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COTIDIANO

Diário de muitos ciclistas

Quarta-feira, 01 de novembro.

Acordei hoje às 5h com um sonho de roda girando. Era um som bem leve, de um freehub ou catraca. Quando abri os olhos, fiquei em dúvida: era mais fino.  Então era um freehub!

O sonho passou e corri para o banho, escovei os dentes e pensei: “Acho que não vai chover...”.

Enquanto a água caía, outra imagem na cabeça: “...Sem chuva, o ideal seria usar a bicicleta 'Marjorie', a velha Vicine de guerra...”.

Estava decidido a ir de bicicleta para o escritório, no setor Sul. Normal. Mas há 15 dias não ando na bicicleta com receios. Da última vez, na baixada do Capim Puba, setor Centro-Oeste, de noite, dois caras correram atrás de mim quando ela rapidamente passou da descida para a subida.  Suei bicas para escalar aquele paredão de asfalto e ir embora. E nos últimos dias, tenho pensado muito na minha filha Júlia, que está crescendo e sempre pede para que eu não ande tanto de bike. Retruco e peço para ela reduzir os patins...

Decidi mesmo sair com a Marjorie. Vesti meu short, blusa e antes de marcar o tempo no smartphone consultei as notícias: “NY: Motorista atropela ciclistas e pedestres e deixa ao menos 8 mortos”.

Li uma ou duas linhas e pensei: que covardia! Mais um parágrafo. E estava lá a hipótese de ataque terrorista.  Pensei: “Uau! As ciclovias são agora alvo de ataques terroristas”.

Guardei o celular, apertei o cronômetro, liguei a luz da bike e fui.

Logo na Avenida Leste-Oeste, diante de um congestionamento, um cara em um carro amarelo de rodas rebaixadas gritou: “Bicha de bike! Toda azule, santa!”.

Pensei: “por que despertamos tanta admiração e ao mesmo tempo ódio das pessoas?” Pedalei mais um pouco e senti a terra tremer quando um caminhão da Comurg passou bem próximo, do lado, numa verdadeira “fina”.

Lembrei-me da pesquisa de mestrado inédita da arquiteta e urbanista Luciana Joyce Hamer, da Universidade Federal de Goiás (UFG), sobre sistemas cicloviários em que faz uma leitura do indivíduo no meio urbano e aponta as desventuras enfrentadas pelos ciclistas – incluídas as psicológicas.


O fato é: ciclistas desenvolvem cada vez mais ações de ativismo. Os problemas de repente se acumularam.  Um discurso comum é de que “Goiânia não foi feita para bicicletas – e não adianta insistir!”.

Para isso, o grupo apresenta duas características: engajamento pela defesa de determinados direitos e, sobretudo, o exercício de uma solidariedade mecânica, que causa admiração devido ao cuidado de um com o outro.

O ponto é exatamente esta falta de reflexão sobre a existência do ciclista na sociedade. Parcela dos motoristas insiste em tratá-lo sob o viés da subcidadania.

Técnicos e gestores não pensam bicicletas no ambiente urbano e quando elas surgem chamam tanta atenção que se tornam “alvos” e sujeitos resignificados: pobres, vagabundos, otários e agora “bichas”, por usarem equipamento de segurança e roupas adequadas – e, sim, muitas vezes fashionistas.

Nas pedaladas, o ciclista tem a exata noção de seu papel no trânsito: exercitar, transitar, percorrer espaços de forma a impactar o mínimo possível o espaço urbano e o trânsito. Sobretudo, permitir que o exercício de sua cidadania não impeça o conjunto de direitos do outro.

“Reconhecer a bicicleta como modal é, antes de tudo, um desafio para a democracia nas cidades”, diz o sociólogo e cientista político Lehninger Mota. Ele afirma ao DMOnline que a reação dos ciclistas é típica das minorias críticas.

Para ele, existe um desafio da democracia ativista frente ao que deliberam as entidades públicas, legisladores e os destinatários desta democracia das ruas – os motoristas de veículos motorizados.  “Aquele ciclista que se preocupa com a promoção de mais justiça no trânsito deve realizar principalmente a atividade de oposição crítica, em vez de tentar chegar a mais um acordo com quem sustenta estes outros modais”.

Ou seja, uma ação ativista precisa, de fato, apresentar suas implicações de cidadania rompida e expor as fraturas sociais: em uma cidade como Goiânia, por exemplo, não existem ciclovias e ciclorotas suficientes. Romper é exigir ciclovias efetivas e não apenas as acanhadas tentativas até agora executadas – caso das ciclovias do setor Universitário e avenida T-63.

Luciana Joyce Hamer montou sua pesquisa a partir da psicologia ambiental, que traz à tona uma variável psicológica a respeito da mobilidade.

Ao falar de controle do espaço pessoal, que acontece pela regulação da distância das demais pessoas e objetos, é possível chegar ao maior drama do exercício de mobilidade ciclística nas ruas de Goiânia e de outras capitais brasileiras: o respeito à distância de 1,5 metro.

Este é com certeza o primeiro grande direito a ser concretizado. É esse um dos temores, por exemplo, de Natasha Rocha, deficiente visual, que participa de pedais ao lado do marido Ricardo Veríssimo no “Na Bike com DV” (NBDV).

Essa disputa de espaço no trânsito, capaz de roubar dela até mesmo o normatizado 1,5 metro, a faz participar dos pedais em conjunto. Ela teme outros passeios que não sejam monitorados pelo grupo: “É preciso ter segurança para sair nas ruas”.

OUÇA NATASHA ROCHA, do grupo Na Bike com DV

https://soundcloud.com/welliton-carlos-da-silva/natasha-entrevista-cicloativismo

Além do “Na Bike com DV”, outras centenas de grupos de pedais saem todos os dias da semana em busca de espaço nas ruas da capital e proclamam como mantra o respeito à distância.

FINA

O artigo 201 do Código Brasileiro de Trânsito (CTB) trata da popular “fina”.  A lei diz que “Deixar de guardar a distância lateral de um metro e cinquenta centímetros ao passar ou ultrapassar bicicleta” é uma infração média. Pois bem: ao buscar nos arquivos da Secretaria Municipal de Trânsito (SMT) chega-se ao número zero de multa em dez anos. Mas o desrespeito ao espaço continua ser um dos principais motivos de acidentes.

Rafael Alves Borges, da Comissão de Transporte e Mobilidade da Ordem dos Advogados (OAB), acrescenta que o Código de Trânsito já menciona “que diante de uma disputa de espaço a preferência será sempre do menor para o maior. O maior veículo tem que proteger o menor. O ciclista, no trânsito, terá, sim, preferência em locais onde não têm ciclovia, porque ele é o veículo mais frágil”.

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É de hoje o aumento dos acidentes nas principais artérias das cidades, lembram ciclistas mais antigos. Antes existia espaço para todos.

O aposentado Sebastião Bispo da Rocha, 84 anos, mesma idade de Goiânia, diz ao DM que sempre cruzou a cidade com seu Monarcão ano 1973. “Essa aqui roda e já rodou muito, ó. Eu ía daqui (N.R: Parque Industrial João Braz) até o Jóquei Clube, lá no Centro”, diz ao mostrar a bicicleta intacta.

O veterano ciclista urbano diz que aumentaram as “finas” das décadas de 1980 e 1990 para cá.  “Era mais raro, pois o carro passava longe”.  Todavia, ele diz que está feliz com a “nova geração de ciclistas”, que “triplicou” o número de bicicletas nas ruas. Para Sebastião, uma das diferenças dos ciclistas de hoje é que eles andam em grupos, unidos e isso fortalece a “causa”.

VEJA VÍDEO COM A BICICLETA DO SENHOR SEBASTIÃO

https://www.youtube.com/watch?v=W-VMGS2Q4zI

O que ele fala tem tanta razão de ser que no meio ciclístico percebe-se uma solidariedade quase sobrenatural entre os integrantes de diversos grupos.

AMIZADE

A história dos amigos Wesley Mendes do Nascimento e Gustavo Borges exemplifica esta característica do ciclismo como forte vínculo, apontada pelo experiente Sebastião. Em 2013, Gustavo estava em treinamento ciclístico rumo à Senador Canedo, quando caiu da bicicleta e sofreu grave acidente.

O resgate foi feito pelo amigo Wesley, que era bombeiro. “Parece que ele chegou e logo ficou impressionado com tudo que aconteceu comigo. Acho que já sabia da minha condição de paraplegia”, recorda Gustavo.

“Não é normal em nossa atividade esse contato. Mas no caso dele, por ser ciclista, acho que acabei me apegando muito. Então permaneci atento todos os dias, ligando para a família, em busca de informações”. Wesley do Nascimento, bombeiro acidentado poucos dias após salvar outro ciclista 

Wesley relata ao DM que manteve contato constante com a família do acidentado. “Não é normal em nossa atividade esse contato. Mas no caso dele, por ser ciclista, acho que acabei me apegando muito. Então permaneci atento todos os dias, ligando para a família, em busca de informações”.

Logo depois do atendimento no Hospital de Urgências (Hugo), Gustavo foi levado para o Centro de Reabilitação Henrique Santillo (CRER) e ali ficou até entrar outro ciclista acidentado: justamente o bombeiro Wesley, que semanas antes o teria salvado.

A história foi semelhante: quarenta dias depois do acidente de Gustavo, Wesley seguia em um pedal ecológico para Aruanã (GO). E foi ali que ele caiu em meio ao grupo de bike. “Ao cair, um caminhão bateu em mim”, recorda.

Por precaução, Wesley estava acompanhando mais atrás, no meio do pelotão. “Tomei muito cuidado, pois lembrava a toda hora do caso do Gustavo”.

Wesley então caiu na rodovia. Através de uma lesão grave, que o politraumatizou. O bombeiro fraturava, assim, a costela e a medula. Dali em diante, mais que ciclistas unidos, os dois seguiriam como grandes amigos. Ainda que na cadeira de rodas, defensores apaixonados do ciclismo – a ponto de prepararem o retorno para as ruas com uma bike movida pelas mãos –, eles levantam a bandeira do ciclismo como cidadania e solução para que o trânsito seja cada vez mais humano.

OUÇA RELATO DE GUSTAVO SOBRE SUA AMIZADE COM WESLEY 

https://soundcloud.com/welliton-carlos-da-silva/gustavo-relata-sua-amizade-com-wesley-cicloativismo


Essa mesma solidariedade é sentida quando, perto do fim da minha rota, pedalo próximo da praça do Cruzeiro.

Em vez do ritual de preservação da face, típico das cidades nervosas, o que vejo é um ciclista passar, olhar para mim e cumprimentar com a satisfação que ele jamais teria em um carro ou moto.  

É um sinal que nem todos entendem.

VEJA VÍDEO SOBRE A QUALIDADE DAS DUAS PRINCIPAIS CICLOVIAS DE GOIÂNIA

https://youtu.be/juN65l-MDE0

https://www.youtube.com/watch?v=bl7RXlVB9ek

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