um dos alunos conferindo a limpeza e a higiene do uniforme. Quando chegou em Natália, qual não foi a sua cara quando viu os sapatos sujos de lama.

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"Sapatos sujos de lama? Você tem coragem de chegar aqui com os sapatos sujos de lama? Infelizmente, este colégio não é para você, senhorita Natália. Pode dar meia volta e sair pelo portão. E não volte mais".

Mas, Natália chorou, implorou. Não entendia porque isso era algo tão importante. Não sabia que os grandiosos cientistas militares descobriram existir um vínculo estranho entre os sapatos limpos e o raciocínio matemático. Pensou no seu pai. Ele a mataria se soubesse que fora expulsa da escola. Talvez por isso tenha se ajoelhado e implorado ao Comandante:

"Por favor senhor, me ajude, meu pai vai me matar. Você quer saber o que é sujeira? Eu lhe falo o que é sujeira. Eu estou suja, não meus sapatos. E, além do mais, se há aqui algum culpado, esse culpado é a chuva, a maldita chuva".

Mas, ele a mirou com olhar de desprezo e disse para ela se dirigir à sua sala. Lá, o Comandante lhe explicou que se tinha algo que eles não aceitavam naquela escola era garotas que moravam em bairros sem asfalto. "Isso é algo realmente inaceitável". Dizia, batendo os punhos firmes na mesa.

Mas, Natália, no desespero, ao perceber que o Comandante não entendia o quão cruel o seu pai era, lhe confidenciou que naquela noite, o velho havia entrado em seu quarto. Mas, ele, o diretor, longe de se indignar, encostou a porta e disse que precisava saber dos detalhes.

Estrondos no céu. No caminho de volta, caiu uma tempestade.

CONTINUA...

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