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Lídia Jorge: entre o maravilhoso e o revolucionário

Nascida no Algarve, numa família de agricultores, Lídia Jorge posiciona-se em um nobre lugar na literatura portuguesa contemporânea. A escritora licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo sido professora do Ensino Secundário. Em virtude desse ofício passou alguns anos decisivos em Angola e Moçambique, durante o último período da guerra colonial.

Ao publicar “A Costa dos Murmúrios” (1988), que tem como enredo a experiência colonial passada na África, que a autora firmou seu lugar na literatura em língua portuguesa, inserida numa tendência ampla para reflexão sobre as várias dimensões do Portugal pré e pós-revolucionário. É importante ressaltar a trabalho investido na construção das subjetividades das personagens construídas por Lídia Jorge, a partir do desejo de dar voz às margens culturais, históricas e sociais silenciadas na construção da memória coletiva do passado recente português.

A romancista portuguesa possui uma vasta obra, da qual se destacam os romances premiados “O Dia dos prodígios (1980), “O Cais das merendas” (1982) e “A Costa dos Murmúrios(1988). Ao lado de autores como João de Melo, Hélia Correia e José Saramago, é considerada, pela crítica especializada, como uma das maiores influências do realismo mágico. Sua obra contística é também de grande relevância crítica, e hoje o DM Revista se debruça sobre, mais especificamente o real maravilhoso particular à narrativa das vaidades, no conto “Rue du Rhône(2008).

O conto narra o momento em que duas amigas, ao visitar a movimentada Rue du Rhône, ambicionam comprar uma mala de mão, feita de pele de crocodilo genuíno do estado do Mississipi. A rua é conhecida, no mundo todo, por ser o “paraíso” das compras de luxo, situada na cidade suíça de Genebra, e esse é o ponto de partida da narrativa das vaidades, construída por Lídia Jorge, como se vê no primeiro contato com o produto: “Pegámos nela com delícia. A tentação fervia-nos nos dedos. A malinha parecia feita para partilhar conosco a sua vida de pele. Seu côncavo de pele a chamar por nós duas. A beleza das manchas a mostrar a fartura da vida animal que havia nela”.

A obsessão pela bolsa de couro legítimo aparece como uma forma artificial de as personagens se libertarem de uma vida de parcos recursos. Toda essa configuração leva o leitor a refletir sobre uma problemática social evidentemente levantada por Lídia Jorge: o consumismo da classe média. A partir desse momento, instaura-se, pela ótica do real maravilhoso, um verdadeiro culto à imagem e a toda sua representação narcísica de consumo.

O culto à imagem se constrói, no conto, pela impressão ilusória de que o objeto pode atribuir um prestígio social, um poder “semelhante ao do crocodilo, que equivalia ao sonho de gente pobre/remediada que encara certos objetivos como sonhos longínquos que, quando passam a realidade, tornam as pessoas mais fortes, mais realizadas, mais plenas”. Nessa perspectiva, o maravilhoso torna-se essencial para que seja construída a atmosfera de obsessão consumista através de uma atmosfera “mágica”.

O conceito de real maravilhoso está ligado àquilo que se destaca frente ao cotidiano, à realidade comum da narrativa. É o elemento estranho, insólito e inesperado que surge com um certo recuo à representação mimética da realidade, e que pressupõe uma “fé” no milagre do insólito para que ele possa ser percebido. As personagens são tomadas pela fabulação da vaidade de vivenciar um deslocamento para o local de origem do crocodilo.

O conflito criado, entre a descrição narrativa e o maravilhoso, causa uma atmosfera de estranhamento no leitor, já adentrado no cotidiano da narrativa realista que, de repente, assume um caráter maravilhoso explícito, entre a imaginação ou possível delírio das fabulações das personagens.

Dessa forma, o conto de Lídia Jorge atinge sua excelência naquilo que o torna mais moderno e contemporâneo do realismo mágico. Afasta-se da maneira tradicional de narrar, caro ao conto de enredo, ao passo que resulta em um conto de atmosfera, que se detém muito mais a sugerir ambientações e estados psicológicos específicos do que narrar, de fato, uma história com núcleos complexos de acontecimentos.Rue du Rhône dispensa um complexo desenrolar dos acontecimentos.

Mais importante que a ação da compra é a atmosfera e a tensão emocional que ela cria no seu desenlace. Assim, a descrição ambiciosa e a experiência insólita com o animal são cruciais para a compreensão da unidade narrativa do conto, trabalhada de maneira objetiva e breve, como é caro ao gênero, mas também de maneira desejosa, tensa e, sobretudo, maravilhosa.

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