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500 anos de Reforma: O protesto da carne e do espírito

Após tentar de todas as formas dialogar com as autoridades religiosas em Roma, o doutor e monge Martinho Lutero decidiu, em outubro de 1517, radicalizar. Ele listou uma série de teses que foram divulgadas por meio da imprensa. Nelas, condenou a venda de indulgências, denunciou a falta de transparência da Igreja Católica e reiterou que a salvação ocorre não pelas boas obras (ou compra, como ocorria), mas através da fé.

O que se segue após a dispersão de suas palavras é uma das mais tentadoras mudanças de paradigma social e espiritual.  Especialistas, teólogos e religiosos explicam ao DM como a reforma protestante mudou o mundo e fez do combate à corrupção da Igreja Católica um movimento existencial que mexeu com as estruturas da política e da sociedade.


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Luteranos em Goiás

Objeto de amplas comemorações desde o início do último mês, com apresentações culturais e seminários, a Reforma é uma das proposituras humanas mais reveladoras. "Ainda hoje é possível sentir sua presença na sociedade, em diversos segmentos", diz o sociólogo Jones Matos, que cita a obra “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, de Max Weber, como uma espécie de portal para a percepção de todas mudanças que varreram a Europa a partir do século 16.

Em uma época atual também tomada pela falência ética, com ampla exposição de chefes de estado, perdura uma grande insatisfação que clama por novas mudanças - seja na igreja seja no Estado. "A grande contribuição foi sobretudo teológica, pois ocorre a mudança de todos conceitos da igreja. Lutero, por exemplo, aumentou o espaço destinado ao louvor, aos cânticos, tornando mais democrática a participação dos fiéis".

Solano Portela, mestre no Biblical Theological Seminary, nos Estados Unidos, diz que a ação de Lutero foi uma revolta contra a estrutura “errada” que imperava na Europa.  Ele explica que a igreja distorcia a salvação. Daí a força do engajamento do monge, mas a reforma não "foi um movimento sociológico, apesar de ter tido consequências sociológicas".


Luiz Sayão, pastor e teólogo da Igreja Batista Nações Unidas, afirma que a "Reforma foi um retorno à Bíblia:  "Sola Scriptura foi o grito de Lutero, acompanhado por Calvino, Zuínglio e muitos outros. As mudanças socioculturais, econômicas e teológicas decorrentes do Protestantismo reescreveram a trajetória de diversos povos e lhes deu nova identidade".

MONGE

Lutero teve amplo apoio da própria igreja para iniciar o movimento contra a Igreja Católica. Monge agostiniano e professor de teologia, ele iniciou pregações de que o perdão de Deus não poderia ser comprado.

A denúncia do comércio das indulgências foi a primeira "grande notícia da imprensa" que se alastrou rapidamente por toda Europa. Era pouco comum um cristão assumir tamanha guerra de nervos com a autoridade central.

Nas missas, Lutero apontava Johann Tetzel como vendedor de indulgências. Influente e querido pela igreja, o “doutor” foi chamado várias vezes para retirar o que disse. O papa Leão X, em 1520, e o imperador Carlos V, no ano seguinte, resolveram excomungá-lo da igreja.

Para conseguir toda ojeriza de Roma, além das críticas certeiras, ele se pronunciou pela infalibilidade papal. Ou seja, para Lutero, o papa errava – e como errava!

Na versão do monge alemão, as escrituras – a famosa expressão sola scriptura – seriam, de fato, a única fonte confiável de conhecimento da verdade cristã.

Com sua postura, a igreja perdia a característica de centro irradiador de comportamentos e posturas inquestionáveis. E passava a abrir cada vez mais espaço para outras denominações e credos.


Liberdade de leitura foi maior contribuição

O reverendo Douglas Boaventura, da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), diz que são inúmeras as conquistas da reforma. Mas a mais determinante foi a liberdade de leitura e interpretação da Bíblia. Mais do que o cristianismo, este simples ato ajudou a disseminar a ideia de educação em todo mundo: “A possibilidade de ler as escrituras e interpretá-las foi essencial. Quero lembrar que os bereanos foram elogiados na Bíblia porque Paulo diz que eles acompanhavam. Eles conferiam aquilo que ouviam para saber se era de fato assim. Isso é importantíssimo. Se hoje você está em qualquer igreja, qualquer comunidade de fé que seja, não deve deixar de examinar se as coisas são de fato assim. E esta é uma contribuição da Reforma Protestante”.

Para o reverendo, ao participar de um culto e ouvir sermões e pregações, é importante o fiel conferir nas palavras da Bíblia se está mesmo escrito desta forma.



Antes da reforma, todavia, com missas em latim, existia uma prática de discurso da autoridade: os fiéis deveriam seguir o “entendimento” dos líderes católicos.  E a prova de que a leitura era libertadora e essencial foi a reação de Lutero, que procurou na Bíblia várias práticas da época e não encontrou.

Na modernidade, o reverendo diz que percebe-se as conquistas da reforma em ações simples e práticas, como o acompanhamento do que está escrito. “Com a Bíblia, leia três capítulos a frente, três atrás, leia o livro inteiro para saber o contexto. Estude a palavra. Você será esclarecido. A Bíblia diz que Deus dará esclarecimento de todas as coisas. Não se deixe levar apenas pela leitura dos outros”.

Santos devem ser respeitados, mas não adorados

Uma reação natural do movimento protestante foi a rejeição ao postulado de que o diálogo com Deus poderia ser mediado pelos santos. As figuras católicas criadas durante a expansão do cristianismo fizeram uso de ícones da igreja, provocaram a criação de arte sacra e sedimentaram um amplo mercado de adoração.

Lutero jamais pregou que os santos, como seres humanos, necessitassem o esquecimento ou ódio dos protestantes. Mas tratou a hierarquia católica à luz da Bíblia e não identificou nenhuma explicação de que os santos apresentassem qualquer poder que os demais humanos também não tinham. Daí que ocorreu naturalmente, a partir da leitura bíblica, uma concentração na figura de Deus e uma redução natural das práticas destinadas aos santos – como o uso de orações específicas para cada um deles.

MARIA

Os princípios da doutrina luterana foram formalizados no documento intitulado Confissão de Augsburgo, de 1530.

Com o tempo, todavia, Lutero foi transformando sua opinião e acrescentando novas ideias ao conjunto de sua posição religiosa.  Uma delas dizia respeito ao papel de Maria, a mãe de Deus. Ele não negou a virgindade perpétua nem retirou do calendário as festas marianas.

Depois da eclosão da reforma, em 15 de agosto de 1522, Lutero pregou na festa da Assunção: “Não pode haver dúvida de que a Virgem Maria está no céu. Como isso aconteceu, não sabemos. E já que o Espírito Santo não nos revelou nada sobre isso, podemos fazer com ele não há nenhum artigo de fé. . . É o suficiente saber que ela vive em Cristo”.

Todavia, de Lutero para cá surgiram inúmeras denominações religiosas que, em vez de respeitarem a figura materna cristã, a rejeitou e muitas vezes a agrediu, com nítidos sinais de intolerância e violência religiosa.

Nova doutrina teve duplo alcance

A religiosidade que surgiu após a consolidação da doutrina luterana interessou à nobreza e também agradou aos camponeses. Os primeiros viram nestas linhas a oportunidade de se libertar da autoridade de Roma.

Com o movimento, optaram em enfrentar a igreja e chegaram a confiscar terras e bens pertencentes à Igreja. Os camponeses, por outro lado, se livraram dos tributos devidos ao clero e toda a pressão para comprarem indulgências.

As ideias de Lutero deram origem a outros pensadores protestantes, caso do francês João Calvino, que foi perseguido em seu país após se converter ao protestantismo.

Suas proposições se afastaram relativamente de Lutero, a ponto dele criar uma doutrinação específica, cujo nome seria o calvinismo. Seu ensinamento elementar se baseava na predestinação, ideia refutada pelos luteranos.

Para Calvino, Deus já teria feito sua escolha, desde o princípio, dos indivíduos que seriam contemplados com a vida eterna. Daí que o livre arbítrio seria controlado pelo desejo divino de decidir cada ação do homem na terra – e assim era Deus (e não os homens) que salvava. A partir desta doutrina, o ser humano em sua   condição de pecador era indigno de alterar a decisão de Deus, tendo que aceitar os desígnios celestes – uma leitura bem diferente das correntes neopentecostais atuais, que fazem questão de ressaltar que o fiel pode “negociar” com Deus.

Desta forma, explica o teólogo Luís Martinho, o “ser humano exercita continuamente sua fé sem saber ao certo se será salvo”.  A doutrina da predestinação tornou-se uma das principais polêmicas protestantes após a morte de Calvino, sendo ainda hoje motivo de divisão e divergência de entendimentos entre algumas igrejas.

Conforme Martinho, Calvino foi um dos pensadores religiosos a ter suas palavras utilizadas para justificar a riqueza e a prosperidade. “Ainda que muitas vezes de forma deturpada”, diz.

Estas ideias tornaram-se, para muitos, sinais da graça divina. Daí que a ética protestante coube tão bem aos integrantes da burguesia, o que estimulou ainda mais aos vários segmentos econômicos da sociedade a busca de uma progressão econômica.

                                                                 As teses de Lutero

Debate para o esclarecimento do valor das indulgências pelo Dr. Martin Luther, 1517

Por amor à verdade e no empenho de elucidá-la, discutir-se-á o seguinte em Wittenberg, sob a presidência do reverendo padre Martinho Lutero, mestre de Artes e de Santa Teologia e professor catedrático desta última, naquela localidade. Por esta razão, ele solicita que os que não puderem estar presentes e debater conosco oralmente o façam por escrito, mesmo que ausentes. Em nome do nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.

1 Ao dizer: "Fazei penitência", etc. [Mt 4.17], o nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis que toda a vida dos fiéis fosse penitência.

2 Esta penitência não pode ser entendida como penitência sacramental (isto é, da confissão e satisfação celebrada pelo ministério dos sacerdotes).

3 No entanto, ela não se refere apenas a uma penitência interior; sim, a penitência interior seria nula, se, externamente, não produzisse toda sorte de mortificação da carne.

4 Por conseqüência, a pena perdura enquanto persiste o ódio de si mesmo (isto é a verdadeira penitência interior), ou seja, até a entrada do reino dos céus.

5 O papa não quer nem pode dispensar de quaisquer penas senão daquelas que impôs por decisão própria ou dos cânones.

6 O papa não pode remitir culpa alguma senão declarando e confirmando que ela foi perdoada por Deus, ou, sem dúvida, remitindo-a nos casos reservados para si; se estes forem desprezados, a culpa permanecerá por inteiro.

7 Deus não perdoa a culpa de qualquer pessoa sem, ao mesmo tempo, sujeitá-la, em tudo humilhada, ao sacerdote, seu vigário.

8 Os cânones penitenciais são impostos apenas aos vivos; segundo os mesmos cânones, nada deve ser imposto aos moribundos.

9 Por isso, o Espírito Santo nos beneficia através do papa quando este, em seus decretos, sempre exclui a circunstância da morte e da necessidade.

10 Agem mal e sem conhecimento de causa aqueles sacerdotes que reservam aos moribundos penitências canônicas para o purgatório.

11 Essa erva daninha de transformar a pena canônica em pena do purgatório parece ter sido semeada enquanto os bispos certamente dormiam.

12 Antigamente se impunham as penas canônicas não depois, mas antes da absolvição, como verificação da verdadeira contrição.

13 Através da morte, os moribundos pagam tudo e já estão mortos para as leis canônicas, tendo, por direito, isenção das mesmas.

14 Saúde ou amor imperfeito no moribundo necessariamente traz consigo grande temor, e tanto mais, quanto menor for o amor.

15 Este temor e horror por si sós já bastam (para não falar de outras coisas) para produzir a pena do purgatório, uma vez que estão próximos do horror do desespero.

16 Inferno, purgatório e céu parecem diferir da mesma forma que o desespero, o semidesespero e a segurança.

17 Parece desnecessário, para as almas no purgatório, que o horror diminua na medida em que cresce o amor.

18 Parece não ter sido provado, nem por meio de argumentos racionais nem da Escritura, que elas se encontram fora do estado de mérito ou de crescimento no amor.

19 Também parece não ter sido provado que as almas no purgatório estejam certas de sua bem-aventurança, ao menos não todas, mesmo que nós, de nossa parte, tenhamos plena certeza.

20 Portanto, sob remissão plena de todas as penas, o papa não entende simplesmente todas, mas somente aquelas que ele mesmo impôs.

21 Erram, portanto, os pregadores de indulgências que afirmam que a pessoa é absolvida de toda pena e salva pelas indulgências do papa.

22 Com efeito, ele não dispensa as almas no purgatório de uma única pena que, segundo os cânones, elas deveriam ter pago nesta vida.

23 Se é que se pode dar algum perdão de todas as penas a alguém, ele, certamente, só é dado aos mais perfeitos, isto é, pouquíssimos.

24 Por isso, a maior parte do povo está sendo necessariamente ludibriada por essa magnífica e indistinta promessa de absolvição da pena.

25 O mesmo poder que o papa tem sobre o purgatório de modo geral, qualquer bispo e cura tem em sua diocese e paróquia em particular.

26 O papa faz muito bem ao dar remissão às almas não pelo poder das chaves (que ele não tem), mas por meio de intercessão.

27 Pregam doutrina humana os que dizem que, tão logo tilintar a moeda lançada na caixa, a alma sairá voando [do purgatório para o céu].

28 Certo é que, ao tilintar a moeda na caixa, podem aumentar o lucro e a cobiça; a intercessão da Igreja, porém, depende apenas da vontade de Deus.

29 E quem é que sabe se todas as almas no purgatório querem ser resgatadas? Dizem que este não foi o caso com S. Severino e S. Pascoal.

30 Ninguém tem certeza da veracidade de sua contrição, muito menos de haver conseguido plena remissão.

31 Tão raro como quem é penitente de verdade é quem adquire autenticamente as indulgências, ou seja, é raríssimo.

32 Serão condenados em eternidade, juntamente com seus mestres, aqueles que se julgam seguros de sua salvação através de carta de indulgência.

33 Deve-se ter muita cautela com aqueles que dizem serem as indulgências do papa aquela inestimável dádiva de Deus através da qual a pessoa é reconciliada com Deus.

34 Pois aquelas graças das indulgências se referem somente às penas de satisfação sacramental, determinadas por seres humanos.

35 Não pregam cristãmente os que ensinam não ser necessária a contrição àqueles que querem resgatar ou adquirir breves confessionais.

36 Qualquer cristão verdadeiramente arrependido tem direito à remissão pela de pena e culpa, mesmo sem carta de indulgência.

37 Qualquer cristão verdadeiro, seja vivo, seja morto, tem participação em todos os bens de Cristo e da Igreja, por dádiva de Deus, mesmo sem carta de indulgência.

38 Mesmo assim, a remissão e participação do papa de forma alguma devem ser desprezadas, porque (como disse) constituem declaração do perdão divino.

39 Até mesmo para os mais doutos teólogos é dificílimo exaltar perante o povo ao mesmo tempo, a liberdade das indulgências e a verdadeira contrição.

40 A verdadeira contrição procura e ama as penas, ao passo que a abundância das indulgências as afrouxa e faz odiá-las, pelo menos dando ocasião para tanto.

41 Deve-se pregar com muita cautela sobre as indulgências apostólicas, para que o povo não as julgue erroneamente como preferíveis às demais boas obras do amor.

42 Deve-se ensinar aos cristãos que não é pensamento do papa que a compra de indulgências possa, de alguma forma, ser comparada com as obras de misericórdia.

43 Deve-se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado, procedem melhor do que se comprassem indulgências.

44 Ocorre que através da obra de amor cresce o amor e a pessoa se torna melhor, ao passo que com as indulgências ela não se torna melhor, mas apenas mais livre da pena.

45 Deve-se ensinar aos cristãos que quem vê um carente e o negligencia para gastar com indulgências obtém para si não as indulgências do papa, mas a ira de Deus.

46 Deve-se ensinar aos cristãos que, se não tiverem bens em abundância, devem conservar o que é necessário para sua casa e de forma alguma desperdiçar dinheiro com indulgência.

47 Deve-se ensinar aos cristãos que a compra de indulgências é livre e não constitui obrigação.

48 Deve-se ensinar aos cristãos que, ao conceder indulgências, o papa, assim como mais necessita, da mesma forma mais deseja uma oração devota a seu favor do que o dinheiro que se está pronto a pagar.

49 Deve-se ensinar aos cristãos que as indulgências do papa são úteis se não depositam sua confiança nelas, porém, extremamente prejudiciais se perdem o temor de Deus por causa delas.

50 Deve-se ensinar aos cristãos que, se o papa soubesse das exações dos pregadores de indulgências, preferiria reduzir a cinzas a Basílica de S. Pedro a edificá-la com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas.

51 Deve-se ensinar aos cristãos que o papa estaria disposto - como é seu dever - a dar do seu dinheiro àqueles muitos de quem alguns pregadores de indulgências extraem ardilosamente o dinheiro, mesmo que para isto fosse necessário vender a Basílica de S. Pedro.

52 Vã é a confiança na salvação por meio de cartas de indulgências, mesmo que o comissário ou até mesmo o próprio papa desse sua alma como garantia pelas mesmas.

53 São inimigos de Cristo e do papa aqueles que, por causa da pregação de indulgências, fazem calar por inteiro a palavra de Deus nas demais igrejas.

54 Ofende-se a palavra de Deus quando, em um mesmo sermão, se dedica tanto ou mais tempo às indulgências do que a ela.

55 A atitude do papa é necessariamente esta: se as indulgências (que são o menos importante) são celebradas com um toque de sino, uma procissão e uma cerimônia, o Evangelho (que é o mais importante) deve ser anunciado com uma centena de sinos, procissões e cerimônias.

56 Os tesouros da Igreja, dos quais o papa concede as indulgências, não são suficientemente mencionados nem conhecidos entre o povo de Cristo.

57 É evidente que eles, certamente, não são de natureza temporal, visto que muitos pregadores não os distribuem tão facilmente, mas apenas os ajuntam.

58 Eles tampouco são os méritos de Cristo e dos santos, pois estes sempre operam, sem o papa, a graça do ser humano interior e a cruz, a morte e o inferno do ser humano exterior.

59 S. Lourenço disse que os pobres da Igreja são os tesouros da mesma, empregando, no entanto, a palavra como era usada em sua época.

60 É sem temeridade que dizemos que as chaves da Igreja, que lhe foram proporcionadas pelo mérito de Cristo, constituem este tesouro.

61 Pois está claro que, para a remissão das penas e dos casos, o poder do papa por si só é suficiente.

62 O verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus.

63 Este tesouro, entretanto, é o mais odiado, e com razão, porque faz com que os primeiros sejam os últimos.

64 Em contrapartida, o tesouro das indulgências é o mais benquisto, e com razão, pois faz dos últimos os primeiros.

65 Por esta razão, os tesouros do Evangelho são as redes com que outrora se pescavam homens possuidores de riquezas.

66 Os tesouros das indulgências, por sua vez, são as redes com que hoje se pesca a riqueza dos homens.

67 As indulgências apregoadas pelos seus vendedores como as maiores graças realmente podem ser entendidas como tal, na medida em que dão boa renda.

68 Entretanto, na verdade, elas são as graças mais ínfimas em comparação com a graça de Deus e a piedade na cruz.

69 Os bispos e curas têm a obrigação de admitir com toda a reverência os comissários de indulgências apostólicas.

70 Têm, porém, a obrigação ainda maior de observar com os dois olhos e atentar com ambos os ouvidos para que esses comissários não preguem os seus próprios sonhos em lugar do que lhes foi incumbido pelo papa.

71 Seja excomungado e maldito quem falar contra a verdade das indulgências apostólicas.

72 Seja bendito, porém, quem ficar alerta contra a devassidão e licenciosidade das palavras de um pregador de indulgências.

73 Assim como o papa, com razão, fulmina aqueles que, de qualquer forma, procuram defraudar o comércio de indulgências,

74 muito mais deseja fulminar aqueles que, a pretexto das indulgências, procuram defraudar a santa caridade e verdade.

75 A opinião de que as indulgências papais são tão eficazes ao ponto de poderem absolver um homem mesmo que tivesse violentado a mãe de Deus, caso isso fosse possível, é loucura.

76 Afirmamos, pelo contrário, que as indulgências papais não podem anular sequer o menor dos pecados veniais no que se refere à sua culpa.

77 A afirmação de que nem mesmo S. Pedro, caso fosse o papa atualmente, poderia conceder maiores graças é blasfêmia contra São Pedro e o papa.

78 Afirmamos, ao contrário, que também este, assim como qualquer papa, tem graças maiores, quais sejam, o Evangelho, os poderes, os dons de curar, etc., como está escrito em 1 Co 12.

79 É blasfêmia dizer que a cruz com as armas do papa, insignemente erguida, equivale à cruz de Cristo.

80 Terão que prestar contas os bispos, curas e teólogos que permitem que semelhantes conversas sejam difundidas entre o povo.

81 Essa licenciosa pregação de indulgências faz com que não seja fácil, nem para os homens doutos, defender a dignidade do papa contra calúnias ou perguntas, sem dúvida argutas, dos leigos.

82 Por exemplo: por que o papa não evacua o purgatório por causa do santíssimo amor e da extrema necessidade das almas - o que seria a mais justa de todas as causas -, se redime um número infinito de almas por causa do funestíssimo dinheiro para a construção da basílica - que é uma causa tão insignificante?

83 Do mesmo modo: por que se mantêm as exéquias e os aniversários dos falecidos e por que ele não restitui ou permite que se recebam de volta as doações efetuadas em favor deles, visto que já não é justo orar pelos redimidos?

84 Do mesmo modo: que nova piedade de Deus e do papa é essa: por causa do dinheiro, permitem ao ímpio e inimigo redimir uma alma piedosa e amiga de Deus, porém não a redimem por causa da necessidade da mesma alma piedosa e dileta, por amor gratuito?

85 Do mesmo modo: por que os cânones penitenciais - de fato e por desuso já há muito revogados e mortos - ainda assim são redimidos com dinheiro, pela concessão de indulgências, como se ainda estivessem em pleno vigor?

86 Do mesmo modo: por que o papa, cuja fortuna hoje é maior do que a dos mais ricos Crassos, não constrói com seu próprio dinheiro ao menos esta uma basílica de São Pedro, ao invés de fazê-lo com o dinheiro dos pobres fiéis?

87 Do mesmo modo: o que é que o papa perdoa e concede àqueles que, pela contrição perfeita, têm direito à remissão e participação plenária?

88 Do mesmo modo: que benefício maior se poderia proporcionar à Igreja do que se o papa, assim como agora o faz uma vez, da mesma forma concedesse essas remissões e participações 100 vezes ao dia a qualquer dos fiéis?

89 Já que, com as indulgências, o papa procura mais a salvação das almas do o dinheiro, por que suspende as cartas e indulgências outrora já concedidas, se são igualmente eficazes?

90 Reprimir esses argumentos muito perspicazes dos leigos somente pela força, sem refutá-los apresentando razões, significa expor a Igreja e o papa à zombaria dos inimigos e desgraçar os cristãos.

91 Se, portanto, as indulgências fossem pregadas em conformidade com o espírito e a opinião do papa, todas essas objeções poderiam ser facilmente respondidas e nem mesmo teriam surgido.

92 Fora, pois, com todos esses profetas que dizem ao povo de Cristo: "Paz, paz!" sem que haja paz!


93 Que prosperem todos os profetas que dizem ao povo de Cristo: "Cruz! Cruz!" sem que haja cruz!

94 Devem-se exortar os cristãos a que se esforcem por seguir a Cristo, seu cabeça, através das penas, da morte e do inferno;

95 e, assim, a que confiem que entrarão no céu antes através de muitas tribulações do que pela segurança da paz.

1517 A.D.

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